São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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"Vida Ociosa", de Godofredo Rangel, e "Luz Mediterrânea", de Raul de Leoni, revelam os extremos do movimento
Melancolia e antitropicalismo pré-modernos

Antonio Arnoni Prado
especial para a Folha

Vida Ociosa", de Godofredo Rangel (1884-1951), e "Luz Mediterrânea", de Raul de Leoni (1895-1926), acabam de ser reeditados no Rio de Janeiro. O romance de Rangel apareceu em volume em 1920, em São Paulo, numa edição patrocinada pela casa Monteiro Lobato & Cia. "Luz Mediterrânea", uma coleção de poemas, surgiu pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1922, publicado por Jacinto Ribeiro dos Santos. Ao contrário de "Vida Ociosa", que só teve uma reedição em 1934, veio sendo reestampado pelo tempo afora, de 1922 a 1995 pelo menos, data da edição comemorativa do centenário de seu autor. Que novidades, afora as de interesse da esfera acadêmica, poderiam trazer para os leitores de hoje? Godofredo Rangel, mineiro de Três Corações, foi um pacato magistrado de província, onde também lecionava e traduzia, para fugir talvez à modorra do tempo. Nos primeiros anos do século, estudante de direito em São Paulo, abriu a casa onde morava no Belenzinho a um grupo de jovens acadêmicos que formariam depois, em torno do jornal do mesmo nome, o barulhento grupo do Minarete, também conhecido como "a Cainçalha", de que fizeram parte, entre outros, além do próprio Rangel, o poeta Ricardo Gonçalves, Lino Moreira, Cândido Negreiros, Tito Brasil e Monteiro Lobato. A amizade literária entre Lobato e Rangel tornou-se conhecida com a publicação, em 1944, da "Barca de Gleyre", volume em que estão reunidas as cartas que Lobato enviou ao amigo ao longo de 40 anos. Raul de Leoni nasceu em Petrópolis e era filho de gente influente (o pai pertenceu à alta magistratura e chegou a ministro do Supremo Tribunal Federal), o que lhe rendeu algumas boas primícias. O presidente Nilo Peçanha, que o admirava, além de o chamar para oficial de gabinete, nomeou-o pouco depois secretário de legação, cargo que o poeta recusou por preferir um lugar de fiscal na inspetoria de seguros da República. A crer nas reminiscências de Benjamim Costallat, companheiro de mocidade do poeta, o jovem Leoni -um tipo forte e adepto da cultura física- tinha mais orgulho de sua musculatura do que dos versos que compunha. "Os versos", lembra Costallat, "ele os dizia a muito pouca gente, mas qualquer que se aproximasse do seu tórax desenvolvidíssimo, e lhe segurasse o braço distraidamente, ele logo fazia pular os músculos num prazer de jovem ateniense...".

