São Paulo, domingo, 30 de julho de 2000


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Em seu novo livro o crítico Luiz Costa Lima repensa o conceito aristotélico de mímesis, tirando-o do mundo da transcendência e instalando-o na inquietude da história
A palavra instável

Franklin Leopoldo e Silva
especial para a Folha

Nada menos do que repensar a mímesis: a tarefa que Luiz Costa Lima se propõe a realizar nesse livro poderia desconcertar ou assustar os leitores não familiarizados com a sua obra. Na verdade, a interrogação dessa noção fundadora da compreensão da arte ocidental vem sendo desde há muito um dos aspectos mais constantes do seu trabalho, razão pela qual o texto que agora se publica insere-se numa continuidade de reflexão, aliás expressamente apontada pelo autor, que remete a outros ensaios nos quais já havia tratado do mesmo tema.

Superar as dicotomias
Isso em nada diminui a força inovadora das idéias apresentadas, antes reforça-as com o lastro do cotejo com o que há de mais significativo no legado da tradição e na produção contemporânea. Trata-se de um livro decididamente propositivo, em que o autor manifesta de forma clara a sua posição, caracterizada sobretudo pelo esforço de superar as dicotomias em que se debate a modernidade, o que faz não simplesmente pela elaboração de sínteses a posteriori, mas sim pela compreensão da origem e da consolidação histórica de antagonismos que ensejaram muitas vezes o aparecimento de opções unilaterais e infiéis à complexidade do assunto. Para proceder a essa reaproximação, revigoradora de um tema que quase se poderia dizer desgastado pelos avatares de tratos simplificadores, o autor enfrenta a travessia de momentos estratégicos da história do pensamento, reconstruindo uma constelação de noções fundamentais que se constituem ao longo do percurso da mímesis, na tentativa de desvelar elementos nem sempre devidamente destacados na sucessão histórica das interpretações.

Mito e história
Considere-se, por exemplo, a dualidade que, já na Grécia, se estabelece entre o efeito mimético da representação trágica e a sistematização aristotélica, construída entre a descrição e a normatização, e que deveria ser lida a partir da ambiência histórica da sua constituição antes que interpretada como a súmula intemporal da poética. Somente assim se constataria que os limites da verossimilhança confluem com a diferença e que é somente na apreensão da diferença entre o relato mítico e a história que o espectador encontra a semelhança que lhe permite reconhecer-se na condição do outro. Não se trata, portanto, da mera transposição de uma cena primitiva, mas do efeito representativo que rebate numa configuração historicamente concreta de expectativas. É essa produção de efeito que, na representação, faz convergir distância e proximidade, semelhança e diferença. Donde se pode dizer então que a mímesis nunca foi exclusiva produção de semelhança e que o caminho da verossimilhança jamais se constituiu como uma estrada reta e aplainada entre a obra e o receptor. Como não considerar, ainda, que na paisagem da modernidade, em que prevalecem o sujeito e suas representações, o império da subjetividade alija a mímesis da relação entre o sujeito e o mundo? A condição epistemológica do sujeito cartesiano o faz recusar a multiplicidade enganosa das imagens sensíveis em prol da segurança da essência e da forma de teor geométrico, produzindo uma representação da realidade totalmente alheia ao caráter pictórico do mundo, às oscilações das qualidades perceptivas que nada mais são do que o assédio das imagens corpóreas, a serem banidas do conhecimento objetivo. Entre a unidade do sujeito e o construto matemático por ele apreendido está a mediação segura do método e a garantia, vinda da representação da idéia de ser infinito, de que Deus "sutura" o corte da finitude, o que permite ao homem cartesiano manter oculta a "fratura" do sujeito. Mas por isso mesmo é que podemos encontrar, sob a unidade epistemológica e a coesão substancial, o "sujeito fraturado", que expõe a falha da finitude quando se depara com o âmbito existencial das representações confusas e descontínuas que formam o seu entorno efetivamente humano. Esse recalque de uma outra figura da subjetividade deverá ser considerado quando a contemporaneidade fizer desabar, sobretudo a partir da desmistificação nietzschiana, o império do sujeito "solar", núcleo irradiador do sistema de representações.

Finalidade sem fim
No entanto, do ponto de vista das relações entre mímesis, representação e arte, o ponto crucial situa-se sem dúvida na filosofia kantiana. Mais do que em Descartes, em Kant a "fratura do sujeito" encontra-se exposta. Para aquilatar o alcance das consequências dessa cisão do sujeito, que já não pode mais ser recomposto numa unidade transcendente, o autor explora as propriedades do juízo de reflexão, examinado por Kant na "Crítica da Faculdade de Julgar" (1790).
Uma vez que esse juízo é inseparável da finalidade, isto é, da coordenação funcional das partes em vista do todo, a questão que se põe no caso do juízo de reflexão estético é a impossibilidade de uma finalidade extrínseca, que leva Kant a conceber a noção de finalidade sem fim, ou o "interesse desinteressado", como componente ordenador da reflexão. Essa finalidade intrínseca significa, no entanto, um obstáculo para Costa Lima, pois ela aparentemente nos obriga a redefinir a arte em termos de imanência total, isto é, de auto-suficiência interna e, no limite, intransitividade, o que nos impediria de pensar a mímesis no quadro kantiano de concepção da arte. Porém isso que parece um circuito fechado oferece ao expectador a ocasião de ajuizar por reflexão exatamente devido à impossibilidade de que o sujeito nesse caso possa relacionar a obra com uma apresentação de caráter fenomênico, ao modo da apresentação dos objetos. Isso significa que, na ausência de uma transitividade categorial ou conceitual, a carga simbólica se encarregará de proporcionar a transitividade, o que permite pensar a mímesis, no contexto kantiano, desde que não a concebamos exclusivamente como reprodução de modelos.

