São Paulo, Domingo, 30 de Janeiro de 2000


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"Foucault, a Filosofia e a Literatura" investiga como o conceito de loucura impregnou a crítica e o pensamento do filósofo
Os limites da transgressão

Peter Pál Pelbart
especial para a Folha

Os leitores habituais de Roberto Machado saberão reconhecer em "Foucault, a Filosofia e a Literatura" seu estilo inconfundível: a escrita clara, a hipótese cortante, a perspectiva abrangente, o trabalho de fôlego, a absoluta soberania na interpretação. Pela primeira vez, porém, o autor cede à tentação já antiga de abordar mais extensamente um domínio estético. Aproveitando o interesse de Michel Foucault pela literatura, Machado se deixa arrastar, com um prazer indisfarçável, pelas ondas revoltas de um Roussel, Sade, Bataille, Hölderlin. É essa a primeira novidade filosófica do livro: pensar conjuntamente dois planos que tanto Foucault quanto seus intérpretes sempre consideraram como separados: por um lado, suas pesquisas do período arqueológico, por outro, os textos circunstanciais sobre literatura, atribuídos ao seu gosto pessoal e a preferências íntimas. Foucault mesmo ajudou a reforçar tal cisão, ao elogiar o fato de que nenhum intérprete tenha se debruçado sobre seu livro a respeito de Raymond Roussel, tentando alguma conexão com seus estudos históricos. Em franco desafio à desconexão pretendida por Foucault, Machado rastreia o sentido filosófico dessas frequentações, bem como sua função estratégica no trajeto do autor. Ao recosturar os textos histórico-arqueológicos com suas margens literárias, o seu livro faz aparecer o fio invisível que os alinhavava desde o início, a saber,Nietzsche e sua crítica da racionalidade moderna. Assim, ao reencontrar "O Nascimento da Tragédia" no cerne da "História da Loucura", ele diz: "A literatura em Foucault está para a loucura assim como a tragédia, em Nietzsche, está para o culto dionisíaco". E, ao reafirmar o lugar central da experiência trágica da loucura e sua inspiração nietzschiana na "História da Loucura" como critério positivo que permitiu a Foucault avaliar e julgar o nascimento da psiquiatria e da psicologia ("A grande ambição da "História da Loucura" é medir a psicologia pela desmesura, pela desmedida da obra nietzschiana"), Machado desvenda aquilo que escapou à maioria dos comentadores: que essa experiência desarrazoada, posteriormente domada e retomada pela literatura, é primordialmente um fenômeno de linguagem. Ou seja, é transgressão dos limites impostos à linguagem.

