São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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Número relativamente baixo de fugas nas senzalas da América colonial sugere que os escravos estavam ansiosos por trabalho e desfrute de atividades autônomas e menos preocupados com sua libertação

A cultura da submissão

MANOLO FLORENTINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tentativa em curso de fundar o Brasil bicolor talvez converta a nossa história em campo de legitimação de uma suposta identidade negra (cuidado: quem recorrer a Clio [uma das nove musas da mitologia grega, patrona da história] para afiançar a igualmente vã identidade branca poderá ser processado por racismo; o mesmo vale para quem vestir estampas do tipo "100% branco" ou chamar suas bandas de rock de Raça Branca ou Nação Caucasóide).
Tal movimento exigirá elidir termos sido um país multicultural, estágio já ultrapassado em prol de uma sociedade miscigenada, enquanto a Europa e os Estados Unidos apenas tangenciam o que há muito deixamos para trás. Não me surpreenderei, pois, se logo retornarmos à arenga do "verdadeiro" escravo, indelevelmente associado a Zumbi dos Palmares.


Poucas evasões expressam a secular estabilidade do cativeiro


No tocante às fugas de escravos, o novo velho enredo pode abonar-se da fé dos interessados, mas não necessariamente do que os arquivos legaram. Por exemplo, menos de 3% de 1.229 inventários "post-mortem" abertos no Rio de Janeiro e em São Paulo entre 1730 e 1835 registram nomes de escravos fugidos, os quais representam menos de 1% dos 13.823 cativos arrolados nesse tipo de fonte. Por se tratar de escravos tidos pelos próprios senhores como inapelavelmente perdidos, anotados para dirimir dúvidas sobre os valores a partilhar, semelhantes índices parecem bastante confiáveis.
Eles sugerem terem sido menos freqüentes do que se imagina as evasões mediante as quais os cativos se organizavam em bandos, ou reuniam-se a quilombos preexistentes. Exíguas e circunscritas a poucas propriedades, a essas ausências definitivas -designadas "grand marronages" por Gabriel Dabien- costuma-se chamar fugas-rompimento.

Fugas fugazes
Fontes qualitativamente distintas, os anúncios de fugas publicados em jornais desvelam outros cenários. Embora abarquem também as fugas-rompimento, eles permitem melhor conhecer as evasões temporárias, resultantes do impacto inicial dos desembarques dos africanos ou do rompimento de acordos fundados na tradição. Escapava-se por alguns dias ou semanas, mais individualmente do que em grupos, e os fugitivos se escondiam nos arredores dos locais de trabalho, nas casas de parentes ou nas senzalas vizinhas.
Com prudência podem-se chamá-las fugas reivindicativas, pois não raro tendiam a obter pequenas conquistas que alargavam a autonomia do escravo na escravidão.
Ao prescreverem punições distintas para ambas, as leis francesas e espanholas reconheciam a diferença entre as fugas temporárias e as de rompimento. Os jornais cariocas das primeiras décadas do século 19 asseveram tal distinção, e as evasões anunciadas podiam abarcar, com boa vontade, de 1% a 2% dos escravos da corte.
De moto próprio ou não, a maioria dos fujões voltava -o vezeiro em escapar mas também o bêbado contumaz e o demente, que em delírios recusava-se a crer ser o futuro apenas mais passado à espera de repetição; o espancado, que nos ares da cidade ou da mata secava as fístulas e mitigava a sede de vingança; a preta grávida a vagar por becos e vielas na ilusão não legar o seu destino infeliz; o crioulo recém-adquirido, teimoso no regresso ao antigo lar para reencontrar amores; sobretudo o africano recém-chegado, errante por ruas desconhecidas, ignorante do poder que o encarnava propriedade.
É difícil avaliar o quão generalizáveis são os números acima. Porque, fascinados por grandes revoltas e quilombos, muitos passam ao largo das atitudes não tendentes a superar a escravidão. Ou aceitam sem reservas as estimativas de senhores cujo afã de controle os levava a exagerar a escala real do protesto. Não poderia ser diferente: a fuga era um ato político extremo, cuja simples possibilidade garantia ao escravo algum espaço de negociação.

