São Paulo, Domingo, 30 de Maio de 1999
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OS CEM MAIS

Pindorama e o saber incompleto

CANDIDO MENDES
especial para a Folha

A esplêndida resenha do Olimpo do pensamento no século 20, lá fora, e cá, no Pindorama, feita pelo Mais! (caderno publicado em 11/4/99 com os cem melhores livros de não-ficção do século), vai muito além do panteão para nos dar um recado explícito sobre quem seleciona.
Sublinhe-se, de saída, o universo essencialmente paulista da larga maioria dos dez escrutinadores. Ficam de fora um pernambucano e esplêndido historiador como Evaldo Cabral de Mello e um sociólogo carioca, Roberto DaMatta, representativo deste metropolitanismo da Velha Capital a que associa uma vasta e inquisidora docência nos Estados Unidos e na Europa. A superseleção conscreve, fatalmente. Listas de dez mais não costumam fugir ao panteão de plantão. Porém uma de cem é extraordinariamente reveladora de se estamos diante de uma efetiva tradição cultural, de talentosos solitários, da Torre de Marfim, ou das excelências ainda no seu caramanchão. Os que faltam no arrolamento largo interrogam quem não os escolheu. Em se tratando das obras mais relevantes, a seleção se aninha no pensamento estabelecido ou traduz uma prospectiva, a da identificação dos livros-chave para a problemática do presente e futuro, quando o intelectual cresce sobre o "scholar"? Claro que o que está em causa é o choque dos primeiros cem, e muitas vezes a ausência arguida corresponde à 101ª menção.
De toda forma a reiteração da ausência permite a formação de um juízo -ainda que hipotético- sobre um determinado e referido universo de pensamento. Mas como justificar a ausência, nessa perspectiva, de Jürgen Habermas, a aparecer nas nomenclaturas idênticas, lá fora, como o mais relevante dos inquisidores dessa passagem, do moderno ao pós-moderno? E, sobretudo, quando o autor de "Teoria da Ação Comunicativa" quer-se na tradição da Escola de Frankfurt, supercontemplada na lista pelas referências a Horkheimer e Adorno? Que acontece, para os paulistas, após a "Dialética do Esclarecimento"? Vamos, tão-só, de Marcuse ao milênio? É no campo da epistemologia que vai se reforçar a impressão de falta de uma tradição ou crítica continuada, a partir de uma preocupação compartilhada com essa "hermenêutica da suspeição", para entrar na área minada do milênio que se abre.
Os árbitros citam generosamente Husserl como o avanço mais importante do século na investigação da intencionalidade. Mas, na sua sequência, morre no fosso a retomada da epistemologia pelo próprio pensamento marxista: não há como se retirar Althusser da lista de cem, sobretudo o seu "Ler o Capital", no nível da polêmica e da exegese crítica que despertou. Tanto quanto é generosa na referência a Weber, a lista não vai, entretanto, aos pródomos do culturalismo, em que nasce o contraponto do espírito e natureza medular do século, e já tratado nas suas derivações antropológicas clássicas pelas menções a Malinovski ou a Frazer, porém sem Mead e Bateson. Mas Dilthey e sua "Teoria da Visão do Mundo" passam como uma dessas portas estreitas, para uma verdadeira mudança na construção do mundo interior do nosso século. E que dizer da falta de Jaeger da "Paideia", indissociável de qualquer base clássica ao humanismo contemporâneo?
Se as menções se voltam, por outro lado, ao nó da Escola de Frankfurt, também surpreende a ausência, no quadro do desdobramento historicista, do trabalho fundamental de Karl Jaspers sobre a teoria da história, especialmente "A Situação Espiritual de Nosso Tempo", bem como, ao lado do mano Max, a obra de Alfred Weber ("História da Cultura") e a meditação crítica sobre o processo social de cultura e de civilização.
A geração de São Paulo que hoje depõe no Mais! se reconhece no veio básico da experiência existencialista. O eixo desse conjunto europeu vai se concentrar na matriz francesa, em que dois terços praticamente dos autores citados passam pelo casal canônico, Sartre e Beauvoir. E, pela plenitude do "politicamente correto", transporta à nomenclatura do "conhecer adequado", ao nos mostrar desde já como a missão de 34 na USP, quer pela aplicação de Lévi-Strauss, quer pelo perpassar quase diletante de Braudel, deixou as suas marcas irremovíveis. E, aliás, se há o consumo, já ao risco da ingestão demasiada de Hannah Arendt, no senso comum, louvável e nobre dos valores do homem e da democracia, como dissociá-la da menção mínima a Raymond Aron ("O Ópio dos Intelectuais") ou a Alain Touraine (do "Retour de L'Acteur" ou da "Sociologie de l'Action"?) Não se peça também uma frequentação maior dos árbitros com o pensamento saxão-americano. É difícil, nos cem, exilar Chomsky, ou Steven Jay Gould, ou Samuel Huntington. Ou, na metodologia das ciências sociais, Robert Merton, ao lado de Thomas Kuhn e Karl Deutsch, "The Nerves of Government", junto a Talcott Parsons.
