São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000


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+ debate
Em resposta a artigo de Marilena Chaui, Bresser Pereira aponta a importância da reunião de líderes em Florença
Esquerda nova e realista

Luiz Carlos Bresser Pereira
especial para a Folha

A Terceira Via é uma proposta inglesa para a Nova Esquerda. Eu não concordo com todas as propostas de Tony Blair, Anthony Giddens e o conjunto de políticos e intelectuais que em torno deles se reuniu para pensar uma sociedade mais justa e mais moderna nos quadros do capitalismo contemporâneo. Posso não concordar, mas reconheço que são propostas generosas e realistas. Já na crítica que Marilena Chaui lhes endereçou no Mais! (de 12/12/99) vejo a mesma generosidade, mas pouca viabilidade. Por outro lado, Marilena, quando você relaciona as reuniões de Florença e de Seattle e vê na última a vitória dos excluídos, seu engano é grave. Ali, sim, havia um conflito entre os países ricos, que em Florença tinham cinco representantes, e os países em desenvolvimento -em Florença apenas representados pelo Brasil.

Globalização negativa
Nós, assim como a China, a Índia, a Argentina, deveríamos querer comércio mais livre, enquanto os Estados Unidos e a Europa, apesar de toda a sua retórica, querem, de fato, o contrário. Os EUA, por meio dos seus sindicatos de trabalhadores e dos seus setores industriais ineficientes, e a Europa, por intermédio também de seus setores industriais ineficientes somados à sua agricultura muito ineficiente, lutaram por um comércio menos livre, a não ser nos serviços. Os países em desenvolvimento não lograram perceber este fato, como também entendem que a globalização negativa não é a comercial, mas a financeira. Hoje a razão externa pela qual nos mantemos quase estagnados enquanto os países avançados continuam a se desenvolver a taxas elevadas não está no comércio, mas no endividamento internacional. A estratégia alucinada de crescimento com endividamento provoca a valorização do câmbio e leva mais ao desperdício de divisas com consumo do que ao investimento. O saldo final é uma dívida a ser paga a taxas de juros elevadas. Marilena, vou discutir estes dois temas com você. Nada é mais necessário hoje no Brasil do que o debate, e o seu artigo "Fantasias da Terceira Via" oferece-me esta oportunidade. Se pretendesse ser apenas uma crítica às idéias de Tony Giddens, como em boa parte ele parece ser, eu não me sentiria atraído ao debate. Embora Giddens seja um notável sociólogo, que respeito, não tenho procuração para defendê-lo nem concordo com todas as suas idéias.

