São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
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Uma série de estudos editados na França analisam a nouvelle vague, que está completando 40 anos
O cinema acossado

LÚCIA NAGIB
Da Equipe de Articulistas, em Paris

A efeméride oficial seria neste ano: foi em 4 de maio de 1959 que a apresentação no festival de Cannes de "Os Incompreendidos", de François Truffaut, marcou o nascimento público da nouvelle vague (data fixada e aceita, entre outros, por Antoine de Baecque, atual editor dos "Cahiers du Cinéma"). Mas desde o final de 1997 se vêm comemorando, na França, os 40 anos do mais importante movimento da história do cinema francês. No campo das publicações, pode-se dizer que pela primeira vez o leitor tem acesso a estudos sérios, alguns mesmo se pretendendo exaustivos, dedicados exclusivamente ao movimento.
O primeiro deles foi o pequeno volume de Michel Marie, da coleção da Nathan "128" (isto é, com 128 páginas), "La Nouvelle Vague - Une École Artistique", publicado em 1997, que esquematiza, delimita e define com precisão um período de abrangência nem sempre clara.
No final de 1998, foi a vez de "La Nouvelle Vague - Portrait d'une Jeunesse", de Antoine de Baecque, e "Nouvelle Vague", de Jean Douchet, sobre os quais me deterei a seguir. Lançado no início deste ano, ainda, o livro "La Nouvelle Vague Vue par les Cahiers du Cinéma", coleção de entrevistas/manifestos dos críticos dos "Cahiers" dos anos 50 que depois se tornaram cineastas: Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, François Truffaut, Éric Rohmer e Jacques Rivette. Cabe lembrar por fim o número "hors-série" dos "Cahiers du Cinéma", compondo um dossiê atualizado sobre a nouvelle vague.
Os cinéfilos e estudiosos teriam o direito de perguntar: o que ainda resta a dizer sobre a nouvelle vague? O que acrescentar sobre a conhecida fúria de Truffaut contra o "cinéma de qualité" francês, nos anos 50, documentada na profusão de textos que publicou nos "Cahiers" e no semanário "Arts", perenizada nas dezenas de livros de e sobre ele? Quanto ainda se deve celebrar das ousadias godardianas, que eliminaram a continuidade do som e da imagem, adaptaram ao cinema o distanciamento brechtiano e estilhaçaram a narrativa do filme para finalmente fazê-lo alcançar a modernidade? Quem nunca ouviu falar do cinema independente e barato, que desprezou os estúdios pela rua e trocou o astro pelo ator amador? Ou da câmera que passou das mãos dos técnicos para as dos cinéfilos, inaugurando o "cinema de autor"?
De fato, a maioria dos textos recém-publicados corre o risco de se tornar, para o leitor familiarizado com o assunto, uma enfadonha coleção de lugares-comuns. No entanto, é preciso reconhecer o esforço do pessoal dos "Cahiers", a quem se deve a autoria da maior parte dos escritos, pois afinal a nouvelle vague saiu de seus próprios quadros no sentido de encontrar vieses inexplorados na história do movimento.
O autor mais bem-sucedido, nesse sentido, foi sem dúvida Antoine de Baecque, que já havia presenteado o leitor anteriormente com duas preciosidades em termos de história do cinema: a biografia de François Truffaut (escrita em conjunto com Serge Toubiana) e a história dos "Cahiers du Cinéma". Movido, em parte, por seu gosto pessoal, em parte, por sua experiência de historiador, de Baecque em seu livro inicia a reflexão por um ponto que poucos imaginariam: Brigitte Bardot. De Baecque vê em Bardot a encarnação de alguns dos principais ingredientes da nouvelle vague: a juventude, a liberdade, a sensualidade.
