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+ debate
Em resposta a artigo de Marilena Chaui, Bresser Pereira aponta a importância
da reunião de líderes em Florença
Esquerda nova e realista
Luiz Carlos Bresser Pereira
especial para a Folha
A Terceira Via é uma proposta inglesa
para a Nova Esquerda. Eu não concordo com todas as propostas de Tony
Blair, Anthony Giddens e o conjunto de
políticos e intelectuais que em torno deles se reuniu para pensar uma sociedade
mais justa e mais moderna nos quadros
do capitalismo contemporâneo. Posso
não concordar, mas reconheço que são
propostas generosas e realistas. Já na crítica que Marilena Chaui lhes endereçou
no Mais! (de 12/12/99) vejo a mesma generosidade, mas pouca viabilidade.
Por outro lado, Marilena, quando você
relaciona as reuniões de Florença e de
Seattle e vê na última a vitória dos excluídos, seu engano é grave.
Ali, sim, havia um conflito entre os países ricos, que em Florença tinham cinco
representantes, e os países em desenvolvimento -em Florença apenas representados pelo Brasil.
Globalização negativa
Nós, assim
como a China, a Índia, a Argentina, deveríamos querer comércio mais livre, enquanto os Estados Unidos e a Europa,
apesar de toda a sua retórica, querem, de
fato, o contrário. Os EUA, por meio dos
seus sindicatos de trabalhadores e dos
seus setores industriais ineficientes, e a
Europa, por intermédio também de seus
setores industriais ineficientes somados
à sua agricultura muito ineficiente, lutaram por um comércio menos livre, a não
ser nos serviços.
Os países em desenvolvimento não lograram perceber este fato, como também entendem que a globalização negativa não é a comercial, mas a financeira.
Hoje a razão externa pela qual nos
mantemos quase estagnados enquanto
os países avançados continuam a se desenvolver a taxas elevadas não está no
comércio, mas no endividamento internacional. A estratégia alucinada de crescimento com endividamento provoca a
valorização do câmbio e leva mais ao
desperdício de divisas com consumo do
que ao investimento. O saldo final é uma
dívida a ser paga a taxas de juros elevadas.
Marilena, vou discutir estes dois temas
com você. Nada é mais necessário hoje
no Brasil do que o debate, e o seu artigo
"Fantasias da Terceira Via" oferece-me
esta oportunidade. Se pretendesse ser
apenas uma crítica às idéias de Tony
Giddens, como em boa parte ele parece
ser, eu não me sentiria atraído ao debate.
Embora Giddens seja um notável sociólogo, que respeito, não tenho procuração
para defendê-lo nem concordo com todas as suas idéias.
Reunião histórica
A ambição de
Marilena, entretanto, é maior. Ela começa por criticar o "lirismo pastoral" da
reunião de chefes de governo social-democratas de 21 de novembro, em Florença. Reunião que ela, de pronto, identifica
como uma reunião da Terceira Via para,
em seguida, baseada antes em um livro
de Giddens do que nos debates que lá
ocorreram, passar a criticar radicalmente a Nova Social Democracia ou a Nova
Esquerda.
A mensagem da Terceira Via, segundo
a "tradução" de Marilena, seria simplesmente a seguinte: "Excluída a luta de
classes e a igualdade socioeconômica, o
Estado não precisa enfrentar o perigoso
problema da distribuição da renda e pode resolver suas dificuldades pela privatização dos direitos sociais, transformados em serviços sociais regidos pela lógica do mercado".
Ora, aquela reunião histórica, na qual
pela primeira vez se encontraram para
discutir valores e idéias políticas os chefes de governo social-democratas de seis
dos dez principais países do mundo em
termos de PIB (ou, o que é mais impressionante, os cinco chefes de governo social-democratas dos seis maiores países),
não pode ser reduzida dessa forma.
Excluamos o presidente brasileiro, para evitarmos partidarismos. Será razoável afirmar que Bill Clinton, Tony Blair,
Gerhard Schroeder, Lionel Jospin e Massimo D'Alema, que em seus países foram
eleitos opondo-se aos candidatos conservadores, podem ser dessa forma desclassificados? Teriam eliminado de suas
mentes a luta de classes e deixado de reconhecer a existências de graves desigualdades; entenderiam portanto desnecessário preocupar-se com distribuição
de renda? Os poucos problemas que ainda sobrassem esses senhores acreditariam poder resolvê-los cancelando os direitos sociais e reduzindo os serviços sociais de educação e saúde
à lógica do mercado? É
aceitável essa caricatura
desses cinco líderes políticos? Uma caricatura, que,
se Marilena for lógica, deverá também se estender
aos seus milhões de eleitores, que os elegeram em
nome de suas propostas
de lutar pela democracia e
pela justiça social.
