São Paulo, domingo, 29 de novembro de 1998

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Os estratagemas dos ressentidos

HAROLD BLOOM
especial para a Folha

"Eles têm grandes números. Nós temos as alturas"


Minha epígrafe vem de Tucídides: são palavras do comandante do exército espartano, na batalha das Termópilas. No que diz respeito à cultura, somos nós agora que estamos nas Termópilas: os multiculturalistas, as pseudofeministas, os milhões de modistas, afligidos por doenças francesas, os comissários de polícia, os fanáticos do politicamente correto, as hostes de novos historicistas e velhos materialistas -todos se postam lá embaixo. Na certa vão subir e talvez sejamos batidos; nossas universidades já não passam de uma encenação e nossos jornalistas são uma paródia dos professores de "estudos culturais". Só por pouco tempo, ainda temos domínio das alturas, do reino do estético.
Ainda existem poemas autênticos sendo escritos nos Estados Unidos. Elizabeth Bishop, May Swenson e James Merrill se foram, mas restam dois grandes poetas, em John Ashbery e A.R. Ammons, e há um bom número de contemporâneos que se aproximam da sua estatura. Minha tarefa era selecionar 75 dentre 750 poemas, restringindo-me aos que foram publicados na série. Nem todos os poemas escolhidos são obras definitivas; simplesmente juntei os melhores que pude. Mas há alguns que devem se perpetuar para as gerações futuras. São aqueles que passam em meu teste pessoal do que é, ou não, canônico: reli cada um deles com prazer e saí enriquecido.
Um dos dez livros da coleção não está representado, porque não fui capaz de achar nele mais do que um ou dois poemas. Essa antologia ("The Best American Poetry - 1996") assumiu, aliás, papel de provocação para meu texto de abertura: um exemplo monumental dos inimigos do estético. O livro é tão ruim que chega a ser inacreditável. Segue os critérios do momento: o que mais conta é a raça, o gênero, a orientação sexual, a origem étnica e as intenções políticas do suposto poeta. Não se pode esperar que cada tentativa de fazer poesia em língua inglesa rivalize com Chaucer e Shakespeare, Milton e Wordsworth, Whitman e Dickinson, Wallace Stevens e Hart Crane. Mas são esses poetas e seus pares que estabelecem a medida: quem aspira à poesia deve manter em mente tais exemplos. A sinceridade, como ensinava Oscar Wilde, está longe de ser o bastante para gerar um poema. Estourando de sinceridade, a coletânea de 1996 parece uma coruja empalhada, repleta de maus versos e de outras formas de ruindade, que não são verso nem prosa.
Como isso pode ter acontecido? Os últimos 30 anos de declínio intelectual oferecem uma resposta: culpa. Meninas e meninos entusiasmados (junto com alguns de seus gurus de meia-idade) precipitaram-se no Grande Despertar da Religião do Rock em fins da década de 60. A incitação imediata para tanto foi a matança obscena de vietnamitas pelo exército americano; mas a saturnália reinante depois, por alguns anos, de Tóquio a Paris, rapidamente transcendeu a ocasião. Por volta de 1968-70, os espíritos mais lúcidos já percebiam que as consequências, embora quase sem efeito para os poderes da nossa sociedade capitalista, seriam infinitas para quaisquer atividades cognitiva e estética praticadas no mundo ocidental.
De lá para cá, nada mudou, exceto talvez para pior, na nossa vida político-econômica. Os verdadeiros herdeiros da falsa revolução foram Reagan e Clinton, sua versão paródica. Por outro lado, uma mudança, que chega às raias da catástrofe, veio afligir as esferas intelectuais, culturais, educacionais e estéticas, numa espécie de Queda-e-Criação cabalística.
Talvez nada disso importe, tendo em vista que bons poemas continuam a ser escritos, impressos e às vezes até lidos. A grande poesia tem muitos usos, desde que uma audiência de leitores cultivados seja capaz de sobreviver. Já a crítica, tanto acadêmica quanto jornalística, está à beira da morte, fundamentalmente porque as universidades trocaram a crítica literária pela "crítica cultural", um suposto ramo das ciências sociais.
