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AUTORES
Modos de representar pessoas são um meio poderoso de auto-apresentação
A arte de ler retratos
PETER BURKE
especial para a Folha
Eu costumava julgar os retratos
como um dos gêneros menos interessantes da pintura, com exceção
das obras de alguns artistas famosos, como Ticiano, Reynolds ou
Goya, ou das representações de algumas pessoas célebres, como o
papa Júlio 2º, Napoleão ou Dostoiévski. Eu costumava, também,
preferir contemplar paisagens ou
naturezas-mortas a retratos de
pessoas que não conhecia, realizados por artistas de que nunca ouvira falar.
Recentemente, sem perder o interesse por imagens de árvores ou
montanhas, frutas ou garrafas,
passei a me interessar cada vez
mais pelos retratos como gênero.
Acredito ter descoberto como ler
retratos, não tanto como um especialista em arte, atento às pinceladas que revelam a mão do artista
individual, mas como um historiador da cultura, para quem o retrato é um sistema de signos. Para
ser mais exato, um retrato em específico é uma elocução específica, um exemplo de "parole", como dizem os linguistas franceses,
que deve ser entendida como uma
seleção de um sistema mais vasto
de signos, um repositório, arsenal
ou repertório que os linguistas
chamam "langue". Esse repertório -a metáfora teatral é particularmente apropriada nesse caso-
pode ser visto como uma coleção
de esteios para a apresentação pública do modelo retratado.
Foi depois de ler o brilhante estudo de um sociólogo americano,
o finado Erving Goffman, "The
Presentation of Self in Everyday
Life" (1956), que eu me dei conta
de que o retrato, um tema não discutido por Goffman, era um meio
poderoso de auto-apresentação e,
inversamente, que a auto-apresentação era a chave para compreender e apreciar os retratos.
Para tanto, não importa se os retratos vêm do passado ou do presente (não penso tanto nas fotografias, mas nos retratos oficiais
ainda encomendados para imortalizar chefes de Estado, diretores
de empresas, reitores de universidades etc.). As convenções diferem de século para século, de região para região e de grupo social
para grupo social, mas os princípios fundamentais parecem continuar os mesmos. Sempre podemos ler retratos, ainda que eles
não sejam pintados na mesma linguagem.
Os meios utilizados nessa arte de
auto-representação incluem gesto, postura, expressão facial e uso
de acessórios como roupas, mobiliário e outros itens importantes,
como livros, cães e criados. Saber
o que fazer com as mãos do retratado é um problema tanto para o
cliente quanto para o artista. Em
alguns retratos italianos, o modelo gesticula de maneira dramática
para o observador, causando um
efeito admirável, ainda que certamente tenha sido difícil manter a
posição das mãos por mais de alguns minutos. Modelos ingleses,
por outro lado, não consideram
naturais tais gestos, preferindo,
por exemplo, repousar a mão nos
quadris. Penso em modelos masculinos, pois o repertório dos gestos femininos tidos como apropriados em retratos, como no caso
do comportamento social em público, é geralmente ainda mais limitado do que o repertório disponível para os homens, de modo
que trançar as mãos sobre o colo
ou segurar um leque foram durante muito tempo as únicas escolhas
para as mulheres européias e seus
retratistas.
Outros problema é o que fazer
com as pernas. Cruzá-las, quando
sentado, costumava ser considerado uma postura inadequada ou
mesmo indecorosa, especialmente para as mulheres. É interessante
ver que, no quadro mais famoso
da princesa Diana (por Bryan Organ, 1981, agora na National Portrait Gallery de Londres), ela foi
retratada de calças nessa pose,
embora sua posição no centro da
tela confira um ar formal ao retrato, combinando tradição e modernidade. Quanto à expressão facial,
é interessante notar que, até a era
de Luís 14 ou mesmo depois, não
se admitia que pessoas da alta sociedade sorrissem em seus retratos. Nossa própria convenção de
sorrir ao posar para uma fotografia parece remontar somente ao
século 18, ao final do Antigo Regime.