Descrevendo a aparição da atriz de 21 anos em 1956, no esplendor da beleza, em "E Deus Criou a Mulher", de Roger Vadim, o autor, sem esconder o entusiasmo de verdadeiro fã, afirma que Bardot foi "adotada pelos futuros cineastas da nouvelle vague, os Jovens Turcos de Arts e dos Cahiers", que viram nela "o mundo: o real desertando cada vez mais os filmes dos estúdios parisienses" (pág. 38). E, embora Vadim nunca tenha sido inteiramente aceito na "igreja" dos críticos dos "Cahiers", Truffaut, citado por de Baecque, lhe foi grato "por ter dirigido sua jovem esposa, fazendo-a reproduzir diante da objetiva os gestos de todos os dias, gestos anódinos, como brincar com a sandália, ou menos anódinos, como fazer amor em pleno dia, isso mesmo!, mas todos igualmente reais".
O "real", portanto, embora almejado pelos cinéfilos dos "Cahiers", só lhes será realmente palpável, segundo de Baecque, com Bardot -que, entre os franceses, destrona Marilyn Monroe e se torna a heroína, entre outros, de Godard, que a utilizará em "O Desprezo" (1963).
Recorrendo a minuciosa pesquisa em publicações e documentos de época, de Baecque traça um perfil preciso da juventude que se desenvolvia então, cujo espírito se cristalizaria nos filmes da nouvelle vague. São rapazes e moças decepcionados com os pais (vários dos quais com um passado colaboracionista), que querem a liberdade, o prazer imediato, os carros esporte, o sexo sem compromisso, recusando, por outro lado, todo engajamento político. E aqui o autor não deixa de lançar um olhar crítico à superficialidade inicialmente cultivada pela turma nouvelle vague dos "Cahiers", que se entregava a uma "espécie de dandysmo, uma cultura da segregação, procurando uma coerência intelectual ali onde não aparece como evidente. Elogio do deslocado e do menor que se configura definitivamente como a quintessência do comportamento cinéfilo" (pág. 32).
Toda a seriedade presente em de Baecque, na originalidade do tratamento, na capacidade de autocrítica, na solidez histórica que amarra a nouvelle vague aos eventos literários, políticos, psicológicos e antropológicos de seu tempo, torna-se matéria rara no livro de Jean Douchet, "Nouvelle Vague". Fato que se deve lamentar, pois ninguém mais que Douchet estaria credenciado a historiar um movimento do qual participou desde o nascimento, não apenas como crítico, mas como cineasta.
Encomendado pela Cinemateca Francesa e produzido com o espírito de constituir o mais completo panorama jamais feito da nouvelle vague, numa edição de luxo espalhafatoso (e, diga-se, kitsch, abarrotada de fotos e ilustrações que se sobrepõem e confundem o leitor), o enorme volume de capa dura e 358 páginas promove um imbróglio histórico de dimensão proporcional a seu peso. Mas, como o livro já começa a encabeçar as bibliografias sobre o assunto, convém tecer algumas considerações a seu respeito.
A primeira se refere à organização, campo em que em geral primam os franceses, mas cuja ausência, aqui, torna a obra arbitrária e redundante. Um exemplo eloquente: um pequeno dicionário de personalidades da nouvelle vague no meio (!) do livro dispensa a ordem alfabética e até mesmo o nome completo das pessoas em questão, tornando-se de consulta laboriosa e pouco frutífera. Embora uma cronologia ano a ano, de 1955 a 64, entremeando as várias partes do livro com fragmentos de textos dos críticos dos "Cahiers", dê uma impressão de linearidade, os capítulos de Douchet são uma sucessão de temas desconexos ("Revistas e Homens", "Os Profissionais da Profissão" (?), "O Estúdio/ A Rua", uma surpreendente "História da Nouvelle Vague" quase na metade do volume e assim por diante), cheios de digressões pouco pertinentes. Seria uma imitação do estilo "faux raccord" dos cineastas de 40 anos atrás?
