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"Vida Ociosa", de Godofredo Rangel, e "Luz Mediterrânea", de Raul de Leoni, revelam os extremos do movimento
Melancolia e antitropicalismo pré-modernos
Antonio Arnoni Prado
especial para a Folha
Vida Ociosa", de Godofredo Rangel (1884-1951), e "Luz Mediterrânea", de Raul de Leoni (1895-1926), acabam de ser reeditados
no Rio de Janeiro. O romance de Rangel
apareceu em volume em 1920, em São
Paulo, numa edição patrocinada pela casa Monteiro Lobato & Cia. "Luz Mediterrânea", uma coleção de poemas, surgiu pela primeira vez no Rio de Janeiro
em 1922, publicado por Jacinto Ribeiro
dos Santos. Ao contrário de "Vida Ociosa", que só teve uma reedição em 1934,
veio sendo reestampado pelo tempo afora, de 1922 a 1995 pelo menos, data da
edição comemorativa do centenário de
seu autor. Que novidades, afora as de interesse da esfera acadêmica, poderiam
trazer para os leitores de hoje?
Godofredo Rangel, mineiro de Três
Corações, foi um pacato magistrado de
província, onde também lecionava e traduzia, para fugir talvez à modorra do
tempo. Nos primeiros anos do século, estudante de direito em São Paulo, abriu a
casa onde morava no Belenzinho a um
grupo de jovens acadêmicos que formariam depois, em torno do jornal do mesmo nome, o barulhento grupo do Minarete, também conhecido como "a Cainçalha", de que fizeram parte, entre outros, além do próprio Rangel, o poeta Ricardo Gonçalves, Lino Moreira, Cândido
Negreiros, Tito Brasil e Monteiro Lobato.
A amizade literária entre Lobato e Rangel tornou-se conhecida com a publicação, em 1944, da "Barca de Gleyre", volume em que estão reunidas as cartas que
Lobato enviou ao amigo ao longo de 40
anos.
Raul de Leoni nasceu em Petrópolis e
era filho de gente influente (o pai pertenceu à alta magistratura e chegou a ministro do Supremo Tribunal Federal), o que
lhe rendeu algumas boas primícias. O
presidente Nilo Peçanha, que o admirava, além de o chamar para oficial de gabinete, nomeou-o pouco depois secretário
de legação, cargo que o poeta recusou
por preferir um lugar de fiscal na inspetoria de seguros da República. A crer nas
reminiscências de Benjamim Costallat,
companheiro de mocidade do poeta, o
jovem Leoni -um tipo forte e adepto da
cultura física- tinha mais orgulho de
sua musculatura do que dos versos que
compunha. "Os versos", lembra Costallat, "ele os dizia a muito pouca gente,
mas qualquer que se aproximasse do seu
tórax desenvolvidíssimo, e lhe segurasse
o braço distraidamente, ele logo fazia pular os músculos num prazer de jovem
ateniense...".
Introvertido e tímido
De volta a
Minas, Rangel -introvertido e tímido- isolou-se na vida simples do interior. Além de escrever e estudar nas horas vagas, ia traduzindo os Daudet, os
Nietzsche e os Maupassant de ocasião
que o amigo Lobato, já então um editor
de renome, lhe ia encomendando de São
Paulo. "Vida Ociosa" sairia parceladamente na "Revista do Brasil", em 1917, simultaneamente a outro romance, "Falange Gloriosa", que Rangel publicou em
capítulos no jornal "O Estado de S. Paulo", sendo ambos posteriores a "Os Bem
Casados", este escrito em 1910, mas só
publicado, a exemplo de "Falange Gloriosa", após a morte do autor.
Espírito integrado ao cosmopolitismo
dos grandes centros, Leoni só deixará o
Rio para morrer prematuramente de tuberculose, aos 31 anos, em
Itaipava, em cujas montanhas imaginou encontrar
a cura. Até então fora testemunha de um dos momentos mais fecundos da
transformação do Rio de
Janeiro em metrópole,
nos primeiros anos do século. Como assinala Gonçalo Jorge no necrológio
que escreveu para o "Jornal do Brasil" em 13 de
novembro de 1925, apesar
de "profundamente amado pelos mais irreverentes
corifeus do espírito moderno" -cujo valor soube reconhecer e
assimilar-, jamais traiu o espírito aristocrático com que cultivou o helenismo e
o legado da cultura clássica.