O mais curioso, entretanto, é o insulamento das opções paulistas no contexto primeiro da nossa produção, voltado para as tradições ibéricas, senão mesmo latino-americanas. Que cultura é essa que não pode assinalar entre os cem livros da sua marca a "Rebelião das Massas", de Ortega y Gasset, cujos cursos Cioran via como indispensáveis à mais elementar educação para a modernidade, e Recasens-Siches de "Sociedade e Cultura", na esteira do melhor Dilthey e da metodologia de um compreender do nosso tempo?
Qual a resposta à pós-modernidade? A única obra representativa dessa reflexão mencionada no panteão dos cem vem exatamente em último lugar, no Deleuze de "Diferença e Repetição". Mas do próprio autor faltariam o indispensável "Mil Platôs", de par com Guatari, ou a "Lógica do Sentido". Tal como inexiste qualquer menção dos marxistas do pós-marxismo, ou pelo menos de Fredric Jameson do "Inconsciente Político" e da "Lógica Cultural do Capitalismo Tardio".
Mais instigante, entretanto, é a ausência completa de Jean-François Lyotard, morto em 98, e cuja "Condição Pós-Moderna" é, ao nosso ver, o trabalho crítico para a nova revolução epistemológica que realiza este fim de século. Ficam de fora, também, do panteão paulista, Jacques Derrida, o Baudrillard dos "Simulacros", da "Reflexão sobre o Mal" e do "Paroxista Indiferente", e o Morin do "Método". Singular numa cultura que chega ao milênio marcada pela meditação sobre a epistemologia e o transcendente -e a refundação ética contemporânea- é a omissão de Paul Ricoeur, talvez no seu "Pensamento Hermenêutico", na sua "Teoria da Ideologia" e no seu monumental "Tempo e Récito", o hoje propositor de uma ontologia do agir, reconhecido e proclamado nas latitudes relevantes do pensamento ocidental, exceto no Pindorama.
A visão da Maria Antonia, ou de Campinas, vai às unanimidades da formação da cultura brasileira como Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Nabuco ou Caio Prado, para depois entranhar-se no topicamente relevante, senão no monográfico, ligado ao horizonte regional e à sua indiscutível excelência pontual de ensaio ou de pesquisa, reconhecidamente criadora e relevante. Fica fora da ótica paulista a menção, após os clássicos imperiais, das obras que intentaram o cenário mais largo e a interpretação global do nosso processo, por mais que sumário e generalizador, indicativo de um começo de exegese nacional e da reflexão de um Brasil para si. É nessa ordem que os trabalhos de Alberto Torres, "A Organização Nacional", ou de José Maria dos Santos sobre toda a República Velha e seus processos, descobrindo, avant la lettre, a estrutura social total maussiana, ou ainda a "História do Brasil", de José Maria Bello, não podem fugir a um elenco das 30 obras brasileiras fundamentais, do dito "debruçar-se sobre a realidade brasileira".
Nesse veio de interpretação nacional o panteão só capitula o extraordinário sergipano, Manuel Bonfim, dos "Males de Origem da América Latina". Nem, a procurar-se a vertente marxista, no ninho de Caio Prado, se poderia omitir a "Formação da Sociedade Brasileira" ou o "Panorama do Segundo Império", de Nelson Werneck Sodré. E, a ficarmos nos textos de excelência, das pesquisas da grande descoberta, é preciso que, no plano da sociologia e da ciência política, ao lado de "Os Parceiros de Rio Bonito", de Antonio Candido, figure entre as 30 obras-chave desse pensamento no Brasil o seminal "Clientelismo, Enxada e Voto", de Vitor Nunes Leal -esse mineiro-carioca, cuja obra foi arrolada entre os cem livros mais importantes do século, no domínio da ciência política, e na apresentação conjunta de Deutsch e Stein Rokkan, de 1980.
Não resulta da lista do Mais! um mapa dos pensadores brasileiros deste século, fazedores da cabeça de gerações. Claro que os panteões são pérfidos. E no reduto da subjetividade ninguém discutirá o nível de tais preferências. Mas são escolhas dentro de um contexto e de um quadro mental. E têm repiques e pontos cardeais. Uma menção envolve um contraponto, e a ausência desse deslegitima a escolha. O indiscutível na relevância do universo cultural exige mais do irrepreensível à primeira vista: a escolha "bem" ou adequada traz a suspeita de um universo fraturado e o desligamento do contexto pelo árbitro: pelos que não cita, como pelo que surge como Minerva da cabeça de Júpiter.
Procure Mais! um panteão brasileiro: do que nos deu deriva a pergunta sobre se já temos uma cultura à obra e um "habitus" da consciência. Ou, se nos cantonamos nas excelências ímpares, remotos à inquietação do nosso "vir a ser". Se não se sabe, do todo, para onde se vai, há que se conhecer, pelo menos, a la Saramago, quem não falta na "jangada de pedra", da procura e seu paradoxo.


Candido Mendes é presidente do Senior Board do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz.



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