São Paulo, domingo, 29 de outubro de 2006

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+ Política

A via-crúcis de Giddens

Superficial, novo livro do criador da Terceira Via fracassa ao analisar o futuro do Estado de Bem-Estar

QUENTIN PEEL

O professor e lorde Anthony Giddens, alto sacerdote da Terceira Via [leia texto ao lado] e inspiração do premiê Tony Blair, tem outro motivo para reclamar. Desta vez, em "Europe in the Global Age" [A Europa na Era Global, Polity Press, 224 págs., 12,99 libras, R$ 53], o alvo é o modelo social europeu.
Ele existe, é possível defini-lo e, se existe, pode ser reformado? Será que é capaz de sobreviver diante das forças combinadas da globalização e do envelhecimento das populações européias? O tema é altamente politizado e suscita mais paixão do que praticamente qualquer outro, no seio da União Européia.
Ao longo do espectro do debate político europeu, o medo da perda de proteção social para as camadas mais ameaçadas pelas forças da globalização e da mudança tecnológica serve para alimentar um ressurgimento do nacionalismo e do protecionismo.
Giddens classifica França, Itália e Alemanha como "sociedades bloqueadas", nas quais "a necessidade de mudança é aparente não só para muitos de seus cidadãos mas para a maioria dos observadores informados, e, no entanto, é nelas que o conservadorismo natural, os interesses escusos ou ambos os fatores impedem que as reformas necessárias ocorram".

Trechos recortados
Esse é o ponto de partida de Giddens para argumentar sobre os motivos por que o velho modelo social europeu -tributação elevada, Estado intervencionista, sistema de seguro social robusto e limitações à desigualdade econômica- precisa de reforma. Ele acredita que as reformas sejam não só possíveis como necessárias.
O problema é que, ao final de mais de 200 páginas, continuo a não compreender exatamente como. Esse é um livro que parece ter sido redigido com base em trechos recortados e colados de dezenas de seminários diferentes, todos os quais oferecendo alguma coisa de interessante, mas sem funcionar como um todo coerente.
A tese básica -de que França, Alemanha e Itália estão estagnadas enquanto os países nórdicos e mais o Reino Unido e a Irlanda, a Holanda e a Espanha (até certo ponto) demonstram mais competência nas reformas tanto do sistema de seguro social quanto dos mercados de trabalho, para promover mais flexibilidade e uma redução do desemprego- já foi praticamente esgotada.
E, além disso, é um tantinho acomodada. A Alemanha decerto se reforma lentamente, com um agonizante processo de formação de consenso. Mas a impressionante produtividade e a recente aceleração da economia do país sugerem que talvez esteja fazendo alguma coisa direito.
Ele trata melhor das mudanças sociais extraordinárias pelas quais a Europa vem passando, da mobilidade de mão-de-obra e da flexibilidade de treinamento que as novas sociedades de "conhecimento e serviços" requerem.
Hoje, cerca de dois terços dos empregos criados pela nova economia exigem alta capacitação, e o número de mulheres na força de trabalho aumentou muito. O giro de mão-de-obra se acelerou bastante. Os grupos que correm mais risco são os formados por homens com baixa capacitação, especialmente em guetos de imigrantes. Mas, em termos gerais, a migração é uma força positiva para a promoção de maior mobilidade.
Ele acredita em um modelo nórdico de "flexegurança" -flexibilidade mais segurança-, ainda que jamais defina o termo precisamente. A idéia seria em parte obrigar os desempregados a passar por treinamento de requalificação e a aceitar empregos depois de passarem determinado período desempregados, mas com certeza o conceito precisa ser um pouco mais desenvolvido do que isso, não?

Dumping social
A questão que Giddens não encara é o profundo medo que os trabalhadores mais velhos e de baixa capacitação sentem quanto ao "dumping social" -sistema que implicaria transferir seus empregos a operários mais baratos na Europa Oriental ou nos países em desenvolvimento. Ele descarta as propostas em favor de protecionismo em dois parágrafos.
Argumenta que o dumping social é um mito, porque transferir empregos aos novos países membros da União Européia os ajudará em seu processo de integração, e seus trabalhadores passarão a exigir padrões mais elevados.
Pode ser que ele esteja certo, mas ele descarta os argumentos em contrário com um simples floreio de sua pena.
Trata-se de um trabalho deprimentemente superficial, enfeitado por vocabulário requintado. E não vai servir para persuadir qualquer eleitor francês a mudar de idéia sobre a Constituição da União Européia. Infelizmente.


Este texto saiu no "Financial Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
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