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Uma série de estudos editados na França analisam a nouvelle vague, que está
completando 40 anos
O cinema acossado
LÚCIA NAGIB
Da Equipe de Articulistas, em Paris
A efeméride oficial seria neste
ano: foi em 4 de maio de 1959 que a
apresentação no festival de Cannes de "Os Incompreendidos",
de François Truffaut, marcou o
nascimento público da nouvelle
vague (data fixada e aceita, entre
outros, por Antoine de Baecque,
atual editor dos "Cahiers du Cinéma"). Mas desde o final de 1997 se
vêm comemorando, na França, os
40 anos do mais importante movimento da história do cinema francês. No campo das publicações,
pode-se dizer que pela primeira
vez o leitor tem acesso a estudos
sérios, alguns mesmo se pretendendo exaustivos, dedicados exclusivamente ao movimento.
O primeiro deles foi o pequeno
volume de Michel Marie, da coleção da Nathan "128" (isto é, com
128 páginas), "La Nouvelle Vague - Une École Artistique", publicado em 1997, que esquematiza,
delimita e define com precisão um
período de abrangência nem sempre clara.
No final de 1998, foi a vez de "La
Nouvelle Vague - Portrait d'une
Jeunesse", de Antoine de Baecque, e "Nouvelle Vague", de Jean
Douchet, sobre os quais me deterei a seguir. Lançado no início deste ano, ainda, o livro "La Nouvelle
Vague Vue par les Cahiers du Cinéma", coleção de entrevistas/manifestos dos críticos dos
"Cahiers" dos anos 50 que depois
se tornaram cineastas: Jean-Luc
Godard, Claude Chabrol, François
Truffaut, Éric Rohmer e Jacques
Rivette. Cabe lembrar por fim o
número "hors-série" dos "Cahiers du Cinéma", compondo um
dossiê atualizado sobre a nouvelle
vague.
Os cinéfilos e estudiosos teriam
o direito de perguntar: o que ainda
resta a dizer sobre a nouvelle vague? O que acrescentar sobre a conhecida fúria de Truffaut contra o
"cinéma de qualité" francês, nos
anos 50, documentada na profusão de textos que publicou nos
"Cahiers" e no semanário
"Arts", perenizada nas dezenas
de livros de e sobre ele? Quanto
ainda se deve celebrar das ousadias godardianas, que eliminaram
a continuidade do som e da imagem, adaptaram ao cinema o distanciamento brechtiano e estilhaçaram a narrativa do filme para finalmente fazê-lo alcançar a modernidade? Quem nunca ouviu falar do cinema independente e barato, que desprezou os estúdios
pela rua e trocou o astro pelo ator
amador? Ou da câmera que passou
das mãos dos técnicos para as dos
cinéfilos, inaugurando o "cinema
de autor"?
De fato, a maioria dos textos recém-publicados corre o risco de se
tornar, para o leitor familiarizado
com o assunto, uma enfadonha
coleção de lugares-comuns. No
entanto, é preciso reconhecer o esforço do pessoal dos "Cahiers", a
quem se deve a autoria da maior
parte dos escritos, pois afinal a
nouvelle vague saiu de seus próprios quadros no sentido de encontrar vieses inexplorados na
história do movimento.
O autor mais bem-sucedido,
nesse sentido, foi sem dúvida Antoine de Baecque, que já havia presenteado o leitor anteriormente
com duas preciosidades em termos de história do cinema: a biografia de François Truffaut (escrita em conjunto com Serge Toubiana) e a história dos "Cahiers du
Cinéma". Movido, em parte, por
seu gosto pessoal, em parte, por
sua experiência de historiador, de
Baecque em seu livro inicia a reflexão por um ponto que poucos
imaginariam: Brigitte Bardot. De
Baecque vê em Bardot a encarnação de alguns dos principais ingredientes da nouvelle vague: a juventude, a liberdade, a sensualidade.
Descrevendo a aparição da atriz
de 21 anos em 1956, no esplendor
da beleza, em "E Deus Criou a
Mulher", de Roger Vadim, o autor, sem esconder o entusiasmo de
verdadeiro fã, afirma que Bardot
foi "adotada pelos futuros cineastas da nouvelle vague, os Jovens
Turcos de Arts e dos Cahiers",
que viram nela "o mundo: o real
desertando cada vez mais os filmes
dos estúdios parisienses" (pág.
