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Juíza francesa descreve as dificuldades da lei para apurar os crimes econômicos atuais
A Justiça contra a delinquência financeira
Alcino Leite Neto
da Reportagem Local
Escândalos de corrupção política e econômica parecem não ter fim no Brasil. Mas o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, foragido, o ex-senador Luiz
Estevão, cassado, e o ex-secretário-geral da Presidência Eduardo Jorge Caldas Pereira, sob suspeita, não
são personagens de um drama exclusivamente nosso.
Esses homens ligados ao escândalo da obra superfaturada do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo representam o caso brasileiro da delinquência financeira
que se alastrou por todo o mundo nas últimas décadas.
O que não lhes diminui o erro nem a culpa. Pelo contrário: só aumenta.
O mundo do crime financeiro é o tema principal de
"Notre Affaire à Tous" (Nosso Assunto Comum), livro
da juíza francesa Eva Joly, lançado em junho, cuja tradução seria de grande utilidade no Brasil. Ele ilustra e
esclarece para o leitor comum os impasses e os desafios
da velha e boa Justiça neste mundo transfigurado pela
nova economia. A juíza Joly é um antídoto ao juiz Lalau.
As reflexões da francesa desmontam a idéia feita de
que os atos de corrupção e grande roubalheira do passado sejam equivalentes aos de hoje, com a vantagem
de vivermos numa sociedade transparente em que eles
têm mais chance de serem descobertos.
Circulação de capital
Há uma diferença histórica
crucial entre a corrupção passada e a atual, que está relacionada à forma de circulação do capital no chamado
mundo globalizado. Agora, a crise do Estado e a desregulamentação da economia, segundo Joly, liberaram as
fronteiras tanto para a especulação financeira quanto
para a máfia internacional -que de algum modo não
se contradizem. É como se a corrupção e a delinquência
deixassem as bordas obscuras do capitalismo e fossem
para o seu centro vital.
Joly escreve sem pestanejar: "No mundo das finanças,
já que nada pode ser proibido, tudo é de agora em diante permitido. Os banqueiros comentam entre si privadamente: se os lucros da cocaína desaparecessem de
um dia para o outro dos circuitos "off-shore" (composto
pelos paraísos fiscais), o sistema financeiro inteiro seria
perturbado".
A promiscuidade entre o capital mafioso, que lava seu
dinheiro no mercado internacional, e o capital especulativo, que se beneficia daquele para atingir mais lucros,
cria um regime de fluxos financeiros que apaga as fronteiras do direito, ao mesmo tempo em que a sociedade
clama por justiça quando os escândalos vêm à luz.
No regime de desregulamentação, os governos perdem boa parte de seu poder de controle das economias nacionais, mas os políticos preservam o de decisão sobre as privatizações e os serviços públicos. É pensando
neles que as empresas nacionais e internacionais mandam lobistas para os congressos, às vezes carregados de
propinas: "Raramente a decisão de um político teve, no
sentido próprio do termo, um preço tão alto, quanto na
hora da mundialização".
Esse é em resumo o quadro geral contemporâneo, segundo Joly, e que obriga o direito a atuar em novos horizontes, para os quais nem sempre está preparado.
Ao contrário do capital, a Justiça é lenta e está atrelada
às burocracias nacionais. O crime financeiro ultrapassa
as fronteiras, mas as trocas de informações entre as magistraturas de diferentes países ainda engatinham e enfrentam as limitações da organização jurídica de seus
Estados. Por fim, o capital vai repousar nos vários paraísos fiscais, como as ilhas Cayman, construídos justamente para serem impenetráveis às leis e aos juízes.
Vítima da vida
Diante do delinquente financeiro,
por outro lado, a Justiça encontra um sujeito que perturba a sua representação clássica do criminoso e que
ela tem dificuldades para enquadrar como réu. Joly recorda que o sistema penal francês (mas por que não o
brasileiro?) repousa na visão iluminista e humanista para a qual o criminoso é antes de tudo uma vítima de suas
condições de vida.
O criminoso financeiro, no entanto, não cabe nessa
representação: "Seu percurso reflete ao contrário uma
superadaptação e uma naturalidade social notáveis".
