São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000


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Perigos e consciência

Luc Montagnier

No momento em que lhes escrevo, o ano 2050 não está muito distante. É, portanto, possível imaginar que o mundo em que vocês viverão, a despeito das muitas diferenças, será uma continuação da era que conheço, com uma acentuação de suas tendências. Vocês provavelmente passarão por maior globalização, uma exacerbação dos conflitos nos países em desenvolvimento, guerras econômicas, a divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento continuará sem solução e doenças continuarão a surgir e ressurgir. Para resumir, comparado ao mundo do século 20, não muitas mudanças. Mesmo assim, como biólogo, considero minha responsabilidade antecipar situações extremas que poderiam ocorrer. A humanidade é um novo sistema biológico, um nível de organização de organismos vivos que, em contraste com os sistemas vivos que nos precederam, ainda não encontrou meios de regulamentação. Em muitos países, o crescimento populacional é descontrolado.

Desastres de saúde
Uma hipótese que pode ser levantada é que a existência de imensos números de jovens sem trabalho derrube as estruturas sociais, conduzindo a guerras, sistemas políticos autoritários ou situações de total anarquia. Além disso, a ausência de regulamentações econômicas amplia os riscos. Nós estamos avançando, de fato, rumo a oligarquias econômicas cada vez maiores que terão poder muito superior ao dos políticos.
O terceiro fator que tende rumo ao caos é a modificação em nosso meio ambiente, também descontrolada: o efeito estufa, a agricultura e produção de alimentos industrializados, a poluição química e assim por diante. Isso pode levar a desastres de saúde por exposição a produtos carcinogênicos, doenças respiratórias e depressão do sistema imunológico. Dioxinas disseminadas por incineradores de lixo e pela indústria pesada, pesticidas com efeitos carcinogênicos, a "doença da vaca louca" -esses exemplos correm o risco de se multiplicar na ausência de uma política ambiental racional que tenha alcance mundial. Quais são os outros fatores que favorecem o caos? O impacto cada vez mais pervasivo das mídias visuais, que cada vez mais desencoraja a reflexão e impede que as pessoas coloquem os eventos que vêem em algum tipo de perspectiva. A indiferença ao sofrimento alheio é outro fator. Se todos esses fatores se acumularem, temo que vocês estarão vivendo em uma nova Idade Média. Já há zonas fortificadas nas cidades, áreas de acesso controlado, onde as pessoas "decentes" vivem entre elas e os párias são mantidos à distância. Tudo isso pode levar a uma espécie de desintegração da humanidade. Mesmo sem ser catastróficos, os fatores de poluição química, atmosférica e alimentar podem conduzir a uma estagnação na evolução das expectativas de vida e de bem-estar físico, já que todos esses fatores podem conduzir à morte prematura por câncer, doenças degenerativas do sistema nervoso ou doenças do sistema imunológico ou cardiovascular. A biologia, que poderia oferecer soluções de prolongamento da vida, não será capaz de eliminar totalmente esses fatores, cujas origens estão na estrutura socioeconômica do mundo e no comportamento humano.

Germes multirresistentes
Novas epidemias de agentes infecciosos ameaçam se difundir devido à proliferação de áreas nas grandes cidades em que os marginalizados vivem sem acesso a serviços de saúde. E isso vale tanto para os países em desenvolvimento quanto para os desenvolvidos. Pode-se ver esse tipo de situação em grandes cidades como Paris ou Nova York. Essas áreas podem ser um território de incubação para o ressurgimento de doenças conhecidas como a tuberculose, com germes multirresistentes a antibióticos, ou de novas doenças ligadas a agentes que já existiam, mas que encontrarão oportunidades de desenvolvimento que não tinham antes. Esse é o caso da Aids, por exemplo. Mas pode haver outros. Penso particularmente em doenças que afetem o cérebro. Há vírus que causam encefalite e infecções do cérebro com sérias consequências psiquiátricas. O maior perigo vem das doenças insidiosas, que conduzem a infecções crônicas e matam as pessoas depois de alguns anos. Essas doenças são muito mais difíceis de detectar do que epidemias visíveis. Elas podem estar ligadas a uma combinação de fatores -poluição química e agentes infecciosos, por exemplo. Esse, na minha opinião, é o maior perigo, porque será muito difícil detectar esses fatores, e, quando tiverem sido detectados, será tarde demais. Tendo dito isso, epidemias altamente contagiosas, com difusão de vírus pelo aparelho respiratório, também precisam ser temidas, mesmo na família de doenças agudas, como a gripe, por exemplo. A origem da chamada gripe espanhola de 1918, que matou mais gente do que a Guerra Mundial de 1914-1918, ainda não foi explicada. Algumas estimativas falam em 30 milhões, 50 milhões, até mesmo 100 milhões de mortes causadas por essa epidemia. As poucas análises executadas nos corpos não mostram diferenças essenciais entre esse vírus e os vírus da gripe que circulam hoje em dia. Não seremos capazes de impedir uma epidemia se não conhecermos os fatores envolvidos. Obviamente, espero, por vocês, que isso não aconteça! Talvez vocês considerem que meus temores são excessivos. Espero que sim! De qualquer forma, vocês precisam saber como se preparar, e o espírito de responsabilidade que nascer disso será uma ferramenta importante para atingir esse objetivo. Acumulamos quantidade enorme de conhecimento. Infelizmente ele não foi assimilado de forma apropriada pela humanidade como um todo. Uma pequena elite está familiarizada com ele, mas a maior parte das pessoas não tem acesso. No entanto é apenas com esse conhecimento que modos de comportamento e um senso de responsabilidade podem ser desenvolvidos.

