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+ Teatro
Lavando a roupa suja
O dramaturgo Tony Kushner fala sobre o contundente "Caroline ou Troco", musical que tem com como protagonista uma empregada doméstica negra
PAUL TAYLOR
Estreou recentemente
no West End de Londres um musical no
qual a heroína é verde.
Agora, está pronto a
estrear no National Theatre
um musical em que a heroína é
negra. "Caroline, or Change"
[Caroline ou Troco] é um trabalho infinitamente mais ousado do que "Wicked" [Perversa].
Neste último, a cor que distingue a futura Bruxa Malvada
do Oeste é usada como símbolo
de qualquer espécie de "diferença" que faça com que uma
maioria trate mal as suas minorias. Assim, no material publicitário, há uma citação de um
espectador que vê, na experiência da heroína, "a história
da experiência afro-americana
nos EUA".
Mas essa percepção é questionável porque o tom de pele
da heroína parece ser exclusivo
dela, enquanto ser negro nos
EUA é fazer parte de uma comunidade que seria insultuoso
retratar como monolítica.
Tal como "Caroline ou Troco" reconhece e dramatiza,
existem diferenças de opinião
sobre que métodos empregar
para promover mudanças.
A ação se passa em 1963, na
Louisiana, e conta a história
em parte autobiográfica do relacionamento entre um menino judeu, cuja mãe morreu e
cujo pai havia se casado de novo pouco tempo antes, e Caroline, a empregada negra que
cuida da lavanderia para a família. "Change", no título, é um
trocadilho, pois se refere tanto
a mudança quanto às moedas
que o menino esquece nos bolsos, para grande irritação de
sua madrasta nova-iorquina.
Truque astucioso
Ela propõe um jogo segundo
o qual Caroline pode ficar com
qualquer moeda que encontre
nos bolsos do menino. É um
truque astucioso, ainda que talvez haja propósitos mais sombrios do que a madrasta percebe, e não parece propício à promoção de um relacionamento
melhor entre os privilegiados e
os excluídos, os brancos e os
negros.
Conversei com Kushner no
intervalo dos ensaios. O autor
da mais importante peça dos
anos 90, "Angels in America", e
do roteiro do recente "Munique", de Steven Spielberg, pode
ser o dramaturgo mais talentoso de sua geração, mas não parece pretensioso.
Ostentando um aspecto bem
mais jovial do que seus 50 anos
de idade indicariam, Kushner é
cortês, despretensioso e prodigiosamente articulado.
No momento, está escrevendo dois roteiros, um sobre o
dramaturgo Eugene O'Neill
[1888-1953] e outro passado na
Guerra Civil Americana,
"quando os negros podiam
combater pela União, mas ainda assim teriam de esperar
mais cem anos -ainda que as
fundações legais da defesa de
seus direitos já existissem- antes que pudessem se considerar
cidadãos plenos".
Ele também está trabalhando em uma peça épica que aparentemente tem por objetivo
dar aos EUA da era Bush o mesmo tratamento que "Anjos na
América" deu à era Reagan.
Conversamos sobre a maneira como "Caroline ou Troco"
deliberadamente subverte as
expectativas. O libreto é dedicado a Maudie Lee Davis, a empregada negra da família Kushner quando Tony era menino.
Sem redenção fácil
Mas Caroline tem atributos e
uma disposição que o escritor
inventou. "Acredito que, para
os norte-americanos, a imagem
do menino branco e da mulher
negra vestida de empregada
crie uma expectativa imensamente poderosa... De que a peça seja uma história de mãe
substituta, sobre um menino
branco solitário que é criado e
ajudado por uma negra. E é
exatamente isso o que Caroline
se recusa a fazer."
E o trabalho não procura redenção fácil ou emoções primárias e tampouco oferece uma
solução simples para um problema complexo.
Se existe esperança no final,
ela não vem (como seria de esperar) do personagem-título,
mas sim de Emmie, a filha mais
nova de Caroline, que indica
um futuro de ativismo e defesa
firme de princípios.
O tratamento do dinheiro
por Kushner como um meio de
troca emocional e política é
igualmente aguçado e distante
da prática mais comum em
nossa era.
"Se existe muito dinheiro em
algum lugar, é porque existe escassez dele em algum outro. O
dinheiro tem um significado
moral. O neoconservadorismo
convenceu as pessoas de que
não há nada a questionar sobre
o dinheiro, a não ser a procura
de maneiras de ganhar o máximo possível e de como proteger
do governo a maior parte possível do que se tem."
Agora há trabalho a fazer para concluir seu épico teatral sobre a era Bush.
Kushner está
considerando a possibilidade
de criar "duas verões de Laura
Bush que resolvem as diferenças no tapa".
Em um extrato publicado do
trabalho, a primeira-dama critica ferozmente os intelectuais
liberais e de esquerda: "Vocês
são todos um bando de tontos.
Um grupo de sujeitos chorosos
que ainda não descobriram em
que gaveta de meias guardar toda essa miséria e decepção pessoal e toda essa culpa".
Seria uma deliciosa ironia
que um dos melhores dramaturgos da história do teatro
americano imortalizasse literariamente a mulher de um dos
piores presidentes que o país já
teve (ou, mais precisamente, a
versão hilariante que sua pena
criou para ela).
Este texto foi publicado no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.
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