São Paulo, domingo, 30 de julho de 2000


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O grande vizinho do Norte

Alain Touraine

As eleições mexicanas parecem satisfazer todo o mundo, como disse Carlos Fuentes. Uma considerável maioria apoiou Vicente Fox (do Partido da Ação Nacional, de centro-direita), e o fim do regime do PRI (Partido Revolucionário Institucional, que estava no poder havia 71 anos) transcorreu em perfeita calma, graças ao presidente Ernesto Zedillo. Enfim, a capital, Cidade do México, elegeu Lopez Obrador, que reaproximara o PRD (Partido da Revolução Democrática, de centro-esquerda) dos movimentos populares. Pode-se mesmo imaginar que a tendência mais conservadora e mais católica do PAN será suplantada pelo sucesso do novo presidente.
Eis então que o México se torna uma democracia onde as escolhas políticas são livres. Pode-se ver nessa extraordinária novidade o resultado de uma longa evolução, que fez do México, desde 1985 e do terremoto que provocou um grande movimento popular contra a corrupção, o país político mais vivo do continente. Essa leitura politológica da recente eleição contém certamente muitas verdades.
Mas deixa na sombra certos significados de extrema importância na queda do PRI. Pois em nenhum país do mundo existe política puramente interior, no México menos ainda que noutra parte, já que o país faz parte da união econômica do Atlântico Norte, e suas trocas comerciais com os EUA representam mais de três quartos de seu comércio internacional. O PRI era um fiel sustentáculo da política americana, mas Fox manifesta hoje seu desejo de incrementar ainda mais os laços do México com os Estados Unidos. Não basta mais falar de mercado comum; cumpre erigir relações ainda mais diretas de integração. Será que o México se tornará um imenso Porto Rico à medida que aumentar também o número de seus emigrados que podem agora dispor de dupla nacionalidade?
Compreende-se facilmente a alegria de todos aqueles que puseram abaixo um regime e um partido que simbolizavam a corrupção e a brutalidade aliadas à fragilidade que se manifestou em duas crises econômicas maiores, em 1982 e em 1994-5. Pode-se também imaginar que as vítimas estudantis e populares do massacre de Tlatelolco em 1968 sentem-se vingadas pela queda daqueles que os mandaram fuzilar em plena Cidade do México.
Mas cabe também indagar a natureza da mudança que se anuncia. Eleições limpas em substituição às pressões e trucagens que distorciam as eleições? Sim, e nesse ponto essencial, o mérito principal toca ao presidente Zedillo, que não mobilizou a administração para fazer ganhar seu próprio partido, o PRI.
Substituição de um partido único por uma escolha política livre? Essa afirmação é mais contestável. O PAN já governava vários Estados, e Cuauhtémoc Cárdenas fora triunfalmente eleito na Cidade do México, onde acaba de lhe suceder o dirigente do PRD, Lopez Obrador. A transformação do regime político, no essencial, já fora efetuada. O que é motivo de júbilo, mas cujo crédito cabe ao PRI. Havia já muitos anos, e em especial desde a ignominiosa queda de Salinas, que, no entanto, suscitara enormes esperanças ao criar seu programa nacional de solidariedade, que o PRI não era mais um partido único; muitos de seus membros o haviam deixado, quase sempre rumo ao PRD, mais à esquerda. Os eleitores quiseram abater em definitivo um regime antidemocrático e corrupto. Mas talvez não resida aqui o principal sentido do resultado de seus votos.
Em muitos países, caíram regimes provenientes de movimentos nacional-populares que se tornaram governos corruptos e ineficientes. Quem pode defender os partidos venezuelanos que Chavez desbaratou tão facilmente? Quem pode negar que, em suas duas primeiras eleições, Fujimori não teve em sua esquerda um verdadeiro adversário? Quem ainda deposita esperanças no populismo equatoriano à Bucarán? O caso da Colômbia é bem diverso, mas todos constatam o enfraquecimento de um governo que não controla mais grande parte de seu território e que negocia, abertamente ou não, com grupos guerrilheiros como as Farc, o ELN (ambos de orientação marxista) e os grupos paramilitares.
