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+ sociedade
O filósofo Jean-Luc Nancy explica como as fotos dos campos de concentração esgotam a idéia de representação
Máquinas da auto-idolatria
JEAN BIRNBAUM
DO "LE MONDE"
No momento em que a comemoração do 60º aniversário da libertação dos
campos de extermínio nazistas recoloca a questão de sua representação impossível, o filósofo
Jean-Luc Nancy analisa a profusão
de imagens à qual essas cerimônias
deram lugar (exposições de fotos,
documentários, obras de ficção etc.).
Pergunta - Que reação lhe inspira a
atual erupção de imagens que procuram mostrar "o inimaginável"?
Jean-Luc Nancy - Nada em especial.
É normal que as imagens se multipliquem. Não há razão nenhuma para rejeitá-las. Não é o caso de ser iconoclasta, mas de, a cada vez, questionar a natureza da imagem: será que
ela "satura"? Ela esgota um sentido
ou não? Um filme como "A Lista de
Schindler" esgota seu sentido.
"Shoah", de Lanzmann, não o faz.
É preciso recusar-se a acreditar que teríamos "razão"
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Mas este último não é o único filme nem a única imagem possíveis. A
questão é a da inscrição, na imagem,
de uma abertura, de um não completo, de um inimaginável. Existem
imagens que são olhares e imagens
de voyeur; estes últimos querem ver
o invisível. É a pornografia: mais do
que um querer ver, é um querer ver
tudo, um querer gozar por ver.
Pergunta - Em um livro intitulado
"Au Fond des Images" (No fundo das
Imagens, ed. Galilée, 2003), o sr. destacou a contradição que "proíbe" a representação de Auschwitz: se a realidade dos campos é impossível de ser
colocada em imagens, o sr. diz, é porque eles próprios encenaram "a execução inequívoca da representação".
O que o sr. entende por isso?
Nancy - Os campos são uma máquina de representação: o nazista
oferece o espetáculo de sua força todo-poderosa e de sua decadência absoluta, que essa força fabricou como
sua imagem contrária.
É uma "sobre-representação", cuja representação não podemos tentar realizar sem correr o risco ou de
esgotar o movimento de gozo ou de
perder o próprio objeto. Também
podemos dizer que a "sobre-representação" do campo (da qual a rampa de chegada ou a praça da chamada matinal são as cenas sintomáticas) é uma representação plena, saturada: tudo é dito, tudo está presente nela, nenhuma linha de fuga escapa em direção a uma ausência mais
importante do que o que está presente. É exatamente o que nosso
pensamento greco-monoteísta designa como "idolatria". O nazismo é
a auto-idolatria absoluta.
Pergunta - "Mostrar as imagens
mais terríveis é sempre possível, mas
mostrar aquilo que mata qualquer
possibilidade de imagem é impossível, a não ser que se refaça o gesto do
carrasco", o sr. escreve. Sob uma aparência angelical, será que a pedagogia da memória não reencena a cena
do extermínio?
Nancy - A memória deve ser tratada como a imagem: ou ela congela e
satura um passado num "presente"
intemporal e é às vezes uma melancolia implacável (para aquele que se
recorda), às vezes uma abstração
pura (para o jovem para quem ela
não é memória) ou, então, é um ato,
uma mobilização do presente vivo, e
é outra coisa. Essa memória prescinde de "recordações": o sofrimento
do passado informa a experiência do
presente. Não se trata tanto de dizer
"que horror!" quanto de indagar o
que a tornou possível e por que "o
ventre é sempre fecundo/ de onde
sai o monstro imundo" (Brecht).
Pergunta - Na celebração visual da
memória do Holocausto devemos suspeitar a presença de "uma vontade de
gravar em bronze" uma barbárie
apresentada como sendo passada,
quando, como o sr. diz, "o mundo que
fez Auschwitz ainda é nosso mundo"?
Nancy - De fato, esse mundo é o
mundo de uma história rompida (e
não "acabada"!): a Alemanha e a Espanha dos anos 1930 sentiam que se
rompia a história do Ocidente triunfante, de seu domínio sobre o progresso. Pode-se entender Auschwitz
como o grito frenético de um desejo
de ir até o fim da ruptura, para "regenerar" tudo. A regeneração apodreceu nas valas comuns mas também a história ficou em suspenso.
Existe sempre o risco de querer
chamar à razão um destino último,
um valor supremo. É preciso, sobretudo, recusar-se a acreditar que teríamos "razão". É preciso rever a
própria "razão". As fotos terríveis
chegadas de prisões militares no Iraque formam representações saturadas (mesmo em seu caráter sem dúvida acidental ou marginal, sem a
vontade e decisão sistemática dos
campos): qualquer democrata comum pode, da noite para o dia, tornar-se voyeur de um todo-poder
fantasmático.
A tomada de fotos é tão importante quanto os atos fotografados: as
pessoas podem se ver gozando o
efeito de seu poder. Isso supõe uma
impotência muito grande, que não é
dos indivíduos, mas de uma cultura,
uma civilização, uma história -as
nossas. Pois não quero induzir à estigmatização -dos EUA ou de
quem for- que seguisse o exemplo
daquela pela qual condenamos a ordem imposta pela SS.
Mais do que nunca, a pergunta deve ser: como isso é possível? Não é
porque exista algo de monstro dentro do homem (o que sempre foi verdade), mas porque o "homem" não
nos dá mais a medida de nada. Com
relação a que deve-se medir o homem? Pascal escreve que o "o homem supera infinitamente o homem", e é isso o que uma imagem
deve nos fazer sentir. A força todo-poderosa é um infinito mau, uma
caricatura, uma imagem saturada.
Tradução de Clara Allain.
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