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Em seu novo livro o crítico Luiz Costa Lima repensa o conceito aristotélico de mímesis, tirando-o do mundo da transcendência e instalando-o
na inquietude da história
A palavra instável
Franklin Leopoldo e Silva
especial para a Folha
Nada menos do que repensar a
mímesis: a tarefa que Luiz Costa Lima se propõe a realizar
nesse livro poderia desconcertar ou assustar os leitores não familiarizados com a sua obra. Na verdade, a interrogação dessa noção fundadora da
compreensão da arte ocidental vem sendo desde há muito um dos aspectos mais
constantes do seu trabalho, razão pela
qual o texto que agora se publica insere-se numa continuidade de reflexão, aliás
expressamente apontada pelo autor, que
remete a outros ensaios nos quais já havia tratado do mesmo tema.
Superar as dicotomias
Isso em nada diminui a força inovadora das idéias
apresentadas, antes reforça-as com o lastro do cotejo com o que há de mais significativo no legado da tradição e na produção contemporânea.
Trata-se de um livro decididamente
propositivo, em que o autor manifesta de
forma clara a sua posição, caracterizada
sobretudo pelo esforço de superar as dicotomias em que se debate a modernidade, o que faz não simplesmente pela elaboração de sínteses a posteriori, mas sim
pela compreensão da origem e da consolidação histórica de antagonismos que
ensejaram muitas vezes o aparecimento
de opções unilaterais e infiéis à complexidade do assunto.
Para proceder a essa reaproximação,
revigoradora de um tema que quase se
poderia dizer desgastado pelos avatares
de tratos simplificadores, o autor enfrenta a travessia de momentos estratégicos
da história do pensamento, reconstruindo uma constelação de noções fundamentais que se constituem ao longo do
percurso da mímesis, na tentativa de
desvelar elementos nem sempre devidamente destacados na sucessão histórica
das interpretações.
Mito e história
Considere-se, por
exemplo, a dualidade que, já na Grécia,
se estabelece entre o efeito mimético da
representação trágica e a sistematização
aristotélica, construída entre a descrição
e a normatização, e que deveria ser lida a
partir da ambiência histórica da sua
constituição antes que interpretada como a súmula intemporal da poética.
Somente assim se constataria que os limites da verossimilhança confluem com
a diferença e que é somente na apreensão da diferença entre o relato mítico
e a história que o espectador encontra a semelhança que lhe permite reconhecer-se na condição do
outro.
Não se trata, portanto,
da mera transposição de uma cena primitiva, mas do efeito representativo que
rebate numa configuração historicamente concreta de expectativas. É essa
produção de efeito que, na representação, faz convergir distância e proximidade, semelhança e diferença. Donde se pode dizer então que a mímesis nunca foi
exclusiva produção de semelhança e que
o caminho da verossimilhança jamais se
constituiu como uma estrada reta e
aplainada entre a obra e o receptor.
Como não considerar, ainda, que na
paisagem da modernidade, em que prevalecem o sujeito e suas representações,
o império da subjetividade alija a mímesis da relação entre o sujeito e o mundo?
A condição epistemológica do sujeito
cartesiano o faz recusar a multiplicidade
enganosa das imagens sensíveis em prol
da segurança da essência e da forma de
teor geométrico, produzindo uma representação da realidade totalmente alheia
ao caráter pictórico do mundo, às oscilações das qualidades perceptivas que nada mais são do que o assédio das imagens corpóreas, a serem
banidas do conhecimento
objetivo.
Entre a unidade do sujeito e o construto matemático por ele apreendido está a mediação segura
do método e a garantia,
vinda da representação da
idéia de ser infinito, de que Deus "sutura" o corte da finitude, o que permite ao
homem cartesiano manter oculta a "fratura" do sujeito.
Mas por isso mesmo é que podemos
encontrar, sob a unidade epistemológica
e a coesão substancial, o "sujeito fraturado", que expõe a falha da finitude quando se depara com o âmbito existencial
das representações confusas e descontínuas que formam o seu entorno efetivamente humano. Esse recalque de uma
outra figura da subjetividade deverá ser
considerado quando a contemporaneidade fizer desabar, sobretudo a partir da
desmistificação nietzschiana, o império
do sujeito "solar", núcleo irradiador do
sistema de representações.
Finalidade sem fim
No entanto, do
ponto de vista das relações entre mímesis, representação e arte, o ponto crucial
situa-se sem dúvida na filosofia kantiana. Mais do que em Descartes, em Kant a
"fratura do sujeito" encontra-se exposta.
Para aquilatar o alcance das consequências dessa cisão do sujeito, que já não pode mais ser recomposto numa unidade
transcendente, o autor explora as propriedades do juízo de reflexão, examinado por Kant na "Crítica da Faculdade de
Julgar" (1790).
Uma vez que esse juízo é inseparável da
finalidade, isto é, da coordenação funcional das partes em vista do todo, a questão
que se põe no caso do juízo de reflexão
estético é a impossibilidade de uma finalidade extrínseca, que leva Kant a conceber a noção de finalidade sem fim, ou o
"interesse desinteressado", como componente ordenador da reflexão. Essa finalidade intrínseca significa, no entanto,
um obstáculo para Costa Lima, pois ela
aparentemente nos obriga a redefinir a
arte em termos de imanência total, isto é,
de auto-suficiência interna e, no limite,
intransitividade, o que nos impediria de
pensar a mímesis no quadro kantiano de
concepção da arte.
