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+ literatura
Ensaísta discute a correspondência de dois dos mais importantes
escritores do século
Joyce e Proust - o diálogo que não houve
por Walnice Nogueira Galvão
Nada de semelhante às grandes linhas da correspondência de Joyce existe na de Proust. Este, até quando se dirige àqueles que se supõem
terem sido seus amores, ou objetos de seu desejo para consumação futura, é de uma discrição tal e de
tão tortuosas explicações que só vem a espicaçar, sem
satisfazê-la, a curiosidade do leitor. Já o Joyce missivista
invade o reino da escatologia. Enquanto Proust jamais
fala do conteúdo de seu trabalho aos amigos e familiares a quem escreve, afora os verdadeiros pareceres que
endereça a seus editores, Joyce é muito expansivo a esse
respeito. Dada a fortuna de sua correspondência que, a
posteriori, acabou obedecendo a uma clivagem, pode-se dividi-la apenas em duas vertentes: para Nora ou para os demais destinatários.
Dentre esses, sobressaem pela constância e seriedade
Harriet Shaw Weaver, seu mecenas, editora a partir de
1914 de "The Egoist", revista londrina que o apadrinhou
graças ao apoio do diretor literário, Ezra Pound. Essa
senhora, embora desde 1917 contribuísse para o sustento de Joyce e sua família em Zurique, corroborando o
escritor, o qual confiava em que o mundo lhe era devedor, como fica claro no epistolário com a importância
de 500 francos suíços mensais, só viria a conhecê-lo pessoalmente em 1922.
Mais tarde, tendo recebido uma herança em 1924,
doa-a a Joyce para que pudesse viver das rendas e continuar escrevendo sem ser coagido a trabalhar.
É assim que, nessa longa troca epistolar, a destinatária
se torna alvo de verdadeiros "relatórios de produção",
com Joyce lhe prestando contas frequentes e escrupulosas sobre a redação do "Work in Progress". A partir de
certo ponto, Joyce começa a fazer piadas com Harriet
na nova dicção "Finnegans Wake": "... may Allah who is
infallahble..." (9/11/1927). A impregnação se amplia,
quando escreve a Sylvia Beach (22/5/1928), editora de
"Ulysses", comentando Lewis Carroll. Afirmando que o
Jabberwock do poema é um sósia do Gato de Cheshire,
que era só sorriso, argumenta com versos como "Longtime the Manxmost foe he sought". Silenciando que o
Manxcat constitui uma raça destituída de rabo, diz ele
que "the leastmanx cat is short of a tail so I suppose a
manxmost cat has neither head nor tail". Tais cartas, a
exemplo das de Guimarães Rosa a seus tradutores, são
inestimáveis por desvendarem mecanismos da criação.
Mesmo quando, como nas duas citadas, nada tenham a
ver diretamente com a obra. Mas outras têm.
Embora mantivesse seu suporte econômico, Harriet
não recebe bem a nova maneira de Joyce no "Work in
Progress", como demonstram as cartas do escritor com
longas justificativas (1.2.27).
As amostras, com explicação e glossário (15/11/26,
23/10/28 etc.), certamente inquietaram a boa amiga. E
ela não seria a única. Ezra Pound desaprova igualmente
(1º/2/27). Mesmo o leal irmão Stanislaus pensa que Joyce enveredou por mau caminho ao abrir mão de comunicar-se com o leitor, incensado pela bajulação de seu
cenáculo parisiense . As defecções se sucedem e se acumulam, mas o mecenas continua firme em seu apoio,
que nunca retirou.
Os mal-entendidos são variados. Joyce, dono de um
belo tenor, preferia a música vocal, canto e ópera, à instrumental. Exercera o desempenho profissional na juventude em Dublin, em igrejas, concertos e festas, sobretudo de música tradicional irlandesa. Parece que
Nora não era muito fã do talento do escritor, mas sim de
sua voz. Tanto o pai de Joyce, adorado pelo filho, quanto Nora acreditavam que ele deveria ter feito carreira
como cantor, em vez de perder tempo a escrever bobagens que ninguém entendia.
Quanto a Stanislaus, apesar do título que escolheu para seu livro -"My Brother's Keeper" (O Protetor de
Meu Irmão), em alusão irônica a Caim-, nunca houve
mais dedicado guardião fraternal. Essas memórias de
infância e juventude, interrompidas pela morte do autor, mostram a vida com a família e com a turma de rapazes meio literários, meio boêmios na capital irlandesa. Eram inseparáveis, sendo Stanislau dois anos mais
moço e tendo seguido o irmão no exílio por insistência
dele; e exilado morreria.