Linguagem e loucura
Por conseguinte, a ontologia da loucura presente no livro, da qual Foucault se retratou posteriormente, é apenas, e necessariamente, uma ontologia da linguagem. Nela, assim como na literatura, está em questão o ser da linguagem. É por onde loucura e literatura se comunicam. Pois na moderna literatura, conforme a concepção que dela têm Bataille, Blanchot e toda uma linhagem que vai de Hölderlin até Mallarmé e Artaud, passando por Nietzsche, está em questão a linguagem como transgressão dos limites da própria linguagem. Com o que o círculo está completo, já que Foucault é devolvido a uma certa atmosfera literária que não só lhe apresentou Nietzsche (lembremos: Foucault chegou a Nietzsche por meio de Bataille e chegou a Bataille por meio de Blanchot -percurso inteiramente insólito para um filósofo), mas também o introduziu a esse parentesco entre literatura e loucura.
As marcas desse circuito constituído pela linguagem, pela transgressão e pela experiência-limite vão muito além da "História da Loucura". O tema da transgressão e dos limites ressoa, por um lado, com a questão da finitude trabalhada a partir da tematização da morte em "O Nascimento da Clínica"; mas sobretudo com a morte do homem, em "As Palavras e as Coisas", diretamente tributária da questão nietzschiana da morte de Deus. É quando seu sentido filosófico se explicita e se amplia. E o autor pergunta: "Quem mais senão Nietzsche e os escritores franceses impregnados por seu pensamento, como Klossowski e Blanchot, poderiam ter sugerido a Foucault que a morte de Deus perpetrada pelo niilismo da modernidade só se completará quando significar não o aparecimento, mas o desaparecimento do homem?". A literatura, no seu viés nietzschiano de um pensamento trágico, aparece como suporte à crítica do humanismo e do sono antropológico e, mais geralmente, do niilismo moderno; mas também aponta, de modo afirmativo, com o tema da linguagem numa perspectiva não-fenomenológica, não-dialética e não-antropocêntrica, para o além-do-homem. O que emerge daí é um Foucault filósofo, para quem a linguagem literária possuía uma função estratégica, contestatória e afirmativa. Contestação do humanismo e afirmação de "um homem que não tivesse mais nenhuma relação com esse Deus de que ele é a imagem".
O autor avalia com percuciência o papel mais geral de Foucault: "Sua ousadia em dar um basta à proliferação de discursos sobre o homem foi sua contribuição de filósofo e historiador dos saberes, de arqueólogo para quem, à questão kantiana "o que é o homem", seja finalmente dada a resposta nietzschiana que ao mesmo tempo a recusa e a desarma: o super-homem". De que nos serve, hoje, revisitar o lugar da literatura no Foucault do início da década de 60, quando foi ele quem a abandonou, alguns anos depois, e da maneira mais ostensiva, a seu "magro destino histórico", insistindo em que a contestação passava doravante por outros lugares?

Contra o niilismo
Roberto Machado teve o mérito de mostrar, entre muitas outras coisas, que uma idéia de resistência ou alternativa que se apoiou na literatura, na loucura ou, mais amplamente, no ser da linguagem -num certo momento, para tomar outros caminhos, posteriormente, e que Foucault, inspirado em Blanchot, chamou de pensamento do fora-, era resistência e alternativa não à sociedade em geral, essa abstração sociológica, mas a algo muito preciso de nossa modernidade, a saber: o niilismo que Nietzsche já diagnosticara, e cujas figuras demasiado humanas Foucault havia mapeado, por intermédio da análise das ciências do homem e das filosofias modernas. Com esse livro, fica mais compreensível o deslocamento da resistência -ou sua pulverização- e até sua total remodelação, tal como Foucault o pensou e exercitou ao longo de seu trajeto ulterior.
Blanchot insistiu em que o espaço literário, esse "outro mundo" que Kafka habitava, não era um além-mundo, nem sequer um outro mundo, mas o outro de todo e qualquer mundo. Creio que a obra de Foucault, na sua passagem pela literatura e pela loucura, mas sobretudo no seu abandono delas, deu eco a isso que Blanchot chamou de outro de todo e qualquer mundo, ou de fora, ou de exterioridade. Com isso, ela nos ajuda a repensar o estatuto da exterioridade hoje, num momento em que esta sofre uma de suas mais assustadoras reversões, e temos a impressão sufocante, em pleno capitalismo planetário, de que se esgotou o campo do possível.
Com efeito, por um bom tempo coube à literatura ou à loucura ou às minorias, mas também, em parte, à revolução, encarnar a promessa de um fora absoluto. Esse sonho caducou, feliz ou infelizmente. Ao reler o trajeto de Foucault tendo por pano de fundo essa questão contemporânea, em vez de perguntar nostalgicamente o que nos resta hoje da exterioridade que autores como Foucault nos legaram, seja pelo tema da loucura ou da literatura, seria o caso de avaliar, à luz de seus saltos estratégicos, o quanto as exterioridades imanentes de que dispomos -e que eles mesmos nos fizeram ver- são capazes de ancorar nossa resistência ao intolerável ou favorecer a criação de novos possíveis. Ainda e sempre sob o signo do além-do-homem, cuja função estratégica, na obra de Foucault e para além dela, Roberto Machado tão bem circunscreveu em seu livro importantíssimo que agora vem a lume.


Peter Pál Pelbart é professor de filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de "O Tempo Não-Reconciliado" (Ed. Perspectiva), entre outros.


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