São Paulo, domingo, 30 de julho de 2000


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Ponto de fuga

Bis

Jorge Coli
especial para a Folha

A favor ou contra "Cronicamente Inviável"? Os debates que o filme vem levantando nos jornais mostram, ao menos, que ele é capaz de abalar a modorra bem-pensante. O público parece mais plenamente satisfeito: talvez reconheça, no filme, seu próprio sentimento de desconforto. Encontra ali a recusa de endossar os projetos interpretativos que a cultura brasileira vem fabricando para si própria desde o século 19.
Toda a segurança cômoda de uma "identidade nacional" vai por água abaixo. O que servia de pedestal para monumentos exegéticos, como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro ou Sérgio Buarque de Holanda, por consequência ou corolário, desmorona.
O filme não trata nem desses nem de outros autores. Mas ele propõe uma "tabula rasa". Aqueles livros-monumento oferecem, de modo eloquente, uma certa visão do Brasil. Eles "interpretam". Esquecemos, porém, do pedestal: essas interpretações vinculam-se a um tecido ideológico e vão além do que aparentam. São normativas. Ao dizer o que é, ensinam como ser "brasileiro". Uma construção mental que se impõe como crença.
O filme, ao contrário, destrói qualquer pseudo-ontologia pátria, em que a cultura imaginada possa adquirir um peso de segunda, ou, até, de primeira natureza. Além disso, Sérgio Bianchi foge de toda visão sentimental e rousseauísta da humanidade. O homem é o lobo do homem. Mas seus esquetes não impedem uma estranha dimensão humana: no patético, no riso, na infâmia, cada qual, rico ou pobre, encontra-se preso pela mesma corrente.

Insígnias - Talvez o mais difícil, o mais áspero, no filme de Bianchi seja aceitar que não há "nós" nem "nossos" nesse Brasil que ele mostra. É o oposto das respostas coletivas que tranquilizam. Respostas que podem ser muito sólidas, como ocorreu na história da Alemanha, numa época de crenças em falsas verdades plenamente aceitas. Os nazistas analisavam, interpretavam, mas numa comunhão básica de convicções -aquilo que "nós" somos, aquilo que os "outros" são. O filme de Sérgio Bianchi foge de certezas e desconhece saídas. Mas demole os mitos da "criatividade popular", do "miscigenado cordial", da "alegria tropical", da "malandragem transgressora", da "consciência de classe", da "intelectualidade interpretante", dos "sentimentos generosos", das "elites".
É um instrumento de reflexão que não incorpora, pelas suas dimensões amplas, soluções políticas ou ataques ao establishment. Seu alcance maior encontra-se nesse "basta", seco, a ilusões e confianças.

Serros - A exposição Guignard, apresentada no Rio, está no Masp (SP). Ela permite avaliar melhor a obra de um dos mais cativantes artistas brasileiros. Nem sempre suas paisagens de Minas Gerais, características e celebradas, mantêm a mesma qualidade. Há, por instantes, um certo mal-estar diante de fórmulas repetidas, de soluções sumárias e sistemáticas a ponto de serem constrangedoras. Os arranjos florais, por exemplo, podem testemunhar um desequilíbrio entre o que é preenchimento banal e o achado que corisca, vivo, nervoso.
Certas referências transparecem, claras: embora com brio, as naturezas-mortas de conchas remetem imediatamente a De Pisis. Por vezes, o vôo de Guignard é bem alto. Suas últimas paisagens instalam um imaginário poderoso e insólito. Mas ali onde não falha nunca é nos retratos. Os rostos contidos, pretensamente serenos, deixam despontar angústias secretas, perturbações que inquietam, contradizendo a imagem elegante. Guignard foi, com certeza, o nosso maior retratista.

Crash - Murnau ou Hitchcock: não os mestres do pavor, mas nomes de personagens. Habitam o filme "Premonição", de James Wong. Morte sem corpo e sem rosto, medo invisível, ele sinaliza o que pode vir a ser um novo filão para o terror teen: espécie de "Profecia" (76) esvaziada de satanismo, o poder maléfico dos objetos e do cotidiano.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com


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