Reunião histórica
A ambição de Marilena, entretanto, é maior. Ela começa por criticar o "lirismo pastoral" da reunião de chefes de governo social-democratas de 21 de novembro, em Florença. Reunião que ela, de pronto, identifica como uma reunião da Terceira Via para, em seguida, baseada antes em um livro de Giddens do que nos debates que lá ocorreram, passar a criticar radicalmente a Nova Social Democracia ou a Nova Esquerda.
A mensagem da Terceira Via, segundo a "tradução" de Marilena, seria simplesmente a seguinte: "Excluída a luta de classes e a igualdade socioeconômica, o Estado não precisa enfrentar o perigoso problema da distribuição da renda e pode resolver suas dificuldades pela privatização dos direitos sociais, transformados em serviços sociais regidos pela lógica do mercado".
Ora, aquela reunião histórica, na qual pela primeira vez se encontraram para discutir valores e idéias políticas os chefes de governo social-democratas de seis dos dez principais países do mundo em termos de PIB (ou, o que é mais impressionante, os cinco chefes de governo social-democratas dos seis maiores países), não pode ser reduzida dessa forma.
Excluamos o presidente brasileiro, para evitarmos partidarismos. Será razoável afirmar que Bill Clinton, Tony Blair, Gerhard Schroeder, Lionel Jospin e Massimo D'Alema, que em seus países foram eleitos opondo-se aos candidatos conservadores, podem ser dessa forma desclassificados? Teriam eliminado de suas mentes a luta de classes e deixado de reconhecer a existências de graves desigualdades; entenderiam portanto desnecessário preocupar-se com distribuição de renda? Os poucos problemas que ainda sobrassem esses senhores acreditariam poder resolvê-los cancelando os direitos sociais e reduzindo os serviços sociais de educação e saúde à lógica do mercado? É aceitável essa caricatura desses cinco líderes políticos? Uma caricatura, que, se Marilena for lógica, deverá também se estender aos seus milhões de eleitores, que os elegeram em nome de suas propostas de lutar pela democracia e pela justiça social.
Do seminário de Florença, Marilena cita uma frase de Bill Clinton: "Desejamos uma economia de mercado, mas não os valores da sociedade de mercado". Essa frase, segundo ela, seria central para a Terceira Via. Ora, Clinton realmente disse isso, mas não se esqueceu de citar seu autor, Lionel Jospin. Desde quando o primeiro-ministro pode ser identificado com a Terceira Via? E desde quando é legítimo afirmar que o seminário de Florença era uma reunião da Terceira Via? Esta era a idéia original de Blair, mas os demais chefes de governo recusaram-na. Em inglês, o seminário ficou denominado "Progressive Governance in the 21rst. Century" e, em italiano, "Il Riformismo nel Secolo 21".
Por que recusaram? Não porque haja uma discordância essencial, mas porque a Terceira Via é o nome que a Nova Esquerda ou a Nova Social Democracia ou a Social Democracia Moderna assumiu na Grã-Bretanha. Ora, cada país tem suas próprias peculiaridades no plano ideológico e programático.
Lionel Jospin, que entre os chefes de governo presentes é o mais contrário a essa expressão, escreveu em "La Repubblica", o grande jornal social-democrata italiano, três dias antes da reunião, um artigo em que dizia: "Se a Terceira Via é uma alternativa entre a social-democracia e o neoliberalismo, não estou nessa via. Mas, se for apenas a forma assumida pela social-democracia moderna na Grã-Bretanha, nada tenho a me opor". Opor-se-ia se a Terceira Via pretendesse substituir a social-democracia. Não se opõe no caso alternativo porque o PSF (Partido Socialista Francês), como todos os demais partidos social-democratas no poder, é um partido que adota as idéias da Nova Esquerda. Sua preocupação, porém, era justificada, porque alguns dos formuladores da Terceira Via a vêem como não mais social-democrata e de esquerda, mas apenas como progressista. São, entretanto, minoria.
Dois dias depois, no mesmo jornal, para que não restassem dúvidas, Blair começou seu artigo declarando-se social-democrata de centro-esquerda. Não era uma resposta explícita a Jospin, mas era clara.
E o próprio Bill Clinton, presidente de um país em que o Partido Democrata nunca se autodenominou de esquerda, mas progressista ou "liberal" no sentido americano, afirmou, em sua última intervenção em Florença, que "nós, democratas, que no espectro político americano nos situamos à esquerda...". O que há de comum entre esses partidos da Nova Esquerda? Certamente não é a "tradução" de Marilena, a não ser que desclassifiquemos de uma penada eleitores e políticos progressistas nos países avançados. A Nova Esquerda é a terceira grande forma pela qual a esquerda se apresenta no mundo. Primeiro, foi a esquerda revolucionária, da luta de classes, de Marx, Lênin e Trotsky. Depois foi a esquerda reformista e do Estado do Bem-Estar, de Bernstein, Beveridge e Léon Blum, que continuava a afirmar a luta de classes, pretendia chegar ao socialismo através da democracia, do gradual aumento da participação do Estado na produção, da garantia dos direitos sociais e que, na sua forma mais subdesenvolvida, adotou como política macroeconômica um keynesianismo populista baseado em déficits públicos crônicos que certamente Keynes repudiaria com horror. Finalmente temos a Nova Esquerda de Olaf Palm, Helmut Schmidt e Felipe González, que, sendo realista e reconhecendo o crescimento da classe média e as limitações do planejamento econômico, amplia sua base de apoio social que não pode mais limitar-se ao proletariado e afirma a possibilidade de se lograr uma sociedade mais democrática e mais justa nos quadros de uma economia de mercado, desde que este seja devidamente corrigido ou regulado pelo Estado.