Introvertido e tímido
De volta a Minas, Rangel -introvertido e tímido- isolou-se na vida simples do interior. Além de escrever e estudar nas horas vagas, ia traduzindo os Daudet, os Nietzsche e os Maupassant de ocasião que o amigo Lobato, já então um editor de renome, lhe ia encomendando de São Paulo. "Vida Ociosa" sairia parceladamente na "Revista do Brasil", em 1917, simultaneamente a outro romance, "Falange Gloriosa", que Rangel publicou em capítulos no jornal "O Estado de S. Paulo", sendo ambos posteriores a "Os Bem Casados", este escrito em 1910, mas só publicado, a exemplo de "Falange Gloriosa", após a morte do autor.
Espírito integrado ao cosmopolitismo dos grandes centros, Leoni só deixará o Rio para morrer prematuramente de tuberculose, aos 31 anos, em Itaipava, em cujas montanhas imaginou encontrar a cura. Até então fora testemunha de um dos momentos mais fecundos da transformação do Rio de Janeiro em metrópole, nos primeiros anos do século. Como assinala Gonçalo Jorge no necrológio que escreveu para o "Jornal do Brasil" em 13 de novembro de 1925, apesar de "profundamente amado pelos mais irreverentes corifeus do espírito moderno" -cujo valor soube reconhecer e assimilar-, jamais traiu o espírito aristocrático com que cultivou o helenismo e o legado da cultura clássica.
Isso fez dele, nos termos de Tristão de Athayde e numa direção inteiramente oposta ao regionalismo que aparece no romance de Godofredo Rangel, o "poeta menos nacional que é possível ser, menos influenciado pela terra ou pela atual mistura de raças e sentimentos".
Tal juízo balizará a primeira etapa da fortuna crítica de "Luz Mediterrânea", um livro que chegaria às gerações posteriores com um requinte de ceticismo civilizado traduzido por uma poesia "de absoluto antitropicalismo", de sensações puras e imagens abstratas. Sob a "estranha lógica de seus artifícios", descoberta por Rodrigo Melo Franco de Andrade, os versos de Raul de Leoni foram sendo valorizados pelo que apresentavam de singular e de novo em meio àquele "edifício de emoções dionisíacas" que a alma clássica do poeta ia cercando de faunos e de efebos, de sábios e de apóstatas, seja ao isolar-se no retiro espiritual de uma Florença eterna, seja ao evocar os longos poentes de elegia, que buscou nas forças cegas e automáticas do cosmos, nas fantasmagorias do tempo convertido em esfinge, no símbolo e na ilusão como "únicas prendas que nos vieram dos deuses como herança". Essa face nova é a face do ritmo variado e da expressão nítida, das imagens, das cores e das formas que um penumbrista como Ribeiro Couto aproximaria dos versos filosóficos de Augusto dos Anjos e um crítico como Alfredo Bosi, mais próximo de nós, destacaria do "estetismo caduco" da poesia dos pré-modernistas.
Godofredo Rangel, no outro extremo, embora lido por autores expressivos do modernismo -de Guilherme de Almeida a Manuel Bandeira, de Carlos Drummond de Andrade a Emílio Moura-, teria em Monteiro Lobato o seu maior admirador. O entusiasmo de Lobato, para quem "Vida Ociosa" era o único livro brasileiro capaz de figurar entre "Brás Cubas" e "Dom Casmurro", não foi contudo suficiente para evitar que o romance chegasse até nós celebrado apenas -como notou um crítico- "pelos que pensam que o romance de monotonia deve ser igualmente monótono".
É certo que Hilário Tácito, no "Prólogo Dispensável", de 1920, já chamara atenção para as imagens impressionistas e as emoções imediatas que iam ligando, na imaginação do narrador, o simpático doutor Félix a "uma cadeia de evocações cujas formas imprecisas ele surpreende e grava instantaneamente, em páginas que são obras-primas de psicanálise". Mas essa notação de autenticidade também se perderia como um traço secundário na representação da viagem solitária do doutor Félix rumo à fazenda do Córrego Fundo, onde passará uma temporada ao lado do velho Próspero, de siá Marciana, do filho Américo e da parentela da casa, driblando a melancolia da vida e ouvindo com simulado interesse histórias de caçadas, crendices e cismas da gente simples do campo.
Até que, em 1953, um ensaio-prefácio de Antonio Candido para a edição do "Falange Gloriosa" viria trazer elementos concretos para a fisionomia literária do livro, ao filiar a prosa de Godofredo Rangel à escrita caligráfica que se expandira com Amadeu de Queirós, Eduardo Frieiro e Ciro dos Anjos. Com base nela o leitor de hoje poderá distinguir no calígrafo Rangel não apenas o narrador rebuscado e cheio de digressões, que sacrifica a estrutura do relato em favor do pormenor, mas também um mestre da "escrita de tonalidades", capaz de nos dar -como no caso do capítulo inicial ("A Estrada")- um dos trechos mais belos da nossa literatura descritiva.



Vida Ociosa
136 págs., R$ 22,00 de Godofredo Rangel. Casa da Palavra (r. Visconde de Carandaí, 6, Jardim Botânico, Rio de Janeiro, RJ, CEP 22460-020, tel. 0/xx/21/540-0130).

Luz Mediterrânea e Outros Poemas
178 págs., R$ 18,00 de Raul de Leoni. Ed. Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, CEP 20091-000, RJ, tel. 0/xx/ 21/233-8718).



Antonio Arnoni Prado é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autor, entre outros, de "Lima Barreto - O Crítico e a Crise" (Martins Fontes).

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