Isso fez dele, nos termos de Tristão de
Athayde e numa direção inteiramente
oposta ao regionalismo que aparece no
romance de Godofredo Rangel, o "poeta
menos nacional que é possível ser, menos influenciado pela terra ou pela atual
mistura de raças e sentimentos".
Tal juízo balizará a primeira etapa da
fortuna crítica de "Luz Mediterrânea",
um livro que chegaria às gerações posteriores com um requinte de ceticismo civilizado traduzido por uma poesia "de
absoluto antitropicalismo", de sensações
puras e imagens abstratas. Sob a "estranha lógica de seus artifícios", descoberta
por Rodrigo Melo Franco de Andrade, os
versos de Raul de Leoni foram sendo valorizados pelo que apresentavam de singular e de novo em meio àquele "edifício
de emoções dionisíacas" que a alma clássica do poeta ia cercando de faunos e de
efebos, de sábios e de apóstatas, seja ao
isolar-se no retiro espiritual de uma Florença eterna, seja ao evocar os longos
poentes de elegia, que buscou nas forças
cegas e automáticas do cosmos, nas fantasmagorias do tempo
convertido em esfinge, no
símbolo e na ilusão como
"únicas prendas que nos
vieram dos deuses como
herança". Essa face nova é
a face do ritmo variado e
da expressão nítida, das
imagens, das cores e das
formas que um penumbrista como Ribeiro Couto aproximaria dos versos
filosóficos de Augusto dos
Anjos e um crítico como
Alfredo Bosi, mais próximo de nós, destacaria do
"estetismo caduco" da
poesia dos pré-modernistas.
Godofredo Rangel, no outro extremo,
embora lido por autores expressivos do
modernismo -de Guilherme de Almeida a Manuel Bandeira, de Carlos Drummond de Andrade a Emílio Moura-, teria em Monteiro Lobato o seu maior admirador. O entusiasmo de Lobato, para
quem "Vida Ociosa" era o único livro
brasileiro capaz de figurar entre "Brás
Cubas" e "Dom Casmurro", não foi contudo suficiente para evitar que o romance chegasse até nós celebrado apenas
-como notou um crítico- "pelos que
pensam que o romance de monotonia
deve ser igualmente monótono".
É certo que Hilário Tácito, no "Prólogo
Dispensável", de 1920, já chamara atenção para as imagens impressionistas e as
emoções imediatas que iam ligando, na
imaginação do narrador, o simpático
doutor Félix a "uma cadeia de evocações
cujas formas imprecisas ele surpreende e
grava instantaneamente, em páginas que
são obras-primas de psicanálise". Mas
essa notação de autenticidade também
se perderia como um traço secundário
na representação da viagem solitária do
doutor Félix rumo à fazenda do Córrego
Fundo, onde passará uma temporada ao
lado do velho Próspero, de siá Marciana,
do filho Américo e da parentela da casa,
driblando a melancolia da vida e ouvindo com simulado interesse histórias de
caçadas, crendices e cismas da gente simples do campo.
Até que, em 1953, um ensaio-prefácio
de Antonio Candido para a edição do
"Falange Gloriosa" viria trazer elementos concretos para a fisionomia literária
do livro, ao filiar a prosa de Godofredo
Rangel à escrita caligráfica que se expandira com Amadeu de Queirós, Eduardo
Frieiro e Ciro dos Anjos. Com base nela o
leitor de hoje poderá distinguir no calígrafo Rangel não apenas o narrador rebuscado e cheio de digressões, que sacrifica a estrutura do relato em favor do
pormenor, mas também um mestre da
"escrita de tonalidades", capaz de nos
dar -como no caso do capítulo inicial
("A Estrada")- um dos trechos mais
belos da nossa literatura descritiva.
Vida Ociosa
136 págs., R$ 22,00
de Godofredo Rangel. Casa da
Palavra (r. Visconde de Carandaí, 6, Jardim Botânico, Rio de
Janeiro, RJ, CEP 22460-020, tel.
0/xx/21/540-0130).
Luz Mediterrânea e Outros Poemas
178 págs., R$ 18,00
de Raul de Leoni. Ed. Topbooks
(r. Visconde de Inhaúma, 58,
CEP 20091-000, RJ, tel. 0/xx/
21/233-8718).
Antonio Arnoni Prado é professor de literatura
na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
autor, entre outros, de "Lima Barreto - O Crítico e a
Crise" (Martins Fontes).
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