A novidade de Blair
A Nova Esquerda, portanto, não é tão nova assim. Certamente é muito mais antiga do que a Terceira Via inglesa. Se desconsiderarmos a experiência escandinava, que é peculiar, sua primeira expressão ocorreu na Alemanha, nos anos 70, logo seguida pela espanhola do início dos anos 80. Depois temos a França de Mitterrand, Delors e Rocard, a partir de 1983. Mitterrand ainda se elegeu em 1980 com um programa de nacionalizações da velha esquerda, mas depois de dois anos verificou a inviabilidade desse caminho e reconheceu a importância do mercado e das restrições econômicas. Antes da Inglaterra temos, ainda, os Novos Democratas, nos Estados Unidos, com a eleição de Bill Clinton em 1992. Enquanto isso, o Partido Trabalhista britânico amargava 17 anos fora do poder. Foi só em 1997 que Tony Blair, depois de renovar seu partido, conseguiu recuperar o poder para a esquerda com um discurso baseado no Novo Trabalhismo e na Terceira Via. A novidade de Blair e da Terceira Via estava no fato de que, pela primeira vez, políticos e intelectuais de esquerda desenvolviam de forma sistemática uma justificação ideológica e um programa coerente para a Nova Esquerda. Antes a Nova Esquerda ganhava eleições e chegava ao poder, mas as políticas que adotava, de disciplina fiscal e de respeito às leis do mercado, eram vistas como consequência mais das restrições econômicas do que de uma escolha. Blair chamou um conjunto de notáveis intelectuais, entre os quais o mais importante foi Tony Giddens, para definir os novos valores e as novas propostas. A Nova Esquerda ganha afinal consistência ideológica e torna-se, também, um bom tema de debate.

Educação e saúde
A Nova Esquerda não nega a diferença entre esquerda e direita, ao contrário do que afirma Marilena. De esquerda continuam sendo os partidos que estão dispostos a arriscar a ordem em nome da justiça, enquanto de direita continuam aqueles que priorizam sempre a ordem em relação à justiça. Justiça social não é uma igualdade econômica pura e simples, que é impossível, mas uma igualdade de oportunidades, preservando-se, especialmente, a igualdade de oportunidade nas áreas básicas da educação e da saúde.
Não se pretende eliminar a universalidade da educação básica e da saúde, que devem ser integralmente financiadas pelo Estado, mas se propõe que a prestação dos serviços seja feita cada vez mais por entidades públicas não-estatais, de forma competitiva. A solidariedade continua um valor maior a ser alcançado e preservado, mas não se ignora a necessidade de um individualismo responsável.
O mercado é visto como um eficiente alocador de recursos e como um mau distribuidor de renda. Por isso, o Estado tem um papel secundário, mas efetivo nas políticas industriais e um papel fundamental na distribuição. Reconhece-se que a moral, particularmente a sexual, passou por profundas transformações, mas se afirma a necessidade de revalorizar a família. Em relação ao crime, declara-se que não basta reconhecer e atacar suas causas sociais; é preciso também preveni-lo com policiamento e puni-lo com severidade.
É com essa mensagem que a Nova Esquerda tem vencido eleições nos países avançados. Hoje o neoliberalismo, que fracassou em suas promessas, está em franco declínio, e a grande maioria dos países ricos tem governos social-democratas. Fará esta mensagem sentido para países em desenvolvimento como o Brasil? Sem dúvida, desde que o apoio à globalização não seja tão indiscriminado como acontece com os países ricos. Essa atitude favorável sem restrições à globalização está especialmente presente na Terceira Via inglesa e na Nova Democracia americana; mas é comum a todos os países desenvolvidos. Eles já construíram seus respectivos Estados nacionais, nós não. Marilena tem razão, portanto, quando critica a Terceira Via por pretender reduzir a nação a um dado cultural. Não, ela é um dado político fundamental, do qual, aliás, os governantes dos países ricos, sejam eles de esquerda ou de direita, não têm nenhuma dúvida quando se trata de defender seus interesses nacionais.

