São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AUTORES
Modos de representar pessoas são um meio poderoso de auto-apresentação
A arte de ler retratos

PETER BURKE
especial para a Folha

Eu costumava julgar os retratos como um dos gêneros menos interessantes da pintura, com exceção das obras de alguns artistas famosos, como Ticiano, Reynolds ou Goya, ou das representações de algumas pessoas célebres, como o papa Júlio 2º, Napoleão ou Dostoiévski. Eu costumava, também, preferir contemplar paisagens ou naturezas-mortas a retratos de pessoas que não conhecia, realizados por artistas de que nunca ouvira falar.
Recentemente, sem perder o interesse por imagens de árvores ou montanhas, frutas ou garrafas, passei a me interessar cada vez mais pelos retratos como gênero. Acredito ter descoberto como ler retratos, não tanto como um especialista em arte, atento às pinceladas que revelam a mão do artista individual, mas como um historiador da cultura, para quem o retrato é um sistema de signos. Para ser mais exato, um retrato em específico é uma elocução específica, um exemplo de "parole", como dizem os linguistas franceses, que deve ser entendida como uma seleção de um sistema mais vasto de signos, um repositório, arsenal ou repertório que os linguistas chamam "langue". Esse repertório -a metáfora teatral é particularmente apropriada nesse caso- pode ser visto como uma coleção de esteios para a apresentação pública do modelo retratado.
Foi depois de ler o brilhante estudo de um sociólogo americano, o finado Erving Goffman, "The Presentation of Self in Everyday Life" (1956), que eu me dei conta de que o retrato, um tema não discutido por Goffman, era um meio poderoso de auto-apresentação e, inversamente, que a auto-apresentação era a chave para compreender e apreciar os retratos. Para tanto, não importa se os retratos vêm do passado ou do presente (não penso tanto nas fotografias, mas nos retratos oficiais ainda encomendados para imortalizar chefes de Estado, diretores de empresas, reitores de universidades etc.). As convenções diferem de século para século, de região para região e de grupo social para grupo social, mas os princípios fundamentais parecem continuar os mesmos. Sempre podemos ler retratos, ainda que eles não sejam pintados na mesma linguagem.
Os meios utilizados nessa arte de auto-representação incluem gesto, postura, expressão facial e uso de acessórios como roupas, mobiliário e outros itens importantes, como livros, cães e criados. Saber o que fazer com as mãos do retratado é um problema tanto para o cliente quanto para o artista. Em alguns retratos italianos, o modelo gesticula de maneira dramática para o observador, causando um efeito admirável, ainda que certamente tenha sido difícil manter a posição das mãos por mais de alguns minutos. Modelos ingleses, por outro lado, não consideram naturais tais gestos, preferindo, por exemplo, repousar a mão nos quadris. Penso em modelos masculinos, pois o repertório dos gestos femininos tidos como apropriados em retratos, como no caso do comportamento social em público, é geralmente ainda mais limitado do que o repertório disponível para os homens, de modo que trançar as mãos sobre o colo ou segurar um leque foram durante muito tempo as únicas escolhas para as mulheres européias e seus retratistas.
Outros problema é o que fazer com as pernas. Cruzá-las, quando sentado, costumava ser considerado uma postura inadequada ou mesmo indecorosa, especialmente para as mulheres. É interessante ver que, no quadro mais famoso da princesa Diana (por Bryan Organ, 1981, agora na National Portrait Gallery de Londres), ela foi retratada de calças nessa pose, embora sua posição no centro da tela confira um ar formal ao retrato, combinando tradição e modernidade. Quanto à expressão facial, é interessante notar que, até a era de Luís 14 ou mesmo depois, não se admitia que pessoas da alta sociedade sorrissem em seus retratos. Nossa própria convenção de sorrir ao posar para uma fotografia parece remontar somente ao século 18, ao final do Antigo Regime.
Mas falemos dos acessórios, dos objetos dispostos ao redor do modelo para ressaltar sua imagem, a começar pelas roupas. É difícil para o observador resistir à impressão de que o modelo tenha sempre se parecido com seu retrato, embora seja razoável esperar que ele tenha vestido suas melhores roupas para a ocasião. Nos séculos 16 e 17, era costume incluir uma coluna clássica e uma cortina de veludo nos retratos de pessoas importantes, não porque suas casas contivessem necessariamente tais objetos, mas para associar o cliente ao poder e ao prestígio da Roma Antiga. Sobre a mesa ao lado do modelo encontrava-se, por vezes, um relógio num estojo dourado ou prateado, talvez para sugerir que a vida humana é curta, mas muito provavelmente para ostentar aos observadores a propriedade de um novo objeto em moda, que na época era algo como um símbolo de status.
Outras mensagens enviadas por objetos em retratos são ainda mais precisas. Um livro empunhado por um político pode representar, por exemplo, uma veleidade intelectual ou ser uma declaração de fidelidade a um movimento. Em diversas partes da Europa do século 18, os nobres pousavam com cópias do "Espírito das Leis", de Montesquieu, para mostrar que eles participavam do Iluminismo. Um retrato do presidente Carter, agora na Universidade da Pensilvânia (EUA), mostra-o com "The Culture of Disbelief" (A Cutura da Descrença), de Stephen Carter.
Uma bibliografia desses livros pintados pode ser reveladora, como também o podem os vários animais que figuram em retratos, especialmente cães. Nada impede, é claro, que os modelos peçam aos artistas para incluir animais de estimação em seus retratos, ou mesmo insistam para tanto, mas o simbolismo dos cães, em particular, é mais complicado do que pode parecer à primeira vista. Nos retratos do século 15, quando os cães aparecem em retratos de mulheres casadas, eles são provavelmente símbolo da fidelidade marital: o cão é tão fiel ao homem quanto a mulher ao marido. Em geral, esses cães são de pequeno porte. Nobres do sexo masculino também gostavam de ter cães representados a seu lado, mas preferiam cães de caça mais avantajados, símbolos de virilidade e agressividade. Um desses cães aparece até mesmo num retrato recente de certo diretor da Universidade de Oxford, célebre por adorar a caça à raposa. Como a caça à raposa é associada às classes altas e esse indivíduo em particular descende de uma família humilde, nesse retrato o cão representa certamente a mobilidade social.
Neste caso, como em todos os exemplos citados até agora, podemos e devemos nos perguntar: quem se apresenta a si mesmo, o artista ou o modelo? Por vezes, o artista parece ter precedência, como nos famosos retratos da família real espanhola pintados por Goya, que hoje têm o aspecto de caricaturas, tanto assim que é difícil resistir à conclusão de que o rei há de ter sido tão estúpido quanto supunha Goya, já que permitiu ser retratado publicamente desse modo. Seja como for, esse exemplo nos lembra que nunca vemos os modelos de maneira direta, mas somente pelos olhos do artista.
Miguel de Unamuno notou certa vez que, em toda conversa, tomam parte pelo menos seis pessoas. Numa conversa entre Juan e Tomás existem três diferentes Juans envolvidos: "El Juan real, conocido sólo para su Hacedor, el Juan ideal de Juan, y el Juan ideal de Tomás". De forma semelhante, quando Ticiano pintou o imperador Carlos 5º, ele não estava pintando o "Carlos real", mas sua imagem de Carlos, ou a imagem de Carlos de si mesmo, ou mais provavelmente a imagem do pintor da auto-imagem do imperador. Em outras palavras, os retratos devem ser vistos como os traços materiais de um encontro entre um artista e um modelo. Como no caso dos livros, é preciso ler os retratos nas entrelinhas.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Unesp). Ele escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de José Marcos Macedo.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.