Do seminário de Florença, Marilena cita uma
frase de Bill Clinton: "Desejamos uma economia
de mercado, mas não os valores da sociedade de mercado". Essa frase, segundo
ela, seria central para a Terceira Via. Ora,
Clinton realmente disse isso, mas não se
esqueceu de citar seu autor, Lionel Jospin. Desde quando o primeiro-ministro
pode ser identificado com a Terceira
Via? E desde quando é legítimo afirmar
que o seminário de Florença era uma
reunião da Terceira Via? Esta era a idéia
original de Blair, mas os demais chefes de
governo recusaram-na. Em inglês, o seminário ficou denominado "Progressive
Governance in the 21rst. Century" e, em
italiano, "Il Riformismo nel Secolo 21".
Por que recusaram? Não porque haja
uma discordância essencial, mas porque
a Terceira Via é o nome que a Nova Esquerda ou a Nova Social Democracia ou
a Social Democracia Moderna assumiu
na Grã-Bretanha. Ora, cada país tem
suas próprias peculiaridades no plano
ideológico e programático.
Lionel Jospin, que entre os chefes de
governo presentes é o mais contrário a
essa expressão, escreveu em "La Repubblica", o grande jornal social-democrata
italiano, três dias antes da reunião, um
artigo em que dizia: "Se a Terceira Via é
uma alternativa entre a social-democracia e o neoliberalismo, não estou nessa
via. Mas, se for apenas a forma assumida
pela social-democracia moderna na Grã-Bretanha, nada tenho a me opor". Opor-se-ia se a Terceira Via pretendesse substituir a social-democracia. Não se opõe
no caso alternativo porque o PSF (Partido Socialista Francês), como todos os demais partidos social-democratas no poder, é um partido que adota as idéias da
Nova Esquerda. Sua preocupação, porém, era justificada, porque alguns dos
formuladores da Terceira Via a vêem como não mais social-democrata e de esquerda, mas apenas como progressista.
São, entretanto, minoria.
Dois dias depois, no mesmo jornal, para que não restassem dúvidas, Blair começou seu artigo declarando-se social-democrata de centro-esquerda. Não era
uma resposta explícita a Jospin, mas era
clara.
E o próprio Bill Clinton, presidente de
um país em que o Partido Democrata
nunca se autodenominou de esquerda,
mas progressista ou "liberal" no sentido
americano, afirmou, em sua última intervenção em Florença, que "nós, democratas, que no espectro político americano nos situamos à esquerda...".
O que há de comum entre esses partidos da Nova Esquerda? Certamente não
é a "tradução" de Marilena, a não ser que
desclassifiquemos de uma penada eleitores e políticos progressistas nos países
avançados. A Nova Esquerda é a terceira
grande forma pela qual a esquerda se
apresenta no mundo.
Primeiro, foi a esquerda revolucionária, da luta de classes, de Marx, Lênin e
Trotsky. Depois foi a esquerda reformista e do Estado do Bem-Estar, de Bernstein, Beveridge e Léon Blum, que continuava a afirmar a luta de classes, pretendia chegar ao socialismo através da democracia, do gradual aumento da participação do Estado na produção, da garantia dos direitos sociais e que, na sua
forma mais subdesenvolvida, adotou como política macroeconômica um keynesianismo populista baseado em déficits
públicos crônicos que certamente Keynes repudiaria com horror.
Finalmente temos a Nova Esquerda de
Olaf Palm, Helmut Schmidt e Felipe
González, que, sendo realista e reconhecendo o crescimento da classe média e as
limitações do planejamento econômico,
amplia sua base de apoio social que não
pode mais limitar-se ao proletariado e
afirma a possibilidade de se lograr uma
sociedade mais democrática e mais justa
nos quadros de uma economia de mercado, desde que este seja devidamente
corrigido ou regulado pelo Estado.
A novidade de Blair
A Nova Esquerda, portanto, não é tão nova assim.