Joyce era extravagante e imprevidente, além de intemperante, e quem ia resgatá-lo e pagar suas contas era
o irmão. Stanislau morreu a 16 de junho de 1955,
Bloomsday, dia em que costumava dar uma festa em
homenagem ao irmão, de quem era fiel admirador. Não
deve ter ficado muito contente ao se ver retratado em
Shaun (seu primeiro nome era John), contrapartida
pior e mais prosaica de Shem (James), em "Finnegans
Wake".
Outras missivas endereçadas a Harriet Shaw Weaver
constituem verdadeiros "pregões de leiloeiro", trazendo oferecimentos, com descrições pormenorizadas, de
originais, manuscritos, primeiras edições e fotografias
autografadas, que o escritor de hábito entesourava primeiro e vendia depois a particulares e em leilões, mostrando um senso bem desenvolvido do valor mercantil
a auferir de prototextos e paratextos.
Chegamos aqui à parte mais picante, e mais espinhosa
de lidar, da correspondência de Joyce, as cartas à mulher. Fenômeno ímpar na história da literatura, são cartas de sexo explícito, de um nível de carnalidade só comparável à obra de Sade e aos poemas de Catulo. Ou
talvez, mais perto do leitor, à musa pornográfica luso-brasileira de, entre outros, Gregório de Matos e Bocage.
Esbanjam candura de molde a empalidecer as de dom
Pedro 1º à marquesa de Santos. E as citações vêm a ser
praticamente impossíveis.
O conjunto, tardiamente publicado na íntegra, lançou
nova e quase insuportável luz sobre a vida do casal, iluminando frinchas de que ninguém suspeitava: basta ler
as biografias. Como praticamente nunca se separaram,
há blocos epistolares distantes no tempo, nas poucas
vezes em que não estiveram juntos. Um primeiro lote
cobre o ano de 1904, quando começaram a namorar. A
fisicalidade da paixão aí já fica clara: Joyce roga-lhe que
desista do espartilho (12/7/1904, 1º/9/1904 etc.); manda-lhe beijos de 25 minutos no pescoço (12/7/1904) e pede-lhe os dela (1º/9/1904); flutua em entorpecimento amoroso (15/8/1904). Menciona "aquela noite" como encerrando uma espécie de "sacramento" (29/8/1904), o que
se elucida mais tarde em outro lote de uma franqueza
atroz.
Uma das cartas, extensa (29/8/1904), explica que rejeita a ordem social e a religião, lar e virtudes burguesas,
enquanto se penitencia por tê-la magoado, fazendo o
leitor inferir que discutiram matrimônio. Contra o qual
ele era -tanto que só viriam a casar em 1931, depois de
27 anos de vida em comum e dois filhos-, mas que ela,
simples e devota (1º/9/1904), pressupõe-se que fosse a
favor. Acabam por fugir juntos e definitivamente a 18 de
outubro de 1904, quando a correspondência se interrompe. Vão se fixar em Trieste, via Zurique e Pola
(Croácia), onde permanecerão por muitos anos enquanto Joyce ensina inglês na escola Berlitz.
O segundo lote vai de 1909 a 1912 e é provocado por
uma primeira, e rara, separação. Em 1909 Joyce volta à
Irlanda, com o filho, por alguns meses. E é nesse interregno que todas as fúrias do inferno se desencadeiam.
Segundo o epistolário, uma alma caridosa diz-lhe que
também namorara Nora, em noites alternadas com as
de Joyce, nos mesmos meses de 1904 e percorrendo os
mesmos itinerários . Após uma noite de insônia, seguem os cálculos mais insultuosos: "George é meu filho? A primeira noite em que dormi contigo em Zurique foi a de 11 de outubro e ele nasceu em 27 de julho.
São nove meses e 16 dias. Lembro-me de que houve
pouco sangue naquela noite" (7/8/1909). Seu sofrimento é inegável e repisa a falha de confiança, da parte daquela que "me apertou nos braços e fez de mim um homem" (id.).
Duas semanas depois ainda não chegara resposta da
injuriada Nora. Entrementes um velho amigo defendera-a e desfizera a intriga. Joyce escreve pedindo perdão
e passa a revelar a intensidade e a qualidade dos laços
que o uniam àquela mulher nada sofisticada ("minha
Nora de coração simples" -21/8/1909), que era camareira de hotel. Muito dos arcanos desse laço indestrutível transparecem na correspondência.
Conforme Stanislaus, o artista quando jovem não era
nenhum santo, muito pelo contrário, já se mostrava
propenso à esbórnia, o que seria pela vida afora. Mas
pode-se dizer que Nora foi uma revelação carnal, devido à naturalidade do ardor com que mergulhava nesse
lado da vida. Tinham respectivamente 22 e 19 anos
quando começaram a namorar, e há consenso na atribuição do Bloomsday, 16 de junho, a uma celebração da
data em que firmaram compromisso, em 1904.
