São Paulo, domingo, 30 de julho de 2000


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"Insultos Impressos" rastreia os debates virulentos travados na imprensa brasileira entre 1821 e 1823
Gazeteiros apaixonados

Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha

Em abril de 1823, no número inaugural do "Sentinela da Liberdade", Cipriano Barata, um dos mais atuantes jornalistas do Primeiro Império, lamentava a quantidade exorbitante de "gazeteiros" então em atividade no Brasil, gazeteiros que, segundo ele, publicavam "coisas que pouco ou nada" podiam "contribuir para a ilustração de povos livres". Barata tinha certa razão, era realmente notável o número de gazetas que, desde a liberação da imprensa em 1821, circulavam pelo país. Evaristo da Veiga, outro influente jornalista do período, informa que, por volta de 1823, eram publicados cerca de 54 jornais pelo Brasil afora, 16 deles na corte. Tratava-se, em geral, de periódicos de vida curta, tiragem limitada, linguagem virulenta e, acima de tudo, linhas editoriais apaixonadamente partidárias. Em "Insultos Impressos", livro da historiadora Isabel Lustosa, o leitor encontrará um esclarecedor mapeamento desse jornalismo passional e desmedido dos tempos de Barata. Debruçando-se sobre os periódicos editados na corte entre 1821 (o regresso de dom João 6º para Portugal) e 1823 (dissolução da Assembléia Constituinte), Lustosa identifica os principais jornalistas em atividade no período, analisa os seus estilos, demarca as suas posições políticas e reconstitui as principais polêmicas em que se envolveram. Ao término do percurso, o leitor sai não somente com uma visão detalhada dos três primeiros anos de existência da imprensa livre no Brasil, como ainda com um quadro amplo das discussões sobre os destinos do país travadas no seio da emergente elite política nacional. A história narrada em "Insultos Impressos" tem início no primeiro semestre de 1821, meses antes do regresso de dom João 6º a Portugal. O ponto de partida de Lustosa é a atuação de dois periódicos: o "Conciliador do Reino Unido", jornal governista editado pelo respeitado José da Silva Lisboa (futuro Visconde de Cairu), e o "Correio Brasiliense", editado em Londres pelo mais importante jornalista brasileiro do período joanino, Hipólito José da Costa. Desses jornais pioneiros, de estilo educado e pedagógico, a pesquisadora passa àqueles de tom mais agitado e contundente, como o "Revérbero", de Januário da Cunha Barbosa e Gonçalves Ledo, o "Espelho", órgão semi-oficial redigido por Manuel de Araújo Ferreira Guimarães, e "A Malagueta", do polêmico Luís Augusto May.

Consciência patriótica
Lustosa, analisando os debates suscitados nesses periódicos pelas medidas recolonizadoras que a corte portuguesa queria impor ao Brasil, põe em relevo o quanto tais debates influíram no rumo dos acontecimentos, mobilizando a opinião pública, despertando a consciência patriótica e, sobretudo, influenciando o comportamento do ainda inexperiente dom Pedro. Mais adiante, a autora põe em cena outro periódico, o "Correio do Rio de Janeiro" (1822), de José da Silva Lisboa. Lustosa dedica muitas páginas de seu livro a esse singular personagem do alvorecer da imprensa brasileira.
Homem pobre e de pouca instrução, esclarece-nos ela, Lisboa compensava as suas carências intelectuais com um estilo apaixonado e popular, o que acabou por garantir-lhe um espaço nada desprezível nos debates políticos da época. Um dos muitos e polêmicos artigos que publicou levou-o às barras dos tribunais e fez dele o primeiro jornalista brasileiro processado por abuso da liberdade de imprensa.
A historiadora nos conduz ainda, sempre por meio das inflamadas e nem sempre edificantes polêmicas estampadas nos periódicos da corte, ao "grito do Ipiranga", à ascensão e queda do gabinete de José Bonifácio de Andrada, à instalação da Assembléia Constituinte e à dissolução da mesma em 1823. Pelo caminho, entre dezenas de outros aspectos, dá a conhecer a perseguição que sofreu a imprensa durante o governo dos Andradas, os combates entre a Assembléia Constituinte e o "Diário do Governo", a violenta campanha antilusitana movida por certos órgãos da imprensa em 1823 e, como anuncia o título do livro, os muitos excessos verbais (e não só) cometidos pelos inflamados polemistas da época.
A esse propósito, a historiadora narra um caso exemplar envolvendo o próprio dom Pedro. Conta-nos ela que, em 1823, o Imperador do Brasil publicou um artigo anônimo no "Espelho", no qual atacava o redator de "A Malagueta", Luís Augusto May, da maneira mais grosseira possível, indo ao extremo de insinuar que May mantinha relações homossexuais com seu protetor, o conde das Galveias. Haveria muitíssimo mais a destacar nesse excelente "Insultos Impressos". O melhor, porém, é que o leitor recorra diretamente ao livro, que cedo deverá se tornar uma obra de consulta obrigatória para todos os que se interessam por aquele rico e conturbado período da história pátria -primeiro quarto do século 19-, durante o qual teve início a construção das bases do Estado e da cultura nacionais.



Insultos Impressos
498 págs., R$ 35,50 de Isabel Lustosa. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3846-0801).



Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio).


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