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"Foucault, a Filosofia e a Literatura" investiga como o conceito de loucura
impregnou a crítica e o pensamento do filósofo
Os limites da transgressão
Peter Pál Pelbart
especial para a Folha
Os leitores habituais de Roberto Machado saberão reconhecer em
"Foucault, a Filosofia e a Literatura" seu
estilo inconfundível: a escrita clara, a hipótese cortante, a perspectiva abrangente, o trabalho de fôlego, a absoluta soberania na interpretação. Pela primeira vez,
porém, o autor cede à tentação já antiga
de abordar mais extensamente um domínio estético. Aproveitando o interesse
de Michel Foucault pela literatura, Machado se deixa arrastar, com um prazer
indisfarçável, pelas ondas revoltas de um
Roussel, Sade, Bataille, Hölderlin.
É essa a primeira novidade filosófica
do livro: pensar conjuntamente dois planos que tanto Foucault quanto seus intérpretes sempre consideraram como separados: por um lado, suas pesquisas do
período arqueológico, por outro, os textos circunstanciais sobre literatura, atribuídos ao seu gosto pessoal e a preferências íntimas. Foucault mesmo ajudou a
reforçar tal cisão, ao elogiar o fato de que
nenhum intérprete tenha se debruçado
sobre seu livro a respeito de Raymond
Roussel, tentando alguma conexão com
seus estudos históricos. Em franco desafio à desconexão pretendida por Foucault, Machado rastreia o sentido filosófico dessas frequentações, bem como sua
função estratégica no trajeto do autor.
Ao recosturar os textos histórico-arqueológicos com suas margens literárias,
o seu livro faz aparecer o fio invisível que
os alinhavava desde o início, a saber,Nietzsche e sua crítica da racionalidade moderna. Assim, ao reencontrar
"O Nascimento da Tragédia" no cerne da
"História da Loucura", ele diz: "A literatura em Foucault está para a loucura assim como a tragédia, em Nietzsche, está
para o culto dionisíaco".
E, ao reafirmar o lugar central da experiência trágica da loucura e sua inspiração nietzschiana na "História da Loucura" como critério positivo que permitiu a
Foucault avaliar e julgar o nascimento da
psiquiatria e da psicologia ("A grande
ambição da "História da Loucura" é medir a psicologia pela desmesura, pela desmedida da obra nietzschiana"), Machado desvenda aquilo que escapou à maioria dos comentadores: que essa experiência desarrazoada, posteriormente
domada e retomada pela literatura, é primordialmente um fenômeno de linguagem. Ou seja, é transgressão dos limites
impostos à linguagem.
Linguagem e loucura
Por conseguinte, a ontologia da loucura presente
no livro, da qual Foucault se retratou
posteriormente, é apenas, e necessariamente, uma ontologia da linguagem. Nela, assim como na literatura, está em
questão o ser da linguagem. É por onde
loucura e literatura se comunicam. Pois
na moderna literatura, conforme a concepção que dela têm Bataille, Blanchot e
toda uma linhagem que vai de Hölderlin
até Mallarmé e Artaud, passando por
Nietzsche, está em questão a linguagem
como transgressão dos limites da própria linguagem. Com o que o círculo está
completo, já que Foucault é devolvido a
uma certa atmosfera literária que não só
lhe apresentou Nietzsche (lembremos:
Foucault chegou a Nietzsche por meio de
Bataille e chegou a Bataille por meio de
Blanchot -percurso inteiramente insólito para um filósofo), mas também o introduziu a esse parentesco entre literatura e loucura.
As marcas desse circuito constituído
pela linguagem, pela transgressão e pela
experiência-limite vão muito além da
"História da Loucura". O tema da transgressão e dos limites ressoa, por um lado,
com a questão da finitude trabalhada a
partir da tematização da morte em "O
Nascimento da Clínica"; mas sobretudo
com a morte do homem, em "As Palavras e as Coisas", diretamente tributária
da questão nietzschiana da morte de
Deus. É quando seu sentido filosófico se
explicita e se amplia. E o autor pergunta: "Quem mais senão Nietzsche e os escritores franceses impregnados por seu
pensamento, como Klossowski e Blanchot, poderiam ter sugerido a Foucault
que a morte de Deus perpetrada pelo niilismo da modernidade só se completará
quando significar não o
aparecimento, mas o desaparecimento do homem?".