Reaquecimento da libido
Após cruéis cenas de
ciúmes e acusações, dá-se um reaquecimento da libido.
Vamos encontrar três tipos de cenas libidinais epistolares: rememorações, premonições e fantasias alternativas. Fica clara a divergência entre, de um lado, aquilo
que é rememoração de episódios eróticos que já se passaram entre ambos e, de outro lado, aquilo que Joyce
promete lhe fazer ou lhe solicitar no futuro. Nora acaba
entrando no jogo e passando a escrever-lhe -o que só
sabemos em espelho, através dos comentários dele em
suas próprias cartas- a respeito de suas rememorações pessoais e promessas para o reencontro, que servem a Joyce para devaneios onanistas, de que fala jocosamente sem rodeios em suas cartas.
O leitor não sabe o que mais admirar: se a suspensão
de todo decoro, se a incontinência verbal sobre tão variada gama de práticas, que vão desde o voyeurismo, a
masturbação, o coito anal e oral, a mania por roupas íntimas, lubricamente descritas, a pedofilia latente nas recomendações do uso de certos trajes e certas posturas,
até coprolalia e coprovoyeurismo. Tudo a definir o perverso polimorfo freudiano, de patamar infantil. Também comparece a flagelação, ao que parece apenas imaginária. Mas aqui os pormenores afloram o arquetípico,
com a rechonchuda ama-de-leite pondo a criança de
bruços no colo e fustigando seu traseiro, semelhante à
anamnese de Rousseau nas "Confissões", caso que se
transformou em fixação sexual. Estas cartas são, em
qualquer caso, de arrepiar os cabelos.
Depois desses arroubos epistolares e, ao que se infere,
ante protestos de Nora -que às vezes entrava no jogo
(20/12/1909), às vezes amuava (15/12/1909) -, Joyce
podia pedir perdão e jurar que a amava da maneira
mais completa (21/8/1909).
Após o tão suculento lote de 1909, o que resta é propriamente um anticlímax. Em outra ocasião, indo o casal à Irlanda em 1912, ele fica na capital, enquanto ela vai
visitar a família em Galway. Esse é o motivo para a retomada de uma rápida troca epistolar, antes de retornarem a Trieste após curto intervalo. Joyce morreria em
1941 e Nora em 1951, ambos em Zurique.
Encontro em Paris
Nem em seus sonhos de megalomania poderia o leitor inventar o que se passou na
realidade: os caminhos dos dois romancistas mais importantes do século acabaram por se cruzar, em 18 de
maio de 1922, no período em que Joyce morou em Paris. Os biógrafos mais autorizados de ambos falam do
encontro de maneira diversa, embora coincidente. Sentaram-se lado a lado, Proust em peliça e olheiras, Joyce
quase cego e já nos copos, numa recepção que um amigo comum, o escritor inglês Sydney Schiff, oferecia aos
Balés Russos no hotel Majestic. Afora eles, estavam presentes os integrantes do balé, como ("excusez du peu")
Stravinsky, Picasso, Diaghilev e outras pessoas gradas.
Naturalmente, ocasião tão momentosa veio a gerar
várias narrativas. Segundo uma delas, ambos trocaram
boletins de saúde, falando de asma e de cegueira, bem
como de padecimentos sortidos. Segundo outra, desculparam-se por nunca se terem mutuamente lido. Outra ainda, veiculada por Joyce, põe Proust à mesa falando de duquesas enquanto ele próprio só se interessava
por suas criadas. Após o jantar saíram juntos e tomaram o mesmo táxi com mais pessoas, depositando primeiro Proust e depois Joyce. Este fumou no carro e
abriu uma janela, quase fazendo Proust desmaiar de
horror. No dia 18 de novembro do mesmo ano Proust
morreria e Joyce acompanharia o féretro.
Conforme Tadié, o encontro jamais mereceu menção
ou apontamento de Proust. Tudo o que sabemos vem
de terceiros ou do próprio Joyce . Dentre as várias anotações, a predileta dos estudiosos é aquela em que Joyce,
escrevendo a Sylvia Beach em fins de outubro de 1922,
aplica a dicção "Finnegans Wake" a títulos de livros de
seu confrade, compondo anagramas com os nomes de
ambos: "... Em Busca das Sombrinhas Perdidas por Várias Raparigas em Flor no Caminho de Swann e Gomorréia & Co. por Marcelle Proyce e James Joust".
Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, autora, entre outros, de
"A Donzela-Guerreira" (Ed. do Senac) e "Desconversa" (Ed. da UFRJ).
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