Certamente é muito mais antiga do que a
Terceira Via inglesa. Se desconsiderarmos a experiência escandinava, que é peculiar, sua primeira expressão ocorreu
na Alemanha, nos anos 70, logo seguida
pela espanhola do início dos anos 80. Depois temos a França de Mitterrand, Delors e Rocard, a partir de 1983. Mitterrand ainda se elegeu em 1980 com um
programa de nacionalizações da velha
esquerda, mas depois de dois anos verificou a inviabilidade desse caminho e reconheceu a importância do mercado e
das restrições econômicas.
Antes da Inglaterra temos, ainda, os
Novos Democratas, nos Estados Unidos,
com a eleição de Bill Clinton em 1992.
Enquanto isso, o Partido Trabalhista britânico amargava 17 anos fora do poder.
Foi só em 1997 que Tony Blair, depois de
renovar seu partido, conseguiu recuperar o poder para a esquerda com um discurso baseado no Novo Trabalhismo e
na Terceira Via.
A novidade de Blair e da Terceira Via
estava no fato de que, pela primeira vez,
políticos e intelectuais de esquerda desenvolviam de forma sistemática uma
justificação ideológica e um programa
coerente para a Nova Esquerda. Antes a
Nova Esquerda ganhava eleições e chegava ao poder, mas as políticas que adotava, de disciplina fiscal e de respeito às
leis do mercado, eram vistas como consequência mais das restrições econômicas do que de uma escolha. Blair chamou
um conjunto de notáveis intelectuais,
entre os quais o mais importante foi
Tony Giddens, para definir os novos valores e as novas propostas. A Nova Esquerda ganha afinal consistência ideológica e torna-se, também, um bom tema
de debate.
Educação e saúde
A Nova Esquerda não nega a diferença entre esquerda e
direita, ao contrário do que afirma Marilena. De esquerda continuam sendo os
partidos que estão dispostos a arriscar a
ordem em nome da justiça, enquanto de
direita continuam aqueles que priorizam
sempre a ordem em relação à justiça. Justiça social não é uma igualdade econômica pura e simples, que é impossível, mas
uma igualdade de oportunidades, preservando-se, especialmente, a igualdade
de oportunidade nas áreas básicas da
educação e da saúde.
Não se pretende eliminar a universalidade da educação básica e da saúde, que
devem ser integralmente financiadas pelo Estado, mas se propõe que a prestação
dos serviços seja feita cada vez mais por
entidades públicas não-estatais, de forma competitiva. A solidariedade continua um valor maior a ser alcançado e
preservado, mas não se ignora a necessidade de um individualismo responsável.
O mercado é visto como um eficiente
alocador de recursos e como um mau
distribuidor de renda. Por isso, o Estado
tem um papel secundário, mas efetivo
nas políticas industriais e um papel fundamental na distribuição. Reconhece-se
que a moral, particularmente a sexual,
passou por profundas transformações,
mas se afirma a necessidade de revalorizar a família. Em relação ao crime, declara-se que não basta reconhecer e atacar
suas causas sociais; é preciso também
preveni-lo com policiamento e puni-lo
com severidade.
É com essa mensagem que a Nova Esquerda tem vencido eleições nos países
avançados. Hoje o neoliberalismo, que
fracassou em suas promessas, está em
franco declínio, e a grande maioria dos
países ricos tem governos social-democratas. Fará esta mensagem sentido para
países em desenvolvimento como o Brasil? Sem dúvida, desde que o apoio à globalização não seja tão indiscriminado
como acontece com os países ricos.
Essa atitude favorável sem restrições à
globalização está especialmente presente
na Terceira Via inglesa e na Nova Democracia americana; mas é comum a todos
os países desenvolvidos. Eles já construíram seus respectivos Estados nacionais,
nós não. Marilena tem razão, portanto,
quando critica a Terceira Via por pretender reduzir a nação a um dado cultural.
Não, ela é um dado político fundamental, do qual, aliás, os governantes dos países ricos, sejam eles de esquerda ou de direita, não têm nenhuma dúvida quando
se trata de defender seus interesses nacionais.