A literatura, no seu viés
nietzschiano de um pensamento trágico, aparece
como suporte à crítica do
humanismo e do sono antropológico e, mais geralmente, do niilismo moderno; mas também aponta, de modo afirmativo, com o
tema da linguagem numa perspectiva
não-fenomenológica, não-dialética e
não-antropocêntrica, para o além-do-homem.
O que emerge daí é um Foucault filósofo, para quem a linguagem literária possuía uma função estratégica, contestatória e afirmativa. Contestação do humanismo e afirmação de "um homem que
não tivesse mais nenhuma relação com
esse Deus de que ele é a imagem".
O autor avalia com percuciência o papel mais geral de Foucault: "Sua ousadia
em dar um basta à proliferação de discursos sobre o homem foi sua contribuição de filósofo e historiador dos saberes,
de arqueólogo para quem, à questão
kantiana "o que é o homem", seja finalmente dada a resposta nietzschiana que
ao mesmo tempo a recusa e a desarma: o
super-homem". De que nos serve, hoje,
revisitar o lugar da literatura no Foucault
do início da década de 60, quando foi ele
quem a abandonou, alguns anos depois,
e da maneira mais ostensiva, a seu "magro destino histórico", insistindo em que
a contestação passava doravante por outros lugares?
Contra o niilismo
Roberto Machado teve o mérito de mostrar, entre muitas outras coisas, que uma idéia de resistência ou alternativa que se apoiou na literatura, na loucura ou, mais amplamente, no ser da linguagem -num certo
momento, para tomar outros caminhos,
posteriormente, e que Foucault, inspirado em Blanchot, chamou de pensamento
do fora-, era resistência e alternativa
não à sociedade em geral, essa abstração
sociológica, mas a algo
muito preciso de nossa
modernidade, a saber: o
niilismo que Nietzsche já
diagnosticara, e cujas figuras demasiado humanas Foucault havia mapeado, por intermédio da
análise das ciências do
homem e das filosofias
modernas. Com esse livro, fica mais
compreensível o deslocamento da resistência -ou sua pulverização- e até sua
total remodelação, tal como Foucault o
pensou e exercitou ao longo de seu trajeto ulterior.
Blanchot insistiu em que o espaço literário, esse "outro mundo" que Kafka habitava, não era um além-mundo, nem
sequer um outro mundo, mas o outro de
todo e qualquer mundo. Creio que a
obra de Foucault, na sua passagem pela
literatura e pela loucura, mas sobretudo
no seu abandono delas, deu eco a isso
que Blanchot chamou de outro de todo e
qualquer mundo, ou de fora, ou de exterioridade. Com isso, ela nos ajuda a repensar o estatuto da exterioridade hoje,
num momento em que esta sofre uma de
suas mais assustadoras reversões, e temos a impressão sufocante, em pleno capitalismo planetário, de que se esgotou o
campo do possível.
Com efeito, por um bom tempo coube
à literatura ou à loucura ou às minorias,
mas também, em parte, à revolução, encarnar a promessa de um fora absoluto.
Esse sonho caducou, feliz ou infelizmente. Ao reler o trajeto de Foucault tendo
por pano de fundo essa questão contemporânea, em vez de perguntar nostalgicamente o que nos resta hoje da exterioridade que autores como Foucault nos
legaram, seja pelo tema da loucura ou da
literatura, seria o caso de avaliar, à luz de
seus saltos estratégicos, o quanto as exterioridades imanentes de que dispomos
-e que eles mesmos nos fizeram ver-
são capazes de ancorar nossa resistência
ao intolerável ou favorecer a criação de
novos possíveis. Ainda e sempre sob o
signo do além-do-homem, cuja função
estratégica, na obra de Foucault e para
além dela, Roberto Machado tão bem
circunscreveu em seu livro importantíssimo que agora vem a lume.
Peter Pál Pelbart é professor de filosofia na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e autor de "O Tempo Não-Reconciliado" (Ed. Perspectiva), entre outros.
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