Em todo caso, há algumas confusões graves que chegam a comprometer a estrutura do livro como um todo, como a que se anuncia já na primeira página, quando Douchet divide a nouvelle vague em duas gerações. A primeira compreenderia os intelectuais/cineastas nascidos entre 1918 e 1925: André Bazin, Jacques Doniol-Valcroze, Pierre Kast, Alexandre Astruc, Maurice Schérer (futuro Éric Rohmer), Alain Resnais, Chris Marker, entre outros. A segunda, os nascidos entre 1928 e 1932: Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, François Truffaut, Jacques Rozier, Jacques Demy e outros.
A questão que logo se coloca é o que André Bazin, famoso autor das teorias da ontologia e do realismo cinematográficos, estaria fazendo entre os nomes dessa "primeira geração nouvelle vague", já que nunca fez um filme e, se inspirou e apadrinhou vários dos críticos e futuros cineastas dos "Cahiers", tinha com eles diferenças inconciliáveis, sobretudo no campo político. É de fato surpreendente a ligeireza com que Douchet resume e descarta as teorias de Bazin e, aliás, todas as outras.
Eis, por exemplo, a síntese vertiginosa, encontrada na página 93, da base teórica dos jovens críticos dos "Cahiers" nos anos 50: "O fundo comum que unia todas as pessoas dos "Cahiers du Cinéma" repousava sobre o seguinte postulado: um filme deve necessariamente dizer a verdade do mundo. A querela, interna à revista, gira portanto em torno das seguintes questões: é preciso dizer "o verdadeiro" (o que é amplo), "a verdade" (a teoria de Bazin), "um verdadeiro" ou "uma verdade'? O ponto de vista dominante na revista será finalmente o de Bazin, que Godard expõe em "O Pequeno Soldado': "A fotografia é a verdade. O cinema é a verdade 24 vezes por segundo'".
Chamar a teoria realista de Bazin de "a verdade" é uma redução que, no limite, falta com a verdade. Propositalmente ou não, Douchet ignora tudo o que já foi escrito sobre o mais famoso crítico de cinema de todos os tempos, com exceção da excelente, mas já antiga, biografia de Bazin escrita por Dudley Andrew. E, embora Andrew faça uma descrição cuidadosa da formação e do pensamento de Bazin, Douchet só recorre a ele para apoios factuais.
Em termos teóricos, Douchet parece ainda restrito à "teoria do autor" tal como postulada por seus antigos colegas dos anos 50, que era, antes de tudo, uma "política". Passando por cima do que aconteceu ao longo de 40 anos de teorias do cinema, o estruturalismo, a semiótica, a psicanálise, a narratologia etc., Douchet empresta à teoria do autor plena e atual validade.
O "panteão" dos diretores preferidos dos críticos dos "Cahiers" reaparece intato, numa lista que, mais que pedagógica, é impositiva, enquanto Douchet conclui: "A política dos autores, ao mesmo tempo em que agudizava o tratamento da arte cinematográfica, reescrevia sua história, de tal modo que suas escolhas e seus valores são os que até hoje se impõem. Tal visão será questionada talvez um dia. Já está sendo mais ou menos contestada, em particular por aqueles que procuram atacar o espírito e a obra da nouvelle vague ou simplesmente reajustá-los ao gosto do dia. Mas, como um todo, a escolha de grandes figuras dessa reavaliação da história do cinema permanece válida ainda hoje".
De resto, a obra eminentemente impressionista de Douchet é uma pomposa coleção de obviedades recheadas de frases de efeito. Pouco instrutiva para o conhecedor, inadequada para o leigo, vale talvez para quem tiver paciência de decifrar o valioso material fotográfico, quase sempre mutilado e borrado de letras coloridas.



AS OBRAS
La Nouvelle Vague - Une École Artistique - Michel Marie. Ed. Nathan. 128 págs. 7,47 euros.

La Nouvelle Vague - Portrait d'une Jeunesse - Antoine de Baecque. Ed. Flammarion. 160 págs. 22,71 euros.

Nouvelle Vague - Jean Douchet. Ed. Hazan. 360 págs. 75,46 euros.

La Nouvelle Vague Vue par les Cahiers du Cinéma (1957-1964) - Cahiers du Cinéma. 320 págs. 12,04 euros.

Os livros podem ser encomendados à Alapage, no site www.alapage.com.




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