E, ao sul do continente, o que resta no governo de Menem do populismo peronista? Enfim, como esquecer que, no Chile, Lagos derrotou por pouco a Lavin, populista de direita não abertamente pinochista, mas apoiado pelo eleitorado do ditador, e que a vitória de Lavin pareceu mesmo provável após o primeiro turno da eleição? A juventude masculina e feminina sustentava com mais frequência esse candidato que os homens mais velhos, principais esteios do candidato de esquerda.
É verdade que as ditaduras militares caíram na América do Sul, mas os regimes nacional-populares que elas haviam desbancado nos países hoje membros do Mercosul ampliado não têm mais atualmente capacidade de governar. Nem sequer no Brasil, onde, no entanto, Tarso Genro amplia a sua influência, ou em Buenos Aires, onde Ibarra conquistou facilmente a prefeitura. Um longo período, quase um século, chega ao fim, a contar da Revolução Mexicana, do movimento estudantil de Córdoba e da geração de 1920 no Chile.
Após uma longa fase de decomposição, será que lhe sucederá uma esquerda mais bem organizada, dando prioridade a grandes reformas sociais e em especial à construção de um Estado de Bem-Estar Social? Talvez essa orientação social-democrata seja a de Ricardo Lagos no Chile; mas não é nada certo.
Em compensação, na metade norte do continente, por razões econômicas, mas também políticas, é a integração ao universo norte-americano que mais claramente se manifesta. Mais do que nunca essa região é o "backyard" (quintal) dos Estados Unidos. Fox proclama sua vontade de reforçar os laços com os grandes vizinhos do Norte; Chavez acrescenta a essa tirada bolivariana um programa econômico bastante liberal; a Argentina "dolarizou-se" tal como outros países menos importantes, e por toda parte a maioria dos bons estudantes de ciências exatas e economia forma-se nas grandes universidades americanas.
O governo dos Estados Unidos prepara às claras um plano geral de incorporação de toda a América Latina a sua zona de influência direta. E não se vê em parte alguma uma esquerda capaz de ser hoje um partido do governo. Nem mesmo no Uruguai, onde a Frente Ampla continua a abrigar um esquerdismo sobre o qual mal se concebe como pode introduzir mudanças realistas nesse país.
Sejamos concretos. Hoje não existem mais que duas orientações políticas na América Latina. De um lado, uma vontade de integração ao império americano, instigado pelo poderio econômico dos Estados Unidos e ainda pelo pronto sucesso da intervenção do FMI e do Tesouro americano no México. De outro, o conjunto que corresponde mais ou menos ao Mercosul e que, sob a direção controversa de FHC, se esforça por inventar uma política de centro-direita que representa, de fato, o que há de mais centro-esquerda no continente. Uma grande parte da população não se sente mais representada. Outra ainda maior prefere estar sob o domínio de um sistema econômico impessoal mundial a submeter-se a um governo nacional.
Que distância entre as intenções dos eleitores e o sentido provável das eleições! Os intelectuais não logram preencher o imenso vazio que se criou entre as duas orientações. No México, intelectuais de esquerda apoiaram ativamente Fox, a exemplo de Jorge Castañeda, impaciente com o desaparecimento de uma esquerda tagarela e decomposta; outros, como Carlos Fuentes, julgam necessária e positiva uma mudança, da qual, porém, temem as consequências.
E aqueles que ainda defendem a velha ideologia, em especial nas guerrilhas colombianas ou guatemaltecas, só fazem abrir caminho aos poderosos movimentos de integração pró-americana que proliferam. Os raros focos de movimento social, como os grupos indígenas de Chiapas, do Equador, da Guatemala, da Bolívia ou do sul do Chile estão hoje mais fracos que ontem. Que aqueles que atacam violentamente Cardoso, Battle, De La Rúa ou Lagos nos indiquem quais outras forças políticas podem limitar ou suster o avanço triunfante dos Estados Unidos em todos os continentes.


Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (Editora Vozes).
Tradução de José Marcos Macedo.


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