Fratura originária
Novamente aqui a representação-efeito e o horizonte de expectativas sociohistoricamente configurado fazem que, para o produtor e o receptor, a diferença que encerra a obra em si mesma possa ser vista também (trabalho do receptor) como a semelhança que o "horizonte sociocultural" encontra na obra e que faz operar o interesse singular e transindividual que assegura o efeito da representação. Se nossa compreensão estiver correta, podemos dizer então que a passagem por Descartes e Kant, isto é, pelo eixo constitutivo do par subjetividade-representação na modernidade, cumpre a função de nos fazer compreender que a diluição kantiana da substancialidade do sujeito cartesiano, bem como as consequências que daí decorrem, enfatizam a fratura originária e, em vez de nos encaminharem para a afirmação contemporânea da "morte do sujeito", antes nos deveriam encorajar a procurar nessa fratura algo como a figura deformada da subjetividade, que se impõe no cenário fragmentado da modernidade mais recente a partir do caráter deceptivo que fomos obrigados a atribuir ao sujeito unitário e seu sistema íntegro de representações. É nesse sentido que o autor revisita também a denúncia freudiana da megalomania humanista. Tudo isso significa que a mímesis, pensada a partir da fratura do sujeito e da representação, é perfeitamente compatível com uma "metamorfose da realidade". Essa observação é importante porque nos alerta para uma outra possibilidade de entender o advento histórico da intransitividade da literatura. O texto, aparentemente aprisionado no conjunto dos seus significantes, fala, mesmo quando almeja o silêncio. Porque essa fala não promana de um sujeito unitário e senhor absoluto da intencionalidade de suas representações; mas porque ela se projeta numa escuta interpretativa, de algum modo também esfacelada, provisória e não intencional, que assume a tarefa interminável de decifrar o sentido de que o texto é portador. Essa representação que metamorfoseia o que se apresenta, como vimos, é algo que não poupa a subjetividade, autoral ou receptora. Mas ela indica, assim, o componente ético da literatura: a escrita e a leitura não reproduzem, porque a realidade não é causa da escrita nem esta é, direta e exclusivamente, causa da leitura. O efeito representativo, mediado pela metamorfose, é a produção e a recepção como crítica, operada por via da diferença. Isso explica porque, depois que lemos a realidade representada, nós a vemos de outra maneira. Tanto a escrita quanto a leitura são testemunhos, mas de um sujeito que está fraturado, a um tempo em si e fora de si, por assim dizer no limite de sua identidade. Costa Lima cita Paul Klee: a arte não reproduz o visível, mas torna visível. Essa é a razão pela qual é preciso, numa concepção renovada e revigorada da mímesis, libertar a diferença recalcada pela tradição e recuperar a concórdia discordante do relato trágico. Representar a instabilidade do sujeito e do mundo: para isso a palavra deve recuperar a sua essencialidade, mas para dizer mais, nunca para calar. Advertência que faz sentido num mundo em que a racionalidade técnica e a lógica do consumo, presentes em todas as esferas da existência, levam ao esquecimento da fragilidade humana. Seria preciso devolver à palavra a força para reafirmar essa fragilidade: o paradoxo revela a verdade na medida em que transgride a expectativa lógica do verdadeiro como correspondência pré-anunciada. Não é por acaso que o último capítulo do livro é dedicado a Kafka. Nele se realiza, segundo Costa Lima, o processo romanesco de aniquilamento do sujeito. Mas há que se levar em conta o horizonte histórico crepuscular em que o predomínio das sombras faz com que os elementos opostos percam o caráter peremptório, tornando visível o espaço vazio da separação, esse entre-dois em que assoma a realidade do "terceiro excluído", que, por nada valer em si mesmo, confere validade a todas as oposições.

Movimento da ficção
É, portanto, a partir daí que se engendram as significações. E essa nulidade originária, contudo existente, gera a palavra despojada de seu lastro natural e, assim, capaz de questionar o que se tem por verdade, divergindo "da semelhança esperada". Ora, é aí que se encontra o desafio de repensar a mímesis: no deslocamento da verdade da estabilidade transcendental para a mobilidade da inquietude histórica. É esse movimento, próprio da ficção, que faz com que Kafka nos diga tantas coisas que preferiríamos ignorar. É esse efeito incômodo da representação literária que o autor desse livro pretende reavivar, "a mímesis como impulso independente, mas contaminado pelo real sociohistoricamente concebido".
A linguagem literária atualiza as hesitações do "sujeito fraturado", porque o trânsito da realidade à sua expressão é repleto de percalços. Mas é o único percurso em que se pode manter a esperança de verdade.



Mímesis
432 págs., R$ 45,00 de Luiz Costa Lima. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 585-2047).



Franklin Leopoldo e Silva é professor do departamento de filosofia da USP, autor de "Bergson -Intuição e Discurso Filosófico" (Ed. Loyola), entre outros.

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