Proteção feroz
Os países ricos já alcançaram um nível de acumulação de capital que lhes permite adotar um discurso global. Na verdade, ainda que falem muito em comércio livre, estão permanentemente preocupados com a concorrência dos países em desenvolvimento e protegem seus mercados ferozmente, quando é necessário. Onde estão tranquilos é no setor financeiro, já que são credores, não devedores, e, portanto, suas economias não estão vulneráveis à globalização financeira. Pelo contrário, daí tiram lucros polpudos na forma de altíssimas taxas de juros que nos cobram. Nós precisamos de uma Nova Esquerda, mas que seja mais nacionalista. Que esteja mais preocupada em defender o trabalho e a empresa nacionais. Que saiba que o capital se faz em casa, e que são suicidas as estratégias de desenvolvimento baseadas em endividamento externo. Que os fluxos de capital de empréstimo, que inicialmente se propõem a financiar o investimento nacional, acabam por causar a valorização do câmbio, provocando o aumento artificial dos salários e o desperdício de grande parte dos recursos caros emprestados em consumo: viagens de turismo e artigos importados.

Bom para o Brasil
Marilena, entretanto, também resolve relacionar a reunião de Florença com o fracasso da reunião da Organização Mundial do Comércio em Seattle. Segundo a sabedoria convencional, ocorreu ali o fracasso da globalização, como se globalização negativa fosse a comercial, quando na verdade é a financeira. Segundo ela, "é notável que a luta entre excluídos, que parecia acontecer apenas no campo social nacional, ressurja com força máxima em Seattle". Ora, Marilena, o que eu vi lá foi outra coisa. Foi a luta dos sindicatos e das ONGs dos países desenvolvidos, principalmente dos EUA, contra a liberalização comercial que os desproteja da nossa competição do trabalho mais barato e da produção eficiente que existem no Brasil, na Índia, na China. Foram os europeus protegendo sua agricultura contra a nossa agricultura, muito mais eficiente. E foram os países em desenvolvimento -pasmem!- batendo palmas, porque nesse caso não sabem reconhecer seus interesses nacionais. O comércio mundial livre, Marilena, é hoje muito mais benéfico do que prejudicial a um país como o Brasil. Temos também que tomar cuidado nesta área, mas um cuidado muito maior deve ser dedicado às finanças. Enquanto os países em desenvolvimento, até os anos 60, não estavam endividados internacionalmente, apresentavam taxas de crescimento satisfatórias. A quase estagnação em que vivemos há 20 anos está diretamente relacionada com o nosso endividamento dos anos 70 que, nos anos 90, por incrível que pareça, repetiu-se. Errar é humano, perseverar no erro... No entanto, quando os países em desenvolvimento confundem globalização negativa com comércio, em vez de identificarem-na com finanças internacionais, equivocam-se grosseiramente e se aliam a seus adversários, aos protecionistas do mundo desenvolvido, como aconteceu em Seattle.

Socialismo de mercado
Voltando à Nova Esquerda, Marilena. Precisamos de uma esquerda viável. De uma esquerda que possa ganhar eleições e governar de acordo com suas propostas. Por isso preocupa-me o vazio na alternativa que está subentendida em suas críticas. Será possível governar bem países capitalistas sem reconhecer a importância do interesse individual e do mercado? Será possível ganhar eleições com uma mensagem só para os trabalhadores, excluindo a classe média? Liberdade não se confunde com competição, mas ambas são necessárias, e não apenas a primeira, como você sugere. Concordo que há uma barbárie capitalista, mas não vejo alternativa para a organização da produção no mundo atual senão através do mercado.
É por isso que o grande desafio dos socialistas modernos é governar o capitalismo de forma mais competente e mais justa do que os capitalistas. Alguma forma de socialismo de mercado poderá ser alcançada no futuro. Agora, porém, quando a Nova Esquerda disputa eleições e assume governos, ela não o faz para transformar o país em socialista em um breve espaço de tempo -essa ilusão voluntarista está descartada-, mas para aprofundar a democracia e promover uma maior igualdade de oportunidade, lograr melhores taxas de desenvolvimento econômico do que os partidos conservadores. Esse era o tema de Florença. Um tema nada "lírico", nada "pastoral", mas cheio de esperança e realisticamente utópico.


Luiz Carlos Bresser Pereira é professor titular de economia da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo Fernando Henrique Cardoso) e da Fazenda (governo Sarney).


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