São Paulo, domingo, 30 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CENA PARALISADA

"Teatro Reunido" de Lúcio Cardoso traz as oito peças escritas pelo autor de "Crônica da Casa Assassinada"

SÍLVIA FERNANDES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A publicação do "Teatro Reunido" de Lúcio Cardoso é o resgate de uma dramaturgia pouco valorizada na cena e na historiografia teatral.
A despeito da boa recepção crítica de romances como "Crônica da Casa Assassinada" (Civilização Brasileira) -que, ao contrário de outros livros, não se limitou à primeira edição de 1959-, a produção dramática do escritor mineiro foi objeto de constantes avaliações negativas, compreensíveis por conta dos excessos literários e do manejo precário da carpintaria cênica mas também pelo desvio da tendência dominante na literatura brasileira da década de 40 -o regionalismo social de escritores nordestinos como Graciliano Ramos e José Lins do Rego.
Quando Cardoso escreve as primeiras peças, "O Escravo" e "O Filho Pródigo", encenadas pelos Comediantes em 1943 e pelo Teatro Experimental do Negro em 1947, sua obra já é vista com reservas.
O traçado intimista, a ascendência da memória e da subjetividade na elaboração das tramas precárias, o deslocamento do plano objetivo da realidade brasileira para a duração psíquica dos sujeitos ficcionais sob influência de Proust, Faulkner, Julian Green e François Mauriac compõem uma narrativa abstrata, de tendência reflexiva, cujo viés psicológico Alfredo Bosi considera "freudiano-surrealista" ou "freudiano-expressionista".
Essa via subjetiva de criação se ramifica em diários, poemas, romances, contos e dramaturgia e se explicita na repetição do tema da memória e de personagens no limiar da loucura, que migram da prosa para a poesia e do teatro para o cinema de Lúcio Cardoso.
E, na expressão dramática, paralisam o conflito pela presença obsessiva da morte e de figuras dominadas por forças obscuras que as transformam em quase marionetes de um outro que as mantém como reféns.

Tendências simbolistas
Com pouca tradição em nosso teatro, esses textos descendem de tendências simbolistas e têm certa proximidade com as peças de Roberto Gomes, quando acentuam a atmosfera de mistério dos ambientes e a obscuridade das ações das personagens. Nesse caso, elas são contorcidas por angústias quase incompreensíveis, sem causa nem justificativa aparentes, o que sem dúvida as distancia das figuras dramáticas tradicionais e ressalta seu parentesco com o expressionismo.
Especialmente com certas criações de Strindberg, em que o domínio e a destruição de um indivíduo pelo outro são o núcleo da construção ficcional. É o caso de "Angélica", texto de 1950 em que o temperamento destrutivo da protagonista aniquila a vontade das jovens a seu redor, salientando um dos temas recorrentes desse teatro, em que o estranho é uma "presença-ausência" ameaçadora dentro de nós.
A omissão de dados concretos nos textos, que pouco se interessam por determinações sociológicas e mal revelam as motivações das personagens e o ambiente cultural de onde provêm, acaba descolando os enredos do tempo histórico e abre espaço para críticas contundentes -como a de Décio de Almeida Prado a "O Filho Pródigo", considerado um "monumento de literatice" em que a realidade social do negro brasileiro é preterida pela alegoria bíblica.

Personagens em ruína
De fato, distanciados numa época lendária e isolados numa terra cujos limites não podem transpor, os protagonistas negros limitam-se às paixões mais primitivas enquanto sonham com a fuga e o mar, o que leva o crítico a desconfiar da opção do autor por símbolos artificiais diante da dura realidade do negro brasileiro. Apesar disso, Décio não deixa de reconhecer o parentesco da proposta com a obra de Claudel, a seu ver o único dramaturgo capaz de "assumir o ar modesto de quem acabou de reescrever a Bíblia sem resvalar pelo ridículo".
Ou projetar-se no plano da irrealidade em que já se dilaceravam as personagens em ruína de "O Escravo", obcecadas pela presença do irmão morto e sufocadas numa atmosfera de pesadelo -como a que precede a chegada do protagonista Marcos e que já está presente na sondagem interior que alimenta um dos primeiros romances do escritor, "A Luz no Subsolo", de 1936, de inspiração dostoievskiana.
Em carta a Fernando Sabino, famosa pela acidez crítica, Mário de Andrade se refere a essa "obra fracassada", que se afasta do "cafajestismo do romance nacional contemporâneo" para se voltar para a tendência "universalista, psicofilosófica, profundista, valoreternista" que o escritor representa na literatura brasileira.
Os traços da tendência que o crítico menospreza são evidentes nas oito peças que compõem o "Teatro Reunido". O peso do medo e do mistério e a paralisia no passado, acrescidos do gosto pela palavra excessiva e por personagens assombradas por espectros dos mortos, mais ativos que elas, dão a medida das dificuldades de encenação dos textos e das resistências que encontraram no meio teatral da época.
Gustavo Dória menciona a constante dificuldade de encontrar atores que se interessassem por interpretá-los, por considerá-los excessivamente intelectualizados e herméticos, inacessíveis ao espectador médio, e que persistiu quando o dramaturgo selecionou elenco para o Teatro de Câmara do Rio de Janeiro, que estreou com sua peça "A Corda de Prata", em 1947.
Segundo Sábato Magaldi, o insucesso da montagem contribuiu para associar a produção do autor a certa linha de teatro literário que fica pouco à vontade em cena. E aparece, para o leitor, na seqüência verbal de rancores e desfecho trágico em que se desdobra o desejo de domínio de Gina sobre Renato, tema recorrente em outros dramas e romances do autor. Como acontecia com Marcos, em "O Escravo", também aqui a protagonista é dominada por uma estranha Mulher de Preto, que rouba sua vontade e suas falas e impõe um desfecho inexplicável à ação.
O tema retorna em "O Homem Pálido", de 1961, em que a propriedade decadente de um casal é assombrada pelo antigo fazendeiro, o homem pálido assassinado sem que ninguém quisesse socorrê-lo. Mais uma vez, as obsessões de Lúcio Cardoso reaparecem como motivos recorrentes, a ponto de Antonio Arnoni Prado observar, no ótimo posfácio ao livro, que a peça "Os Desaparecidos" funciona como uma espécie de síntese trágica das personagens anteriores.
No texto, os tipos estranhos que se protegem da chuva num velho barracão abandonado, na véspera de Natal, contam suas histórias como se expusessem situações e caracteres diferentes. Mas, no final da leitura, o leitor reconhece mais um monodrama da poética de desespero de Lúcio Cardoso.


Sílvia Fernandes é professora de história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP.


Texto Anterior: Teatro desagradável
Próximo Texto: Invasões bárbaras
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.