São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000


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A face humana da globalização

Nadine Gordimer

Caros cidadãos do século 21, não há como escapar ao passado, e é preciso que se olhe com honestidade a herança que receberam. Ela tem muitos aspectos. Escolho o dos novos conceitos que sugiram durante a minha vida como filha daquela era. Um deles, de grande importância para as vidas de vocês que agora estão no comando, é o de globalização. A viabilidade da globalização deriva dos imensos avanços tecnológicos do século 20, particularmente nos meios de comunicação, do satélite em meio às estrelas ao computador em todos os escritórios. Informação pode ser trocada com o mundo inteiro em tempo real; a distância não significa nada desde que o jato tenha combustível para continuar a devorá-la. A globalização tem todos os meios para se regulamentar, na forma que vem tomando até agora: primordialmente como um mundo único de investimento, uma superferramenta de finanças internacionais. Mas ela tem um rosto humano? A verdadeira necessidade de globalização -que vocês terão de enfrentar- é nada menos do que a questão de definir se com ela é possível encurtar a distância entre países pobres e ricos. Que papel a globalização pode desempenhar na erradicação da pobreza? Porque a pobreza coloca uma máscara de exclusão e desumanidade em mais de 3 bilhões dos habitantes do planeta. Se a globalização vai ter uma face humana em seu século, a premissa é que o desenvolvimento trate de pessoas interagindo no planeta que ocupamos, até agora, sem compartilhá-lo.

Consumo descontrolado
Isso não será conquistado, porém, por meio de compras mundiais na Internet. No século 20, o consumo cresceu de forma sem precedentes, atingindo os US$ 24 trilhões em 1998, mas essa festa de gastos devoradores, longe de beneficiar os pobres, em alguns aspectos solapou as perspectivas verdadeiramente humanas da globalização: o desenvolvimento sustentável para todos. O consumo descontrolado no mundo desenvolvido erodiu os recursos renováveis, a exemplo dos combustíveis fósseis, florestas e áreas de pesca, poluiu o ambiente local e global e se curvou à promoção da necessidade de exibir conspicuamente o que se tem, em lugar de atender às necessidades legítimas da vida. Enquanto aqueles de nós que fizeram parte dessas imensas gerações de consumidores precisam consumir menos, para mais de 1 bilhão das pessoas consumir mais é uma questão de vida ou morte e um direito básico -o direito de ser livre da carestia. E não é apenas falta de comida e água limpa; há outras formas de privação, como o analfabetismo e a falta de conhecimentos técnicos, que são as qualificações básicas para se beneficiar do conceito de globalização. O analfabetismo é a base da privação cultural mundial e existe entre grande proporção da população do planeta. Dele deriva o isolamento de outras formas de cultura essenciais ao direito humano de desenvolver plenamente o potencial de cada pessoa para a vida. Não poderá haver cultura global enquanto os habitantes do planeta forem privados da capacidade de ler, de ter acesso aos poderes da imaginação deflagrados pela palavra escrita, por meio da literatura; privados das riquezas intelectuais e espirituais das bibliotecas. Há também a questão da tradução da imensa riqueza literária do planeta. Com toda a facilidade de reprodução da palavra escrita agora atingida, resta o fato de que o processo humano de traduzir literatura criativa de um para outro idioma -que certamente, até agora, não pode ser realizado por um cérebro eletrônico- não é reconhecido como meio altamente importante de produzir um ideal de entendimento global, certamente uma das filosofias básicas da globalização. No novo milênio será preciso remediar essa situação, estabelecendo escolas de tradução nas universidades (são raras no século 20); pela ação das editoras em cooperar para empreendimentos conjuntos para além das fronteiras linguísticas; que as pastas de cultura e artes dos governos subsidiem esse tipo de trabalho; e que os ministérios do Exterior compreendam que é essa é uma iniciativa diplomática efetiva para além dos limites culturais convencionais de oferta de intercâmbio, basicamente por meio de bolsas de estudo no exterior. O consumo é necessário para o desenvolvimento humano quando, como no caso do consumo cultural, ele amplia a capacidade e melhora a vida das pessoas sem afetar de forma adversa as vidas dos outros. E uma restrição ao consumo material não precisa, como temem alguns, envolver o fechamento de indústrias e lojas, se o poder de consumir for difundido por todo o planeta.

