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Ponto de fuga
Bis
Jorge Coli
especial para a Folha
A favor ou contra "Cronicamente Inviável"? Os debates que o filme vem levantando nos jornais mostram, ao menos, que ele é capaz de abalar a modorra bem-pensante. O público parece
mais plenamente satisfeito: talvez reconheça, no filme, seu próprio sentimento de desconforto. Encontra ali a recusa
de endossar os projetos interpretativos
que a cultura brasileira vem fabricando
para si própria desde o século 19.
Toda a segurança cômoda de uma
"identidade nacional" vai por água
abaixo. O que servia de pedestal para
monumentos exegéticos, como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro ou Sérgio
Buarque de Holanda, por consequência ou corolário, desmorona.
O filme não trata nem desses nem de
outros autores. Mas ele propõe uma
"tabula rasa". Aqueles livros-monumento oferecem, de modo eloquente,
uma certa visão do Brasil. Eles "interpretam". Esquecemos, porém, do pedestal: essas interpretações vinculam-se a um tecido ideológico e vão além do
que aparentam. São normativas. Ao dizer o que é, ensinam como ser "brasileiro". Uma construção mental que se impõe como crença.
O filme, ao contrário, destrói qualquer pseudo-ontologia pátria, em que a
cultura imaginada possa adquirir um
peso de segunda, ou, até, de primeira
natureza. Além disso, Sérgio Bianchi
foge de toda visão sentimental e rousseauísta da humanidade. O homem é o
lobo do homem. Mas seus esquetes não
impedem uma estranha dimensão humana: no patético, no riso, na infâmia,
cada qual, rico ou pobre, encontra-se
preso pela mesma corrente.
Insígnias - Talvez o mais difícil, o
mais áspero, no filme de Bianchi seja
aceitar que não há "nós" nem "nossos"
nesse Brasil que ele mostra. É o oposto
das respostas coletivas que tranquilizam. Respostas que podem ser muito
sólidas, como ocorreu na história da
Alemanha, numa época de crenças em
falsas verdades plenamente aceitas. Os
nazistas analisavam, interpretavam,
mas numa comunhão básica de convicções -aquilo que "nós" somos, aquilo
que os "outros" são. O filme de Sérgio
Bianchi foge de certezas e desconhece
saídas. Mas demole os mitos da "criatividade popular", do "miscigenado cordial", da "alegria tropical", da "malandragem transgressora", da "consciência de classe", da "intelectualidade interpretante", dos "sentimentos generosos", das "elites".
É um instrumento de reflexão que
não incorpora, pelas suas dimensões
amplas, soluções políticas ou ataques
ao establishment. Seu alcance maior
encontra-se nesse "basta", seco, a ilusões e confianças.
Serros - A exposição Guignard, apresentada no Rio, está no Masp (SP). Ela
permite avaliar melhor a obra de um
dos mais cativantes artistas brasileiros.
Nem sempre suas paisagens de Minas
Gerais, características e celebradas,
mantêm a mesma qualidade. Há, por
instantes, um certo mal-estar diante de
fórmulas repetidas, de soluções sumárias e sistemáticas a ponto de serem
constrangedoras. Os arranjos florais,
por exemplo, podem testemunhar um
desequilíbrio entre o que é preenchimento banal e o achado que corisca, vivo, nervoso.
Certas referências transparecem, claras: embora com brio, as naturezas-mortas de conchas remetem imediatamente a De Pisis. Por vezes, o vôo de
Guignard é bem alto. Suas últimas paisagens instalam um imaginário poderoso e insólito. Mas ali onde não falha
nunca é nos retratos. Os rostos contidos, pretensamente serenos, deixam
despontar angústias secretas, perturbações que inquietam, contradizendo a
imagem elegante. Guignard foi, com
certeza, o nosso maior retratista.
Crash - Murnau ou Hitchcock: não os
mestres do pavor, mas nomes de personagens. Habitam o filme "Premonição", de James Wong. Morte sem corpo
e sem rosto, medo invisível, ele sinaliza
o que pode vir a ser um novo filão para
o terror teen: espécie de "Profecia" (76)
esvaziada de satanismo, o poder maléfico dos objetos e do cotidiano.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com
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