Castigar a universidade ou os órgãos de imprensa é inútil: pressões sociais imensas foram descarregadas em instituições altamente vulneráveis à culpa. Toda vertente de "estudo" finalmente terá um domicílio: se a orientação sexual pode ser agrupada com raça, grupo étnico e gênero, enquanto fonte de valores estéticos e cognitivos, então por que não se criar os "estudos sadomasoquistas", em honra ao deus do ressentimento, o finado Michel Foucault? Se existe uma Poética Homossexual, por que não uma Poética da Dor? Que "minoria" merece ser excluída?
Shakespeare e Dante foram dois europeus do sexo masculino; será que isso é uma informação tão relevante? William Wordsworth inventou a poesia moderna. Não posso saber se os mais de 50 poetas reunidos nesse livro leram Wordsworth; mas, se não leram, leram mesmo assim, uma vez que quase todos escrevem poesia wordsworthiana, no sentido mais amplo. E, no entanto, a totalidade, ou quase, dos ensaios críticos recentes sobre Wordsworth, para não falar das aulas sobre ele nas universidades americanas, está dedicada a condenar esse que é o maior de todos os poetas modernos, com base num argumento político: Wordsworth teria "traído" sua primeira expressão de apoio à Revolução Francesa!
Quando estava começando minha carreira de professor em Yale, os poetas românticos ingleses eram Wordsworth, Coleridge, Byron e Keats, além de Blake e Shelley, cuja posição no cânone eu fiz o que pude para restaurar. Em centenas de universidades hoje, esses poetas têm de dividir espaço com as "poetas românticas": Felicia Hemans, Laetitia Landon, Charlotte Smith e Mary Tighe, entre outras. Dizer que essas escritoras foram justamente negligenciadas já é ser generoso, embora sejam melhores do que muitos nomes em "The Best American Poetry - 1996".
Vale se perguntar mais uma vez: como isso pode ter acontecido -não só na universidade, mas também no mercado editorial e na mídia? Um jornal como "The New York Times" hoje é essencialmente um veículo contra a cultura. Se todos os padrões estéticos e cognitivos foram abandonados, tanto pelos professores quanto pelos jornalistas, então a tradição da poesia americana só pode sobreviver por meio de um movimento profundo de internalização.
É uma ironia pensar que, em plenos tempos sombrios, a poesia americana seja de qualidade mais elevada do que a crítica ou a pedagogia. Fico maravilhado com a coragem e a crença desesperadas de nossos melhores poetas jovens, compelidos a suportar a indiferença ou a hostilidade não só da sociedade em geral, mas dos presumíveis defensores da própria poesia, que agora só pensam nela como um instrumento de mudança social. Tenho consciência de que os ressentidos falam constantemente da "ideologia do estético" e da "ideologia romântica", mas isso é um jogo de cartas marcadas.
Em seu ensaio sobre a "Política", Emerson escreveu um comentário candente para os nosso tempos: "Não faz diferença quantas toneladas de atmosfera exercem pressão sobre nossa cabeça, desde que exista uma pressão igual e contrária dentro dos pulmões. Aumente-se mil vezes a massa de ar; não pode nem sequer começar a nos esmagar, sempre que a reação for igual à ação".
A Escola do Ressentimento fica tagarelando sobre poder, raça, gênero: estratagemas carreiristas, que não têm nada a ver com os injuriados e insultados, cujas vidas jamais vão melhorar pela leitura dos maus versos escritos pelos que se dizem oprimidos. Trocar "Rei Lear" por "A Cor Púrpura" está longe de ser o caminho dourado da sabedoria. Um país em que televisão, filmes, computadores e Stephen King tomaram o lugar da leitura já está correndo perigo agudo de colapso cultural. Este perigo aumenta muito quando se deixa a educação aos cuidados dos ideólogos, cujo ressentimento mais profundo é pela própria poesia.


Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York; é autor, entre outros, de "A Angústia da Influência" e "Poesia e Repressão" (Imago). O Mais! publica mensalmente seus artigos.
O texto acima é uma adaptação da introdução que Harold Bloom preparou para a antologia de dez anos de "O Melhor do Melhor" ("The Best of the Best"), publicada pela editora Scribner.
Tradução de Arthur Nestrovski.


Onde encomendar
"The Best American Poetry - 1996" (organização de Adrienne Rich, David Lehman Editor, US$ 13) pode ser adquirido na Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) ou, pela Internet, na Amazon Books (http://www.amazon.com).



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