Paranóia senhorial
Eis a origem de uma espécie de paranóia senhorial, da qual não escapou o funcionário castelhano que estimou em 7.000 os cimarrones africanos dispersos por La Española [hoje Haiti e República Dominicana] em meados do século 16. O Brasil de 1740 decretou que por "quilombo" deveria entender-se todo bando de mais de cinco fugitivos habitando um descampado, mesmo sem evidências de poderem se sustentar por si próprios.
Contas feitas, não surpreende que, de 70 revoltas de escravos tidas como ocorridas no Caribe britânico de 1649 a 1833, 32 simplesmente jamais se tenham materializado.
No Vice-Reino do Rio da Prata [hoje Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia] de 1768, logo após a expulsão dos religiosos, não havia evasões nas estâncias jesuíticas de San Miguel de Tucumán [capital da região de Tucumán, no nordeste argentino] e de Santiago del Estero [norte da Argentina]; na de La Rioja [noroeste da Argentina], apenas 1,1% dos cativos estava ausente. A institucionalização da cultura da alforria em áreas de colonização ibérica por certo ajudava.
Mais freqüentes, mas nem por isso extravagantes, eram as fugas em colônias protestantes do Caribe. Em 1789, o pedagogo Hans West reportou 1.340 fugitivos contumazes ou definitivamente ausentes na ilha de St. Croix [Ilhas Virgens norte-americanas] -6% da escravaria.
Estimativa mais precisa produziu em 1792 o engenheiro P. L. Oxholm, futuro governador geral da ilha -96 para sempre evadidos, ou 0,5% dos 18.121 escravos. Seu relatório mencionava ainda 2.082 fugas reivindicativas, cifra 20 vezes superior às fugas-rompimento. Em 1802, os definitivamente ausentes representavam menos de 3% dos 3.150 cativos da ilha de St. Thomas.
Óbvio, as fugas podiam assumir enormes proporções, como em situações de pré ou pós-revolta ou em meio a conflitos entre as metrópoles. Evasões maciças seguiram-se à derrota dos africanos que, em 1522, mergulharam os arredores da cidade de São Domingos em uma onda de assassinatos e destruições.

Aculturação
Quando piratas holandeses saquearam La Española (1626), diversos escravos aproveitaram para escapar -alguns até acompanharam os flibusteiros. Em 1690, 400 cativos queimaram a "plantation" de Sutton e se refugiaram nos bosques do centro-sul da Jamaica. Segundo o cronista Reimert Haageenssen, na St. Croix de 1750 muitos se arruinavam devido às evasões de 20 a 25 escravos por noite. Tudo isso enseja prudência nas generalizações, e nossos números devem ser tomados como ordens de grandeza plausíveis.
Fica a sugestão: em geral baixos, os índices de fugas eram ainda menores quando se tratava de abandonar definitivamente a escravidão, sobretudo na América Latina.
Poucas evasões expressam a multissecular estabilidade do cativeiro, por força dos mecanismos de controle e, em especial, da aculturação que mitigava parte da opressão. No limite, resultavam da afirmação de uma cultura escrava ansiosa pelo trabalho, por tarefas e o desfrute de tempo para se engajar em atividades autônomas. Tratava-se de traço cultural presente em todas as américas e mais visível em conjunturas de pouca integração ao tráfico atlântico. De modo definitivo: o protesto escravo situava-se menos no campo político formal do que no plano das demandas por relativa autonomia na escravidão.
Aspirava-se ser livre, é claro, mas o conteúdo dessa liberdade em geral remetia ao dispor de si. Semelhante elaboração demandava o tempo de se aculturar, de vivenciar na carne e na alma a pedagogia transformadora do cativo -por exemplo, do prisioneiro- em escravo.

Manolo Florentino é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "A Paz das Senzalas" (Civilização Brasileira). Escreve bimestralmente na seção "Autores".


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