Moral universal
Quem será responsável por fazer com que essas coisas se realizem? Muitos, nacional e internacionalmente.
É responsabilidade da União Européia, que viola os princípios da globalização com seu gritante protecionismo. É responsabilidade dos governos nacionais criar o consumismo justo. A responsabilidade deles é legal: o estabelecimento de leis em cada país, promovendo justiça no acesso e compartilhamento de recursos. E é responsabilidade da lei internacional, um aspecto há muito contestado da globalização, por exemplo com respeito aos direitos de pesca e, no final do século 20, no processo essencial de estabelecer uma corte criminal internacional. Pois a globalização, devemos admitir, apresenta o mais difícil problema possível para a moral laica: uma autoridade moral que supere a dos países individuais que compõem o processo.
Organizações cívicas e não-governamentais têm responsabilidade no reforço da capacidade humana e na garantia de uma filosofia de desenvolvimento, que projetos não sejam impostos a um povo de acordo com as idéias de terceiros quanto às suas necessidades, que sejam planejados e colocados em vigor apenas com as necessidades dos beneficiários em mente, com pleno conhecimento de sua comunidade e meio ambiente. Que os restos da era da engenharia social fiquem enterrados bem fundo no século 20, com um tremor de alívio.
Agora, se quisermos ser realistas, temos que perceber que às portas do novo século existe uma nova ameaça à globalização de face humana. Cerca de 35% do nosso mundo está em recessão, no fim do século. Muitos países estão em crise. Isso significa milhões a mais de refugiados, desabrigados e famintos, para aumentar ainda mais o total mundial de 3 bilhões de pobres, calculado antes que as tragédias de Kosovo e Angola, para citar apenas duas, acontecessem. Na Rússia, o inverno de 1998/1999 congelou pessoas empobrecidas em sua desilusão com a abertura internacional ao comércio e investimento. Esses elementos da globalização, pelo menos até agora, não lhes exibiram uma face humana.
Mas sabemos que algo que não se deve absolutamente fazer é permitir que a sombra de uma recessão econômica que caiu sobre o mundo na última década do século, de norte a sul, de leste a oeste, se torne uma desculpa para adiar a responsabilidade inescapável dos países desenvolvidos no novo milênio.

Enquanto os que fizeram parte das imensas gerações de consumidores precisam consumir menos, para mais de 1 bilhão de pessoas consumir mais é questão de vida ou morte e um direito básico -o direito de ser livre da carestia; e não é apenas de comida e água que elas sentem falta, mas também de conhecimentos técnicos


Isto é, a de levar adiante a erradicação, em lugar do simples tratamento paliativo, da pobreza que existe concomitantemente com a globalização do poderio econômico.
Nunca pergunte por quem os sinos dobram quando soam numa Bolsa de Valores. Suas notas reverberam pelo mundo, abalando os privilegiados e afundando ainda mais os excluídos.
Os mercados mundiais livres não significam nada, enfim, se ninguém for capaz de comprar. O risco do declínio causado pela interdependência econômica instalada pela globalização, esse impacto negativo de algo que é positivo e progressista em termos conceituais, é o fator que certamente fará com que até mesmo os mais complacentes dos partidários da já antiga e ingrata idéia de distribuição injusta dos recursos do mundo entre ricos e pobres aceitem que os bilhões de pessoas que vivem na pobreza abjeta existem com eles e não estão isolados ou em quarentena. O financista George Soros disse bem: "Há interesses coletivos que não encontram expressão em valores de mercado" (1).
E talvez os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas -Reino Unido, China, França, Rússia e Estados Unidos- que, entre outros, enriqueceram vendendo armas para os conflitos e guerras mundiais, ouçam o que Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, tem a dizer sobre a produção de armas, isto é, que "os benefícios humanos que poderiam derivar do redirecionamento dessas forças são imensos" (2), ou que, conforme diz Kofi Annan, "não há desenvolvimento sem paz; não há paz sem desenvolvimento" (3).
Não há globalização sem uma face humana.
O século 21 atingirá uma nova e radiante definição de progresso se vocês trabalharem para dar um rosto a esse mundo.
Sinceramente,
Nadime Gordimer.


Notas
1. George Soros, "The International Crisis - An Interview", entrevista com Jeff Madrick, "The New York Review", janeiro de 1999.
2. Amartya Sen, "Nobel de Economia condena vendas de armas", "The Johannesburg Star", 5 de janeiro de 1999.
3. Kofi Annan, secretário-geral da ONU, discurso durante lançamento do programa de erradicação da pobreza da ONU, Nova York, 1997.


Nadine Gordimer é escritora sul-africana, nascida em Springs, em 1923. Vive em Johannesburgo. Em 1991, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. É autora, entre outros, de "O Pessoal de July", "O Gesto Essencial" (Rocco), "A História de Meu Filho" (Siciliano) e "Ninguém para Me Acompanhar" (Companhia das Letras).
Traduções de Paulo Migliacci.

Título original: "Letters to Future Generation"
Copyright: Unesco, 1999
Copyright da trad. para o português: Empresa Folha da Manhã S/A, 2000
A tradução é publicada sob responsabilidade da Folha.


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