Proteção feroz
Os países ricos já alcançaram um nível de acumulação de
capital que lhes permite adotar um discurso global. Na verdade, ainda que falem muito em comércio livre, estão permanentemente preocupados com a concorrência dos países em desenvolvimento e protegem seus mercados ferozmente, quando é necessário. Onde estão tranquilos é no setor financeiro, já que são
credores, não devedores, e, portanto,
suas economias não estão vulneráveis à
globalização financeira. Pelo contrário,
daí tiram lucros polpudos na forma de
altíssimas taxas de juros que nos cobram.
Nós precisamos de uma Nova Esquerda, mas que seja mais nacionalista. Que
esteja mais preocupada em defender o
trabalho e a empresa nacionais. Que saiba que o capital se faz em casa, e que são
suicidas as estratégias de desenvolvimento baseadas em endividamento externo. Que os fluxos de capital de empréstimo, que inicialmente se propõem a
financiar o investimento nacional, acabam por causar a valorização do câmbio,
provocando o aumento artificial dos salários e o desperdício de grande parte
dos recursos caros emprestados em consumo: viagens de turismo e artigos importados.
Bom para o Brasil
Marilena, entretanto, também resolve relacionar a reunião de Florença com o fracasso da reunião da Organização Mundial do Comércio em Seattle. Segundo a sabedoria
convencional, ocorreu ali o fracasso da
globalização, como se globalização negativa fosse a comercial, quando na verdade é a financeira. Segundo ela, "é notável
que a luta entre excluídos, que parecia
acontecer apenas no campo social nacional, ressurja com força máxima em Seattle". Ora, Marilena, o que eu vi lá foi outra coisa.
Foi a luta dos sindicatos e das ONGs
dos países desenvolvidos, principalmente dos EUA, contra a liberalização comercial que os desproteja da nossa competição do trabalho mais barato e da produção eficiente que existem no Brasil, na
Índia, na China. Foram os europeus protegendo sua agricultura contra a nossa
agricultura, muito mais eficiente. E foram os países em desenvolvimento
-pasmem!- batendo palmas, porque
nesse caso não sabem reconhecer seus
interesses nacionais.
O comércio mundial livre, Marilena, é
hoje muito mais benéfico do que prejudicial a um país como o Brasil. Temos
também que tomar cuidado nesta área,
mas um cuidado muito maior deve ser
dedicado às finanças. Enquanto os países
em desenvolvimento, até os anos 60, não
estavam endividados internacionalmente, apresentavam taxas de crescimento
satisfatórias. A quase estagnação em que
vivemos há 20 anos está diretamente relacionada com o nosso endividamento
dos anos 70 que, nos anos 90, por incrível
que pareça, repetiu-se. Errar é humano,
perseverar no erro... No entanto, quando
os países em desenvolvimento confundem globalização negativa com comércio, em vez de identificarem-na com finanças internacionais, equivocam-se
grosseiramente e se aliam a seus adversários, aos protecionistas do mundo desenvolvido, como aconteceu em Seattle.
Socialismo de mercado
Voltando
à Nova Esquerda, Marilena. Precisamos
de uma esquerda viável. De uma esquerda que possa ganhar eleições e governar
de acordo com suas propostas. Por isso
preocupa-me o vazio na alternativa que
está subentendida em suas críticas. Será
possível governar bem países capitalistas
sem reconhecer a importância do interesse individual e do mercado? Será possível ganhar eleições com uma mensagem só para os trabalhadores, excluindo
a classe média? Liberdade não se confunde com competição, mas ambas são necessárias, e não apenas a primeira, como
você sugere. Concordo que há uma barbárie capitalista, mas não vejo alternativa
para a organização da produção no
mundo atual senão através do mercado.
É por isso que o grande desafio dos socialistas modernos é governar o capitalismo de forma mais competente e mais
justa do que os capitalistas. Alguma forma de socialismo de mercado poderá ser
alcançada no futuro. Agora, porém,
quando a Nova Esquerda disputa eleições e assume governos, ela não o faz para transformar o país em socialista em
um breve espaço de tempo -essa ilusão
voluntarista está descartada-, mas para
aprofundar a democracia e promover
uma maior igualdade de oportunidade,
lograr melhores taxas de desenvolvimento econômico do que os partidos
conservadores. Esse era o tema de Florença. Um tema nada "lírico", nada
"pastoral", mas cheio de esperança e realisticamente utópico.
Luiz Carlos Bresser Pereira é professor titular de
economia da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo Fernando Henrique
Cardoso) e da Fazenda (governo Sarney).
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