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OS CEM MAIS
Pindorama e o saber incompleto
CANDIDO MENDES
especial para a Folha
A esplêndida resenha do Olimpo
do pensamento no século 20, lá fora, e cá, no Pindorama, feita pelo
Mais! (caderno publicado em
11/4/99 com os cem melhores livros de não-ficção do século), vai
muito além do panteão para nos
dar um recado explícito sobre
quem seleciona.
Sublinhe-se, de saída, o universo
essencialmente paulista da larga
maioria dos dez escrutinadores.
Ficam de fora um pernambucano
e esplêndido historiador como
Evaldo Cabral de Mello e um sociólogo carioca, Roberto DaMatta,
representativo deste metropolitanismo da Velha Capital a que associa uma vasta e inquisidora docência nos Estados Unidos e na Europa. A superseleção conscreve, fatalmente. Listas de dez mais não
costumam fugir ao panteão de
plantão. Porém uma de cem é extraordinariamente reveladora de
se estamos diante de uma efetiva
tradição cultural, de talentosos solitários, da Torre de Marfim, ou
das excelências ainda no seu caramanchão. Os que faltam no arrolamento largo interrogam quem
não os escolheu. Em se tratando
das obras mais relevantes, a seleção se aninha no pensamento estabelecido ou traduz uma prospectiva, a da identificação dos livros-chave para a problemática do
presente e futuro, quando o intelectual cresce sobre o "scholar"?
Claro que o que está em causa é o
choque dos primeiros cem, e muitas vezes a ausência arguida corresponde à 101ª menção.
De toda forma a reiteração da
ausência permite a formação de
um juízo -ainda que hipotético- sobre um determinado e referido universo de pensamento.
Mas como justificar a ausência,
nessa perspectiva, de Jürgen Habermas, a aparecer nas nomenclaturas idênticas, lá fora, como o
mais relevante dos inquisidores
dessa passagem, do moderno ao
pós-moderno? E, sobretudo,
quando o autor de "Teoria da
Ação Comunicativa" quer-se na
tradição da Escola de Frankfurt,
supercontemplada na lista pelas
referências a Horkheimer e Adorno? Que acontece, para os paulistas, após a "Dialética do Esclarecimento"? Vamos, tão-só, de
Marcuse ao milênio? É no campo
da epistemologia que vai se reforçar a impressão de falta de uma
tradição ou crítica continuada, a
partir de uma preocupação compartilhada com essa "hermenêutica da suspeição", para entrar na
área minada do milênio que se
abre.
Os árbitros citam generosamente Husserl como o avanço mais
importante do século na investigação da intencionalidade. Mas, na
sua sequência, morre no fosso a
retomada da epistemologia pelo
próprio pensamento marxista:
não há como se retirar Althusser
da lista de cem, sobretudo o seu
"Ler o Capital", no nível da polêmica e da exegese crítica que despertou. Tanto quanto é generosa
na referência a Weber, a lista não
vai, entretanto, aos pródomos do
culturalismo, em que nasce o contraponto do espírito e natureza
medular do século, e já tratado nas
suas derivações antropológicas
clássicas pelas menções a Malinovski ou a Frazer, porém sem
Mead e Bateson. Mas Dilthey e sua
"Teoria da Visão do Mundo"
passam como uma dessas portas
estreitas, para uma verdadeira
mudança na construção do mundo interior do nosso século. E que
dizer da falta de Jaeger da "Paideia", indissociável de qualquer
base clássica ao humanismo contemporâneo?
Se as menções se voltam, por outro lado, ao nó da Escola de Frankfurt, também surpreende a ausência, no quadro do desdobramento
historicista, do trabalho fundamental de Karl Jaspers sobre a teoria da história, especialmente "A
Situação Espiritual de Nosso Tempo", bem como, ao lado do mano
Max, a obra de Alfred Weber
("História da Cultura") e a meditação crítica sobre o processo social de cultura e de civilização.
A geração de São Paulo que hoje
depõe no Mais! se reconhece no
veio básico da experiência existencialista. O eixo desse conjunto europeu vai se concentrar na matriz
francesa, em que dois terços praticamente dos autores citados passam pelo casal canônico, Sartre e
Beauvoir. E, pela plenitude do
"politicamente correto", transporta à nomenclatura do "conhecer adequado", ao nos mostrar
desde já como a missão de 34 na
USP, quer pela aplicação de Lévi-Strauss, quer pelo perpassar
quase diletante de Braudel, deixou
as suas marcas irremovíveis. E,
aliás, se há o consumo, já ao risco
da ingestão demasiada de Hannah
Arendt, no senso comum, louvável e nobre dos valores do homem
e da democracia, como dissociá-la
da menção mínima a Raymond
Aron ("O Ópio dos Intelectuais")
ou a Alain Touraine (do "Retour
de L'Acteur" ou da "Sociologie
de l'Action"?) Não se peça também uma frequentação maior dos
árbitros com o pensamento saxão-americano. É difícil, nos cem,
exilar Chomsky, ou Steven Jay
Gould, ou Samuel Huntington.
Ou, na metodologia das ciências
sociais, Robert Merton, ao lado de
Thomas Kuhn e Karl Deutsch,
"The Nerves of Government",
junto a Talcott Parsons.