38). E, embora Vadim nunca tenha sido inteiramente aceito na
"igreja" dos críticos dos "Cahiers", Truffaut, citado por de
Baecque, lhe foi grato "por ter dirigido sua jovem esposa, fazendo-a reproduzir diante da objetiva
os gestos de todos os dias, gestos
anódinos, como brincar com a
sandália, ou menos anódinos, como fazer amor em pleno dia, isso
mesmo!, mas todos igualmente
reais".
O "real", portanto, embora almejado pelos cinéfilos dos "Cahiers", só lhes será realmente palpável, segundo de Baecque, com
Bardot -que, entre os franceses,
destrona Marilyn Monroe e se torna a heroína, entre outros, de Godard, que a utilizará em "O Desprezo" (1963).
Recorrendo a minuciosa pesquisa em publicações e documentos
de época, de Baecque traça um
perfil preciso da juventude que se
desenvolvia então, cujo espírito se
cristalizaria nos filmes da nouvelle
vague. São rapazes e moças decepcionados com os pais (vários dos
quais com um passado colaboracionista), que querem a liberdade,
o prazer imediato, os carros esporte, o sexo sem compromisso,
recusando, por outro lado, todo
engajamento político. E aqui o autor não deixa de lançar um olhar
crítico à superficialidade inicialmente cultivada pela turma nouvelle vague dos "Cahiers", que se
entregava a uma "espécie de
dandysmo, uma cultura da segregação, procurando uma coerência
intelectual ali onde não aparece
como evidente. Elogio do deslocado e do menor que se configura
definitivamente como a quintessência do comportamento cinéfilo" (pág. 32).
Toda a seriedade presente em de
Baecque, na originalidade do tratamento, na capacidade de autocrítica, na solidez histórica que
amarra a nouvelle vague aos eventos literários, políticos, psicológicos e antropológicos de seu tempo, torna-se matéria rara no livro
de Jean Douchet, "Nouvelle Vague". Fato que se deve lamentar,
pois ninguém mais que Douchet
estaria credenciado a historiar um
movimento do qual participou
desde o nascimento, não apenas
como crítico, mas como cineasta.
Encomendado pela Cinemateca
Francesa e produzido com o espírito de constituir o mais completo
panorama jamais feito da nouvelle
vague, numa edição de luxo espalhafatoso (e, diga-se, kitsch, abarrotada de fotos e ilustrações que se
sobrepõem e confundem o leitor),
o enorme volume de capa dura e
358 páginas promove um imbróglio histórico de dimensão proporcional a seu peso. Mas, como o
livro já começa a encabeçar as bibliografias sobre o assunto, convém tecer algumas considerações
a seu respeito.
A primeira se refere à organização, campo em que em geral primam os franceses, mas cuja ausência, aqui, torna a obra arbitrária e redundante. Um exemplo
eloquente: um pequeno dicionário
de personalidades da nouvelle vague no meio (!) do livro dispensa a
ordem alfabética e até mesmo o
nome completo das pessoas em
questão, tornando-se de consulta
laboriosa e pouco frutífera. Embora uma cronologia ano a ano, de
1955 a 64, entremeando as várias
partes do livro com fragmentos de
textos dos críticos dos "Cahiers",
dê uma impressão de linearidade,
os capítulos de Douchet são uma
sucessão de temas desconexos
("Revistas e Homens", "Os Profissionais da Profissão" (?), "O
Estúdio/ A Rua", uma surpreendente "História da Nouvelle Vague" quase na metade do volume
e assim por diante), cheios de digressões pouco pertinentes. Seria
uma imitação do estilo "faux raccord" dos cineastas de 40 anos
atrás?
Em todo caso, há algumas confusões graves que chegam a comprometer a estrutura do livro como um todo, como a que se anuncia já na primeira página, quando
Douchet divide a nouvelle vague
em duas gerações. A primeira
compreenderia os intelectuais/cineastas nascidos entre 1918 e 1925:
André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze, Pierre Kast, Alexandre Astruc, Maurice Schérer (futuro Éric
Rohmer), Alain Resnais, Chris
Marker, entre outros. A segunda,
os nascidos entre 1928 e 1932: Jacques Rivette, Jean-Luc Godard,
Claude Chabrol, François Truffaut, Jacques Rozier, Jacques
Demy e outros.