Mas falemos dos acessórios, dos
objetos dispostos ao redor do modelo para ressaltar sua imagem, a
começar pelas roupas. É difícil para o observador resistir à impressão de que o modelo tenha sempre
se parecido com seu retrato, embora seja razoável esperar que ele
tenha vestido suas melhores roupas para a ocasião. Nos séculos 16
e 17, era costume incluir uma coluna clássica e uma cortina de veludo nos retratos de pessoas importantes, não porque suas casas
contivessem necessariamente tais
objetos, mas para associar o cliente ao poder e ao prestígio da Roma
Antiga. Sobre a mesa ao lado do
modelo encontrava-se, por vezes,
um relógio num estojo dourado
ou prateado, talvez para sugerir
que a vida humana é curta, mas
muito provavelmente para ostentar aos observadores a propriedade de um novo objeto em moda,
que na época era algo como um
símbolo de status.
Outras mensagens enviadas por
objetos em retratos são ainda mais
precisas. Um livro empunhado
por um político pode representar,
por exemplo, uma veleidade intelectual ou ser uma declaração de
fidelidade a um movimento. Em
diversas partes da Europa do século 18, os nobres pousavam com
cópias do "Espírito das Leis", de
Montesquieu, para mostrar que
eles participavam do Iluminismo.
Um retrato do presidente Carter,
agora na Universidade da Pensilvânia (EUA), mostra-o com "The
Culture of Disbelief" (A Cutura
da Descrença), de Stephen Carter.
Uma bibliografia desses livros
pintados pode ser reveladora, como também o podem os vários
animais que figuram em retratos,
especialmente cães. Nada impede,
é claro, que os modelos peçam aos
artistas para incluir animais de estimação em seus retratos, ou mesmo insistam para tanto, mas o
simbolismo dos cães, em particular, é mais complicado do que pode parecer à primeira vista. Nos
retratos do século 15, quando os
cães aparecem em retratos de mulheres casadas, eles são provavelmente símbolo da fidelidade marital: o cão é tão fiel ao homem
quanto a mulher ao marido. Em
geral, esses cães são de pequeno
porte. Nobres do sexo masculino
também gostavam de ter cães representados a seu lado, mas preferiam cães de caça mais avantajados, símbolos de virilidade e
agressividade. Um desses cães
aparece até mesmo num retrato
recente de certo diretor da Universidade de Oxford, célebre por
adorar a caça à raposa. Como a caça à raposa é associada às classes
altas e esse indivíduo em particular descende de uma família humilde, nesse retrato o cão representa certamente a mobilidade social.
Neste caso, como em todos os
exemplos citados até agora, podemos e devemos nos perguntar:
quem se apresenta a si mesmo, o
artista ou o modelo? Por vezes, o
artista parece ter precedência, como nos famosos retratos da família real espanhola pintados por
Goya, que hoje têm o aspecto de
caricaturas, tanto assim que é difícil resistir à conclusão de que o rei
há de ter sido tão estúpido quanto
supunha Goya, já que permitiu ser
retratado publicamente desse modo. Seja como for, esse exemplo
nos lembra que nunca vemos os
modelos de maneira direta, mas
somente pelos olhos do artista.
Miguel de Unamuno notou certa
vez que, em toda conversa, tomam parte pelo menos seis pessoas. Numa conversa entre Juan e
Tomás existem três diferentes
Juans envolvidos: "El Juan real,
conocido sólo para su Hacedor, el
Juan ideal de Juan, y el Juan ideal
de Tomás". De forma semelhante, quando Ticiano pintou o imperador Carlos 5º, ele não estava
pintando o "Carlos real", mas
sua imagem de Carlos, ou a imagem de Carlos de si mesmo, ou
mais provavelmente a imagem do
pintor da auto-imagem do imperador. Em outras palavras, os retratos devem ser vistos como os
traços materiais de um encontro
entre um artista e um modelo. Como no caso dos livros, é preciso ler
os retratos nas entrelinhas.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "A
Arte da Conversação" (Unesp). Ele escreve bimestralmente na seção "Autores".
Tradução de José Marcos Macedo.
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