Tão notável, que ele próprio não confessa nunca, mesmo confrontado com provas incontestáveis. Joly cita
Edwin Sutherland, criador da expressão "crime de colarinho branco", em 1933: "Enquanto os delinquentes de
direito comum reconhecem que eles são criminosos e
são considerados como tais pelo público, os delinquentes de negócios são estimados por todos -a começar
por eles mesmos- como homens de bem e honrados.
Para eles, os verdadeiros criminosos são aqueles que fazem as leis, porque eles coordenam os negócios".
Como passos bem dados rumo a uma orquestração
internacional do direito contra o crime financeiro, Eva
Joly cita a operação Mãos Limpas, que conseguiu desmontar um complexo esquema de relações entre políticos e a máfia na Itália, e o Apelo de Genebra, lançado em
96 por sete magistrados europeus em prol de um espaço
judiciário comum ao continente. "Por que continuar a
recusar às informações judiciárias uma liberdade que se
dá à economia?", pergunta a juíza.
Joly não é a primeira a refletir sobre as questões que
afetam e modificam o direito -ou os direitos: civil, penal, financeiro, internacional, trabalhista etc.- nesta
era da demolição dos Estados, da circulação transnacional dos capitais, do fim do Welfare State, da revolução
tecnológica e da expansão mundial das máfias. Mas o
seu livro tem a vantagem de expressar essas mudanças
em linguagem não-técnica, ao mesmo tempo confessional e objetiva.
Eva Joly é uma celebridade na França. Nos últimos
anos, comandou o processo envolvendo suspeitas de
suborno político pela empresa petrolífera Elf Aquitaine.
O processo atingiu autoridades do primeiro escalão do
Estado francês, varou as fronteiras e foi explodir nas
mãos do ex-chanceler alemão Helmut Kohl, acusado de
ter sua campanha política financiada por propinas da
companhia, remetidas à Alemanha pelo presidente
François Mitterrand (1916-1996).
Trata-se de um dos maiores escândalos políticos europeus do pós-guerra, mas não é dele que Joly se ocupa
no livro, especificamente. Quando foi lançado na França, os jornalistas avançaram sobre "Notre Affaire à
Tous", esperando encontrar na obra revelações sobre o
processo. Não havia quase nada. O silêncio mortal da
juíza sobre o caso Elf, levou a imprensa a acusá-la de
aproveitar o episódio para se autopromover por meio
do livro. Chegaram a ironizar seu nome, dizendo que
lembrava o das mocinhas do espetáculo de dança Crazy
Horse.
Joly, 56 anos, tem senso de oportunidade, é certo.
Também se orgulha de, norueguesa e protestante de
nascimento, ter vencido na França católica. E boa parte
do livro é dedicada a justificar seu perfil psicológico
(contra-atacando as descrições que a imprensa tem feito dela) e a narrar o seu trajeto biográfico -a chegada a
Paris nos anos 60, os estudos de direito, os primeiros
trabalhos em um hospital psiquiátrico e com jovens delinquentes até a chegada ao Ministério da Justiça francês.
Gro Farseth (seu nome de batismo) recheia sua história pessoal de generalidades sobre o direito e sua aplicação, o serviço público na França e a sociedade do país,
traçando um painel miúdo das dificuldades cotidianas
de fazer cumprir a lei. São comentários periféricos, focados sobretudo na descrição de sua "guerrilha" (palavras dela) interminável contra a burocracia e o atraso
técnico da Justiça francesa, que ela atribuiu em grande
parte ao conformismo e à pachorra dos magistrados.
Muitas vezes, tem-se a impressão de que ela fala dos
corredores da Justiça brasileira.
Quem não quiser se estender demais nesses assuntos
pode ir direto ao ponto em que o livro ganha fôlego e
importância geral -do capítulo "Como Eu Descobri os
Crimes de Dinheiro" em diante. O título espelha a vaidade da autora, mas é justamente a partir daí que ela vai
aos poucos se retirar de cena para deixar ver a catástrofe
em que nós estamos metidos.
A obra:
"Notre Affaire à Tous" (Ed. Les Arènes, 98 francos), de Eva Joly, pode
ser encomendado na Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275,
fundos, SP, tel. 0/xx/11/231-4555).
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