A questão que logo se coloca é o
que André Bazin, famoso autor
das teorias da ontologia e do realismo cinematográficos, estaria fazendo entre os nomes dessa "primeira geração nouvelle vague", já
que nunca fez um filme e, se inspirou e apadrinhou vários dos críticos e futuros cineastas dos "Cahiers", tinha com eles diferenças
inconciliáveis, sobretudo no campo político. É de fato surpreendente a ligeireza com que Douchet resume e descarta as teorias de Bazin
e, aliás, todas as outras.
Eis, por exemplo, a síntese vertiginosa, encontrada na página 93,
da base teórica dos jovens críticos
dos "Cahiers" nos anos 50: "O
fundo comum que unia todas as
pessoas dos "Cahiers du Cinéma"
repousava sobre o seguinte postulado: um filme deve necessariamente dizer a verdade do mundo.
A querela, interna à revista, gira
portanto em torno das seguintes
questões: é preciso dizer "o verdadeiro" (o que é amplo), "a verdade" (a teoria de Bazin), "um verdadeiro" ou "uma verdade'? O
ponto de vista dominante na revista será finalmente o de Bazin, que
Godard expõe em "O Pequeno
Soldado': "A fotografia é a verdade. O cinema é a verdade 24 vezes
por segundo'".
Chamar a teoria realista de Bazin
de "a verdade" é uma redução
que, no limite, falta com a verdade. Propositalmente ou não, Douchet ignora tudo o que já foi escrito sobre o mais famoso crítico de
cinema de todos os tempos, com
exceção da excelente, mas já antiga, biografia de Bazin escrita por
Dudley Andrew. E, embora Andrew faça uma descrição cuidadosa da formação e do pensamento
de Bazin, Douchet só recorre a ele
para apoios factuais.
Em termos teóricos, Douchet
parece ainda restrito à "teoria do
autor" tal como postulada por
seus antigos colegas dos anos 50,
que era, antes de tudo, uma "política". Passando por cima do que
aconteceu ao longo de 40 anos de
teorias do cinema, o estruturalismo, a semiótica, a psicanálise, a
narratologia etc., Douchet empresta à teoria do autor plena e
atual validade.
O "panteão" dos diretores preferidos dos críticos dos "Cahiers"
reaparece intato, numa lista que,
mais que pedagógica, é impositiva, enquanto Douchet conclui: "A
política dos autores, ao mesmo
tempo em que agudizava o tratamento da arte cinematográfica,
reescrevia sua história, de tal modo que suas escolhas e seus valores
são os que até hoje se impõem. Tal
visão será questionada talvez um
dia. Já está sendo mais ou menos
contestada, em particular por
aqueles que procuram atacar o espírito e a obra da nouvelle vague
ou simplesmente reajustá-los ao
gosto do dia. Mas, como um todo,
a escolha de grandes figuras dessa
reavaliação da história do cinema
permanece válida ainda hoje".
De resto, a obra eminentemente
impressionista de Douchet é uma
pomposa coleção de obviedades
recheadas de frases de efeito. Pouco instrutiva para o conhecedor,
inadequada para o leigo, vale talvez para quem tiver paciência de
decifrar o valioso material fotográfico, quase sempre mutilado e
borrado de letras coloridas.
AS OBRAS
La Nouvelle Vague - Une École Artistique - Michel Marie. Ed. Nathan. 128 págs. 7,47 euros.
La Nouvelle Vague - Portrait d'une Jeunesse - Antoine de Baecque. Ed. Flammarion. 160 págs. 22,71 euros.
Nouvelle Vague - Jean Douchet. Ed. Hazan. 360 págs. 75,46 euros.
La Nouvelle Vague Vue par les Cahiers du Cinéma (1957-1964) - Cahiers du Cinéma. 320 págs. 12,04 euros.
Os livros podem ser encomendados à Alapage, no site www.alapage.com.
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