São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 2005

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+ sociedade

O filósofo Jean-Luc Nancy explica como as fotos dos campos de concentração esgotam a idéia de representação

Máquinas da auto-idolatria

JEAN BIRNBAUM
DO "LE MONDE"

No momento em que a comemoração do 60º aniversário da libertação dos campos de extermínio nazistas recoloca a questão de sua representação impossível, o filósofo Jean-Luc Nancy analisa a profusão de imagens à qual essas cerimônias deram lugar (exposições de fotos, documentários, obras de ficção etc.).
 

Pergunta - Que reação lhe inspira a atual erupção de imagens que procuram mostrar "o inimaginável"?
Jean-Luc Nancy -
Nada em especial. É normal que as imagens se multipliquem. Não há razão nenhuma para rejeitá-las. Não é o caso de ser iconoclasta, mas de, a cada vez, questionar a natureza da imagem: será que ela "satura"? Ela esgota um sentido ou não? Um filme como "A Lista de Schindler" esgota seu sentido. "Shoah", de Lanzmann, não o faz.


É preciso recusar-se a acreditar que teríamos "razão"


Mas este último não é o único filme nem a única imagem possíveis. A questão é a da inscrição, na imagem, de uma abertura, de um não completo, de um inimaginável. Existem imagens que são olhares e imagens de voyeur; estes últimos querem ver o invisível. É a pornografia: mais do que um querer ver, é um querer ver tudo, um querer gozar por ver.

Pergunta - Em um livro intitulado "Au Fond des Images" (No fundo das Imagens, ed. Galilée, 2003), o sr. destacou a contradição que "proíbe" a representação de Auschwitz: se a realidade dos campos é impossível de ser colocada em imagens, o sr. diz, é porque eles próprios encenaram "a execução inequívoca da representação". O que o sr. entende por isso?
Nancy -
Os campos são uma máquina de representação: o nazista oferece o espetáculo de sua força todo-poderosa e de sua decadência absoluta, que essa força fabricou como sua imagem contrária.
É uma "sobre-representação", cuja representação não podemos tentar realizar sem correr o risco ou de esgotar o movimento de gozo ou de perder o próprio objeto. Também podemos dizer que a "sobre-representação" do campo (da qual a rampa de chegada ou a praça da chamada matinal são as cenas sintomáticas) é uma representação plena, saturada: tudo é dito, tudo está presente nela, nenhuma linha de fuga escapa em direção a uma ausência mais importante do que o que está presente. É exatamente o que nosso pensamento greco-monoteísta designa como "idolatria". O nazismo é a auto-idolatria absoluta.

Pergunta - "Mostrar as imagens mais terríveis é sempre possível, mas mostrar aquilo que mata qualquer possibilidade de imagem é impossível, a não ser que se refaça o gesto do carrasco", o sr. escreve. Sob uma aparência angelical, será que a pedagogia da memória não reencena a cena do extermínio?
Nancy -
A memória deve ser tratada como a imagem: ou ela congela e satura um passado num "presente" intemporal e é às vezes uma melancolia implacável (para aquele que se recorda), às vezes uma abstração pura (para o jovem para quem ela não é memória) ou, então, é um ato, uma mobilização do presente vivo, e é outra coisa. Essa memória prescinde de "recordações": o sofrimento do passado informa a experiência do presente. Não se trata tanto de dizer "que horror!" quanto de indagar o que a tornou possível e por que "o ventre é sempre fecundo/ de onde sai o monstro imundo" (Brecht).

Pergunta - Na celebração visual da memória do Holocausto devemos suspeitar a presença de "uma vontade de gravar em bronze" uma barbárie apresentada como sendo passada, quando, como o sr. diz, "o mundo que fez Auschwitz ainda é nosso mundo"?
Nancy -
De fato, esse mundo é o mundo de uma história rompida (e não "acabada"!): a Alemanha e a Espanha dos anos 1930 sentiam que se rompia a história do Ocidente triunfante, de seu domínio sobre o progresso. Pode-se entender Auschwitz como o grito frenético de um desejo de ir até o fim da ruptura, para "regenerar" tudo. A regeneração apodreceu nas valas comuns mas também a história ficou em suspenso.
Existe sempre o risco de querer chamar à razão um destino último, um valor supremo. É preciso, sobretudo, recusar-se a acreditar que teríamos "razão". É preciso rever a própria "razão". As fotos terríveis chegadas de prisões militares no Iraque formam representações saturadas (mesmo em seu caráter sem dúvida acidental ou marginal, sem a vontade e decisão sistemática dos campos): qualquer democrata comum pode, da noite para o dia, tornar-se voyeur de um todo-poder fantasmático.
A tomada de fotos é tão importante quanto os atos fotografados: as pessoas podem se ver gozando o efeito de seu poder. Isso supõe uma impotência muito grande, que não é dos indivíduos, mas de uma cultura, uma civilização, uma história -as nossas. Pois não quero induzir à estigmatização -dos EUA ou de quem for- que seguisse o exemplo daquela pela qual condenamos a ordem imposta pela SS.
Mais do que nunca, a pergunta deve ser: como isso é possível? Não é porque exista algo de monstro dentro do homem (o que sempre foi verdade), mas porque o "homem" não nos dá mais a medida de nada. Com relação a que deve-se medir o homem? Pascal escreve que o "o homem supera infinitamente o homem", e é isso o que uma imagem deve nos fazer sentir. A força todo-poderosa é um infinito mau, uma caricatura, uma imagem saturada.


Tradução de Clara Allain.


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