São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2000

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Ponto de fuga

A banana entalada

Jorge Coli
especial para a Folha

Ela se chama Robin e talvez não esteja conseguindo satisfazer seu marido na cama. Preocupada, pede lições a uma prostituta. Segue atentamente os gestos da profissional, que toma uma banana para fazer demonstração de sexo oral. A professora engasga, e tudo termina em anticlímax, desopilante e irônico.
Robin ensinava inglês, era especialista em Chaucer (1343-1400). Graças a um providencial segundo casamento, torna-se entrevistadora de televisão. Faz perguntas sem interesse a quem não tem nada a dizer. Fica famosa. "Tornei-me o tipo de pessoa que sempre detestei e estou gostando disso!"
Perplexidade sempre foi um instrumento da crítica desarmada, própria a Woody Allen. Como antes em "Manhattan", ela se encontra de novo em "Celebridades". Mais negra, mais cínica, mais amarga, atinge um patético desespero no pedido de socorro escrito com fumaça no céu. Lee, o protagonista, é mais uma vez alguém que não consegue centrar seus sentimentos, hesitando entre várias mulheres, terminando como vítima de todas elas.
Há muito do Fellini de "La Dolce Vita" em "Celebridades", que parece ainda um "Oito e Meio" às avessas. Lee não é Guido, o diretor de cinema todo-poderoso, núcleo de um universo cujo sentido lhe escapa. Mas, gravitando nas órbitas dos mais ou menos famosos, ele vai se acomodando a renúncias, a humilhações, vindas de um mundo que também deixou de ter sentido. A banana não é o pênis, assim como a fama não é feita de substância nenhuma. "Celebridades" é uma falsa comédia leve e um dos filmes mais negros já assinados por Woody Allen.

Certezas - O redemoinho agitado pela efervescência imediata, no qual não há mais lugar para nenhuma cultura assentada e sólida, é próprio das badalações nova-iorquinas. Woody Allen vive esse vazio por dentro. John Waters o observa de fora. Ele elegeu sua Baltimore de origem, cafona e provinciana, como o lugar do recuo crítico.
"O Preço da Fama" ("Pecker") opunha província e metrópole para mostrar que na primeira a sinceridade do talento e dos afetos é possível. "Cecil B. Demente" joga o amor sincero pelo cinema contra a Hollywood dos nossos dias, percebida como um McDonald"s do celulóide.
Essa cultura de cinéfilos, que defende Pasolini ou Samuel Fuller, termina em desesperados estertores suicidas e faz prova de sua verdade por meio de quixotesca loucura: o rigor do grupo Dogma 95 se perfila no horizonte. A auto-ironia nunca é abandonada.
Waters, que cultivou em seus primeiros filmes o mais absurdo mau gosto como combate à afetação bem-educada e vazia, detesta falsificações. "Cecil B. Demente" mostra uma cinefilia que incorpora não apenas filmes mais "intelectuais": ela encontrará aliados no kung fu e na pornografia. É a união de vibrações vivas e sinceras atacando a hipocrisia dos bons comportamentos.

Origens - "Cecil B. Demente" não possui a mesma fluidez nem a mesma felicidade que banhava "Pecker". Ele avança, desconfortável, com solavancos. Waters abandona a narração mais sutil na sua verossimilhança, que havia assumido recentemente. Mas não retorna ao primitivo e radical mau gosto nem a atual produção possui a precariedade de outrora. Volta-se, contudo, para situações absurdas, lembrando um pouco seus primeiros filmes. Elas acentuam o caráter de parábola tomado pela narração, como uma fábula que traz no seu bojo a lição imoral escondida.

Dublê de corpo - Melanie Griffith está em "Celebridades" e em "Cecil B. Demente". Neste ela tem o papel principal; em ambos representa uma estrela do cinema. Traz consigo uma graça levemente desajeitada.
Seu personagem em "Cecil B. Demente", ao ser raptado pelos cinéfilos doidos, encontra um renascimento para a própria carreira. A verdadeira Melanie Griffith parece também renascer nesses dois filmes.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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