Porém isso que parece um circuito fechado oferece ao expectador a ocasião de
ajuizar por reflexão exatamente devido à
impossibilidade de que o sujeito nesse
caso possa relacionar a obra com uma
apresentação de caráter fenomênico, ao
modo da apresentação dos objetos. Isso
significa que, na ausência de uma transitividade categorial ou conceitual, a carga
simbólica se encarregará de proporcionar a transitividade, o que permite pensar a mímesis, no contexto kantiano,
desde que não a concebamos exclusivamente como reprodução de modelos.
Fratura originária
Novamente
aqui a representação-efeito e o horizonte
de expectativas sociohistoricamente
configurado fazem que, para o produtor
e o receptor, a diferença que encerra a
obra em si mesma possa ser vista também (trabalho do receptor) como a semelhança que o "horizonte sociocultural" encontra na obra e que faz operar o
interesse singular e transindividual que
assegura o efeito da representação.
Se nossa compreensão estiver correta,
podemos dizer então que a passagem
por Descartes e Kant, isto é, pelo eixo
constitutivo do par subjetividade-representação na modernidade, cumpre a
função de nos fazer compreender que a
diluição kantiana da substancialidade do
sujeito cartesiano, bem como as consequências que daí decorrem, enfatizam a
fratura originária e, em vez de nos encaminharem para a afirmação contemporânea da "morte do sujeito", antes nos
deveriam encorajar a procurar nessa fratura algo como a figura deformada da
subjetividade, que se impõe no cenário
fragmentado da modernidade mais recente a partir do caráter deceptivo que
fomos obrigados a atribuir ao sujeito
unitário e seu sistema íntegro de representações. É nesse sentido que o autor revisita também a denúncia freudiana da
megalomania humanista.
Tudo isso significa que a mímesis, pensada a partir da fratura do sujeito e da representação, é perfeitamente compatível
com uma "metamorfose da realidade".
Essa observação é importante porque
nos alerta para uma outra possibilidade
de entender o advento histórico da intransitividade da literatura. O texto, aparentemente aprisionado no conjunto
dos seus significantes, fala, mesmo quando almeja o silêncio. Porque essa fala não
promana de um sujeito unitário e senhor
absoluto da intencionalidade de suas representações; mas porque ela se projeta
numa escuta interpretativa, de algum
modo também esfacelada, provisória e
não intencional, que assume a tarefa interminável de decifrar o sentido de que o
texto é portador.
Essa representação que metamorfoseia
o que se apresenta, como vimos, é algo
que não poupa a subjetividade, autoral
ou receptora. Mas ela indica, assim, o
componente ético da literatura: a escrita
e a leitura não reproduzem, porque a
realidade não é causa da escrita nem esta
é, direta e exclusivamente, causa da leitura. O efeito representativo, mediado pela
metamorfose, é a produção e a recepção
como crítica, operada por via da diferença. Isso explica porque, depois que lemos
a realidade representada, nós a vemos de
outra maneira. Tanto a escrita quanto a
leitura são testemunhos, mas de um sujeito que está fraturado, a um tempo em
si e fora de si, por assim dizer no limite de
sua identidade. Costa Lima cita Paul
Klee: a arte não reproduz o visível, mas
torna visível. Essa é a razão pela qual é
preciso, numa concepção renovada e revigorada da mímesis, libertar a diferença
recalcada pela tradição e recuperar a
concórdia discordante do relato trágico.
Representar a instabilidade do sujeito e
do mundo: para isso a palavra deve recuperar a sua essencialidade, mas para dizer mais, nunca para calar. Advertência
que faz sentido num mundo em que a racionalidade técnica e a lógica do consumo, presentes em todas as esferas da
existência, levam ao esquecimento da
fragilidade humana. Seria preciso devolver à palavra a força para reafirmar essa
fragilidade: o paradoxo revela a verdade
na medida em que transgride a expectativa lógica do verdadeiro como correspondência pré-anunciada.
Não é por acaso que o último capítulo
do livro é dedicado a Kafka. Nele se realiza, segundo Costa Lima, o processo romanesco de aniquilamento do sujeito.
Mas há que se levar em conta o horizonte
histórico crepuscular em que o predomínio das sombras faz com que os elementos opostos percam o caráter peremptório, tornando visível o espaço vazio da
separação, esse entre-dois em que assoma a realidade do "terceiro excluído",
que, por nada valer em si mesmo, confere validade a todas as oposições.
Movimento da ficção
É, portanto,
a partir daí que se engendram as significações. E essa nulidade originária, contudo existente, gera a palavra despojada
de seu lastro natural e, assim, capaz de
questionar o que se tem por verdade, divergindo "da semelhança esperada".
Ora, é aí que se encontra o desafio de repensar a mímesis: no deslocamento da
verdade da estabilidade transcendental
para a mobilidade da inquietude histórica. É esse movimento, próprio da ficção,
que faz com que Kafka nos diga tantas
coisas que preferiríamos ignorar. É esse
efeito incômodo da representação literária que o autor desse livro pretende reavivar, "a mímesis como impulso independente, mas contaminado pelo real
sociohistoricamente concebido".
A linguagem literária atualiza as hesitações do "sujeito fraturado", porque o
trânsito da realidade à sua expressão é
repleto de percalços. Mas é o único percurso em que se pode manter a esperança de verdade.
Mímesis
432 págs., R$ 45,00
de Luiz Costa Lima. Civilização
Brasileira (r. Argentina, 171, CEP
20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/
585-2047).
Franklin Leopoldo e Silva é professor do departamento de filosofia da USP, autor de "Bergson
-Intuição e Discurso Filosófico" (Ed. Loyola), entre
outros.
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