O mais curioso, entretanto, é o
insulamento das opções paulistas
no contexto primeiro da nossa
produção, voltado para as tradições ibéricas, senão mesmo latino-americanas. Que cultura é essa
que não pode assinalar entre os
cem livros da sua marca a "Rebelião das Massas", de Ortega y Gasset, cujos cursos Cioran via como
indispensáveis à mais elementar
educação para a modernidade, e
Recasens-Siches de "Sociedade e
Cultura", na esteira do melhor
Dilthey e da metodologia de um
compreender do nosso tempo?
Qual a resposta à pós-modernidade? A única obra representativa
dessa reflexão mencionada no
panteão dos cem vem exatamente
em último lugar, no Deleuze de
"Diferença e Repetição". Mas do
próprio autor faltariam o indispensável "Mil Platôs", de par
com Guatari, ou a "Lógica do
Sentido". Tal como inexiste qualquer menção dos marxistas do
pós-marxismo, ou pelo menos de
Fredric Jameson do "Inconsciente Político" e da "Lógica Cultural
do Capitalismo Tardio".
Mais instigante, entretanto, é a
ausência completa de Jean-François Lyotard, morto em 98, e cuja
"Condição Pós-Moderna" é, ao
nosso ver, o trabalho crítico para a
nova revolução epistemológica
que realiza este fim de século. Ficam de fora, também, do panteão
paulista, Jacques Derrida, o Baudrillard dos "Simulacros", da
"Reflexão sobre o Mal" e do
"Paroxista Indiferente", e o Morin do "Método". Singular numa
cultura que chega ao milênio marcada pela meditação sobre a epistemologia e o transcendente -e a
refundação ética contemporânea- é a omissão de Paul Ricoeur, talvez no seu "Pensamento
Hermenêutico", na sua "Teoria
da Ideologia" e no seu monumental "Tempo e Récito", o hoje propositor de uma ontologia do agir,
reconhecido e proclamado nas latitudes relevantes do pensamento
ocidental, exceto no Pindorama.
A visão da Maria Antonia, ou de
Campinas, vai às unanimidades da
formação da cultura brasileira como Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, Nabuco ou Caio Prado, para
depois entranhar-se no topicamente relevante, senão no monográfico, ligado ao horizonte regional e à sua indiscutível excelência
pontual de ensaio ou de pesquisa,
reconhecidamente criadora e relevante. Fica fora da ótica paulista a
menção, após os clássicos imperiais, das obras que intentaram o
cenário mais largo e a interpretação global do nosso processo, por
mais que sumário e generalizador,
indicativo de um começo de exegese nacional e da reflexão de um
Brasil para si. É nessa ordem que
os trabalhos de Alberto Torres,
"A Organização Nacional", ou de
José Maria dos Santos sobre toda a
República Velha e seus processos,
descobrindo, avant la lettre, a estrutura social total maussiana, ou
ainda a "História do Brasil", de
José Maria Bello, não podem fugir
a um elenco das 30 obras brasileiras fundamentais, do dito "debruçar-se sobre a realidade brasileira".
Nesse veio de interpretação nacional o panteão só capitula o extraordinário sergipano, Manuel
Bonfim, dos "Males de Origem da
América Latina". Nem, a procurar-se a vertente marxista, no ninho de Caio Prado, se poderia
omitir a "Formação da Sociedade
Brasileira" ou o "Panorama do
Segundo Império", de Nelson
Werneck Sodré. E, a ficarmos nos
textos de excelência, das pesquisas
da grande descoberta, é preciso
que, no plano da sociologia e da
ciência política, ao lado de "Os
Parceiros de Rio Bonito", de Antonio Candido, figure entre as 30
obras-chave desse pensamento no
Brasil o seminal "Clientelismo,
Enxada e Voto", de Vitor Nunes
Leal -esse mineiro-carioca, cuja
obra foi arrolada entre os cem livros mais importantes do século,
no domínio da ciência política, e
na apresentação conjunta de
Deutsch e Stein Rokkan, de 1980.
Não resulta da lista do Mais! um
mapa dos pensadores brasileiros
deste século, fazedores da cabeça
de gerações. Claro que os panteões
são pérfidos. E no reduto da subjetividade ninguém discutirá o nível
de tais preferências. Mas são escolhas dentro de um contexto e de
um quadro mental. E têm repiques
e pontos cardeais. Uma menção
envolve um contraponto, e a ausência desse deslegitima a escolha.
O indiscutível na relevância do
universo cultural exige mais do irrepreensível à primeira vista: a escolha "bem" ou adequada traz a
suspeita de um universo fraturado
e o desligamento do contexto pelo
árbitro: pelos que não cita, como
pelo que surge como Minerva da
cabeça de Júpiter.
Procure Mais! um panteão brasileiro: do que nos deu deriva a
pergunta sobre se já temos uma
cultura à obra e um "habitus" da
consciência. Ou, se nos cantonamos nas excelências ímpares, remotos à inquietação do nosso "vir
a ser". Se não se sabe, do todo,
para onde se vai, há que se conhecer, pelo menos, a la Saramago,
quem não falta na "jangada de pedra", da procura e seu paradoxo.
Candido Mendes é presidente do Senior Board
do Conselho Internacional de Ciências Sociais
da Unesco, membro da Academia Brasileira de
Letras e da Comissão de Justiça e Paz.
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