Informações acumuladas
Sabemos agora que somos como partículas de poeira em um universo imenso, muito maior do que acreditávamos cem anos atrás. Na Terra, temos 3,5 bilhões de anos de informações genéticas acumuladas. Cada indivíduo, portanto, é não uma criação, mas o resultado de estruturas biológicas que começaram a tomar forma 3,5 bilhões de anos atrás, quando as primeiras moléculas de memória foram formadas. Devemos estar conscientes de que cada indivíduo é um elo em uma cadeia extremamente longa. Isso nos ensina muito quanto à humildade e à grandeza, porque estamos conscientes do que veio antes de nós. Estamos também conscientes da vastidão do espaço. Sabemos que somos os únicos seres vivos em nosso sistema solar. Nós mesmos somos, como organismos biológicos, uma "superorganização", baseada em células, e cada célula é em si uma "superorganização" baseada em um certo número de moléculas. Temos essa continuidade de mudança tanto quantitativa quanto qualitativa, já que cada nível de organização tem propriedades completamente novas e diferentes dos níveis anteriores. Esse conhecimento deveria dar forma ao nosso comportamento e nos encorajar a sermos conscientes das implicações éticas de nossas ações. Só existimos realmente como parte do tecido social. Como indivíduos, temos responsabilidades. Temos direitos e também temos deveres. É nosso direito ter acesso a esse conhecimento; nosso dever é estarmos conscientes da responsabilidade individual. Cada organismo biológico, no passado, chegou a um sistema próprio de regulamentação. Nós ainda não.

Subumanos
É nossa tarefa descobrir esses sistemas de regulamentação. Não é fácil, porque somos o último nível de organização. Não há pressão externa. Todos os níveis precedentes de organização foram selecionados para se auto-regulamentar porque sofreram pressão nesse sentido. A única pressão que age sobre nós é a nossa consciência da necessidade de regulamentação. O processo é muito mais sutil. E é só através da educação que se desenvolve essa consciência.
Mas a educação pressupõe certas condições socioeconômicas. Portanto, precisamos encontrar maneiras de contrabalançar as forças centrífugas que tornam os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Se estamos conscientes de que somos poluidores, podemos evitar a poluição. Devemos também estar conscientes de que as pesquisas precisam continuar se queremos evitar epidemias, as potenciais catástrofes biológicas sobre as quais falei antes.
A biologia também está aprendendo algo completamente novo: podemos agora mudar nossa hereditariedade. No momento em que escrevo, a chegada dos clones é iminente. Todo o passado de 3,5 bilhões de anos pode ser modificado graças à tecnologia. Podemos criar subumanos; podemos modificar qualitativamente a evolução humana.
Portanto, acima das outras pessoas, os cientistas têm uma grande responsabilidade. Da mesma forma que os médicos fazem o juramento de Hipócrates, todo cientista deveria prometer solenemente jamais realizar pesquisas que poderiam conduzir à destruição da natureza humana.


Luc Montagnier (1932) é biólogo francês, ligado ao Instituto Pasteur, em Paris. Em 1983, identificou o vírus causador da Aids.


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