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CENA PARALISADA
"Teatro Reunido" de Lúcio Cardoso traz as oito peças escritas pelo autor de "Crônica da Casa Assassinada"
SÍLVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
publicação do "Teatro Reunido" de Lúcio Cardoso é o
resgate de uma dramaturgia
pouco valorizada na cena e
na historiografia teatral.
A despeito da boa recepção crítica
de romances como "Crônica da Casa Assassinada" (Civilização Brasileira) -que, ao contrário de outros
livros, não se limitou à primeira edição de 1959-, a produção dramática do escritor mineiro foi objeto de
constantes avaliações negativas,
compreensíveis por conta dos excessos literários e do manejo precário
da carpintaria cênica mas também
pelo desvio da tendência dominante
na literatura brasileira da década de
40 -o regionalismo social de escritores nordestinos como Graciliano
Ramos e José Lins do Rego.
Quando Cardoso escreve as primeiras peças, "O Escravo" e "O Filho
Pródigo", encenadas pelos Comediantes em 1943 e pelo Teatro Experimental do Negro em 1947, sua obra
já é vista com reservas.
O traçado intimista, a ascendência
da memória e da subjetividade na
elaboração das tramas precárias, o
deslocamento do plano objetivo da
realidade brasileira para a duração
psíquica dos sujeitos ficcionais sob
influência de Proust, Faulkner, Julian Green e François Mauriac compõem uma narrativa abstrata, de
tendência reflexiva, cujo viés psicológico Alfredo Bosi considera "freudiano-surrealista" ou "freudiano-expressionista".
Essa via subjetiva de criação se ramifica em diários, poemas, romances, contos e dramaturgia e se explicita na repetição do tema da memória e de personagens no limiar da
loucura, que migram da prosa para a
poesia e do teatro para o cinema de
Lúcio Cardoso.
E, na expressão dramática, paralisam o conflito pela presença obsessiva da morte e de figuras dominadas
por forças obscuras que as transformam em quase marionetes de um
outro que as mantém como reféns.
Tendências simbolistas
Com pouca tradição em nosso teatro, esses textos descendem de tendências simbolistas e têm certa proximidade com as peças de Roberto
Gomes, quando acentuam a atmosfera de mistério dos ambientes e a
obscuridade das ações das personagens. Nesse caso, elas são contorcidas por angústias quase incompreensíveis, sem causa nem justificativa aparentes, o que sem dúvida
as distancia das figuras dramáticas
tradicionais e ressalta seu parentesco com o expressionismo.
Especialmente com certas criações
de Strindberg, em que o domínio e a
destruição de um indivíduo pelo outro são o núcleo da construção ficcional. É o caso de "Angélica", texto
de 1950 em que o temperamento
destrutivo da protagonista aniquila
a vontade das jovens a seu redor, salientando um dos temas recorrentes
desse teatro, em que o estranho é
uma "presença-ausência" ameaçadora dentro de nós.
A omissão de dados concretos nos
textos, que pouco se interessam por
determinações sociológicas e mal revelam as motivações das personagens e o ambiente cultural de onde
provêm, acaba descolando os enredos do tempo histórico e abre espaço para críticas contundentes -como a de Décio de Almeida Prado a
"O Filho Pródigo", considerado um
"monumento de literatice" em que a
realidade social do negro brasileiro é
preterida pela alegoria bíblica.
Personagens em ruína
De fato, distanciados numa época
lendária e isolados numa terra cujos
limites não podem transpor, os protagonistas negros limitam-se às paixões mais primitivas enquanto sonham com a fuga e o mar, o que leva
o crítico a desconfiar da opção do
autor por símbolos artificiais diante
da dura realidade do negro brasileiro. Apesar disso, Décio não deixa de
reconhecer o parentesco da proposta com a obra de Claudel, a seu ver o
único dramaturgo capaz de "assumir o ar modesto de quem acabou
de reescrever a Bíblia sem resvalar
pelo ridículo".
Ou projetar-se no plano da irrealidade em que já se dilaceravam as
personagens em ruína de "O Escravo", obcecadas pela presença do irmão morto e sufocadas numa atmosfera de pesadelo -como a que
precede a chegada do protagonista
Marcos e que já está presente na sondagem interior que alimenta um dos
primeiros romances do escritor, "A
Luz no Subsolo", de 1936, de inspiração dostoievskiana.
Em carta a Fernando Sabino, famosa pela acidez crítica, Mário de
Andrade se refere a essa "obra fracassada", que se afasta do "cafajestismo do romance nacional contemporâneo" para se voltar para a tendência "universalista, psicofilosófica, profundista, valoreternista" que
o escritor representa na literatura
brasileira.
Os traços da tendência que o crítico menospreza são evidentes nas oito peças que compõem o "Teatro
Reunido". O peso do medo e do mistério e a paralisia no passado, acrescidos do gosto pela palavra excessiva
e por personagens assombradas por
espectros dos mortos, mais ativos
que elas, dão a medida das dificuldades de encenação dos textos e das resistências que encontraram no meio
teatral da época.
Gustavo Dória menciona a constante dificuldade de encontrar atores que se interessassem por interpretá-los, por considerá-los excessivamente intelectualizados e herméticos, inacessíveis ao espectador médio, e que persistiu quando o dramaturgo selecionou elenco para o Teatro de Câmara do Rio de Janeiro, que
estreou com sua peça "A Corda de
Prata", em 1947.
Segundo Sábato Magaldi, o insucesso da montagem contribuiu para
associar a produção do autor a certa
linha de teatro literário que fica pouco à vontade em cena. E aparece, para o leitor, na seqüência verbal de
rancores e desfecho trágico em que
se desdobra o desejo de domínio de
Gina sobre Renato, tema recorrente
em outros dramas e romances do
autor. Como acontecia com Marcos,
em "O Escravo", também aqui a
protagonista é dominada por uma
estranha Mulher de Preto, que rouba
sua vontade e suas falas e impõe um
desfecho inexplicável à ação.
O tema retorna em "O Homem
Pálido", de 1961, em que a propriedade decadente de um casal é assombrada pelo antigo fazendeiro, o
homem pálido assassinado sem que
ninguém quisesse socorrê-lo. Mais
uma vez, as obsessões de Lúcio Cardoso reaparecem como motivos recorrentes, a ponto de Antonio Arnoni Prado observar, no ótimo posfácio ao livro, que a peça "Os Desaparecidos" funciona como uma espécie de síntese trágica das personagens anteriores.
No texto, os tipos estranhos que se
protegem da chuva num velho barracão abandonado, na véspera de
Natal, contam suas histórias como
se expusessem situações e caracteres
diferentes. Mas, no final da leitura, o
leitor reconhece mais um monodrama da poética de desespero de Lúcio
Cardoso.
Sílvia Fernandes é professora de história
do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP.
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