São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ geopolítica
O território físico brasileiro, que é objeto da cobiça imperialista, é hoje o epicentro da história
Logorréia e ideofobia nacional

Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Logorréia valendo diarréia de palavras, muitas palavras, nenhuma idéia. É, em sentido pejorativo, retórica: blablablá. Nas últimas décadas tivemos, na chamada ciência política, o discurso repetitivo e enfadonho sobre "democracia", em que se abusou ao máximo da palavra "autoritarismo" contraposta à "sociedade civil"; nas ciências e letras, nos periódicos e na universidade, tivemos a voga da contracultura pop, do estruturalismo e, recentemente, da prosápia pós-moderna "iúpi". Isso tudo vindo sempre lá de fora, via importação, tal qual "pacote tecnológico", espécie de caixa-preta da superestrutura cultural. Mesmo a deslumbrada viagem pelo cronos da Internet dispensará o passaporte nacional; afinal, conforme diz o credo pós-moderno, não existe mais nação, e sim redes, cadeias e networks, culminando com o logro elegíaco do "fim da história", isto é, o fim da história não para a patota do G-7, mas para o Terceiro Mundo colonial, dando por suposto o imperativo da desestatização da sociedade, da desterritorialização e do enfraquecimento das Forças Armadas nacionais. A isso se deu o nome, a meu ver impróprio, de "neoliberalismo", que teria começado com as eleições em que Fernando Collor se saiu vencedor em 1989; na verdade, trata-se de uma incontestável regressão à pasmaceira colonial com o descenso da esfera pública e da separação malvada entre possibilidade de bem-estar do povo e soberania nacional.

Cósmico e invencível
Nesse teatro o marxismo figura como vítima, cadáver atrasado que se esqueceu de deitar no caixão, mortinho da silva depois da queda do Muro de Berlim, ou seja: a crise na União Soviética é identificada com o fim do socialismo em geral e o domínio, cósmico e invencível, do capitalismo norte-americano. O problema é que, com raras exceções, o marxismo no Brasil das últimas décadas se concentrou menos na crítica à falsidade da moeda, o dólar pós-Bretton Woods, do que na crítica infantil ao Estado, fazendo proselitismo a favor da "sociedade civil" em oposição à "ditadura militar", deixando de lado a questão da resistência nacional ao imperialismo. O tal do "internacionalismo proletário" ainda ressoa junto com a empáfia narcísica em torno do "cidadão do mundo" no preconceito veiculado por muitos intelectuais contra o nacionalismo, tido como "burguês" e anacrônico, historicamente sepultado na era da "globalização". É nesse sentido que o marxismo funcionou como fator ideológico colonizador, contribuindo para baixar a auto-estima nacional e ao mesmo tempo propiciando a resignação diante da "história universal", como se a natureza mundial dos problemas não implicasse a necessidade de solução em âmbito nacional. Em termos de "força motriz" do desenvolvimento do capitalismo, convém lembrar que o carvão mineral e o petróleo são formados de camadas vegetais que se mineralizaram, de modo que o começo, parafraseando Goethe, é o hidrato de carbono. Atualmente a síndrome caramuru tomou conta de muitos intelectuais de "esquerda", meros espectadores ou consumidores de teorias sobre os problemas do capitalismo feitas por autores medalhões estrangeiros. Curiosamente, ao invés de vexame, a ideofobia em relação ao drama nacional surge como uma atitude jubilosa, espécie de esnobismo de pobre ou senão reflexo de quem teria superado mentalmente as fronteiras provincianas de um só país. Essa fobia neurótica de parecer "caipira" não deixa de repercutir, depois do legendário e mistificado "Seminário de Marx", na cozinha do Palácio do Planalto, cuja prosopopéia antropomórfica do Brasil corre paralela à obsessão impatriótica em vendê-lo ao peculato internacional. O nacionalismo trabalhista, cujas origens remontam ao patriarca José Bonifácio de Andrada e Silva, embora sensível ao intercâmbio desigual e injusto do país com os centros hegemônicos, apresenta um discurso que permanece adstrito às artimanhas da moeda, sem colocar em pauta o vínculo do imperialismo e a apropriação energética do território físico brasileiro, que, sem nenhum exagero, é hoje o epicentro da história mundial, sobretudo depois que ficou escancarado o ocaso do combustível petróleo e, simultaneamente, a necessidade imperiosa de a humanidade ingressar em outro patamar energético, tendo em mira que a alternativa à fissão nuclear revelou-se um fiasco completo, de modo que o poder mundial está de olho, para usar uma epifania clássica do nosso cinema, na "terra do sol", sem esquecer que o trópico brasileiro detém a maior quantidade de água doce do planeta. O intelectual pós-moderno faz da crise do sujeito histórico sua razão de ser e, por outro lado, seduz quem já se encontra desvitalizado e imerso, como é o caso da cabeça colonizada, na impotência criativa. É por isso que o reinado, frívolo e antierótico, do príncipe da moeda tem por função precípua elidir a natureza física do país, o inverso do que queria Oswald de Andrade ao criar a antítese cromática e civilizacional entre Wall Street e América do Sol.

Dialética da biosfera
Com exceção de Gilberto Freyre e Luis da Câmara Cascudo, ou senão do médico Silva Mello, as ciências sociais no Brasil nunca colocaram a energia da natureza como objeto específico de conhecimento, dando ênfase apenas ao capital e ao trabalho. É por isso que a reflexão realizada pelo físico brasileiro J.W. Bautista Vidal significa uma verdadeira revolução epistemológica ao trazer a energia vegetal da fotossíntese para o cerne do desenvolvimento nacional, estabelecendo conexões entre biosfera e relações sociais de produção.
Ilusório seria pensar, a partir de uma abordagem equivocada do que seja tecnologia, que a produção econômica é capaz de se libertar dos condicionantes da natureza física. Com a dialética da biosfera surge a possibilidade de superarmos a condição de desterrados, energeticamente desterrados, a que se referia Sergio Buarque de Holanda, o inesquecível autor de "Visão do Paraíso".


Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.


Texto Anterior: + música - Julio Medaglia: Um visionário genial
Próximo Texto: + debate - Luiz Carlos Bresser Pereira: Esquerda nova e realista
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.