São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TRECHO

ARIEL DORFMAN

Saí para uma demorada caminhada sozinho. Eu gostava, e ainda gosto, das noites de verão em Santiago. Mesmo hoje, quando o nevoeiro e a fumaça arruinaram o Vale Central, quando o excesso de carros poluiu o ar e as árvores foram derrubadas para dar espaço a feias quadras de prédios e avenidas infestadas, mesmo hoje que sujamos impiedosamente o que foi uma paisagem mágica, ainda hoje, permanece a sensação de deslumbramento e gratidão quando o sol começa a se por. Estar vivo no momento em que a brisa desce das montanhas e você respira fundo, não somente com os pulmões, mas através da própria pela, como se a terra o acalmasse, é conhecer uma medida do perdão. É somente uma trégua no escuro, mas sempre que estou sob os Andes de Santiago e sinto essa súbita rajada que parece vir dos portais do Paraíso e faz recuar o calor intenso e seco do dia, quando olho para cima e as montanhas estão em fogo com o pôr-do-sol, os Andes se tornando laranja, depois, vermelho, e o céu atrás casa vez mais púrpura, até escurecer, e a noite fica em suspensão, tenho certeza de que essa é a condição para a qual fomos feitos, essa paz. Tudo é uma ilusão, não pode durar, esse interlúdio de crepúsculo, quando parecemos ser abençoados, quando parecemos ter reencontrado o nosso caminho, o que, por um breve momento, é verdade, o corpo, a brisa, essa momento silencioso suspenso entre a luz e as trevas, que se deseja que nunca termine. Sinto isso agora e sentia na época, respirando a dádiva dos Andes e desejando ser sepultado ali, ter as minhas cinzas espalhadas nesse lugar.
Foi onde e quando me perguntei, sob aquelas montanhas, se esse país não tinha se tornado, de alguma maneira que eu não previra, a minha terra. Foi onde decidi, longe de Nova York e longe de Buenos Aires, um futuro diferente para a minha vida. Mas e a minha literatura? E o meu inglês? A decisão de não retornar aos Estados Unidos não teria sido concebida se eu não tivesse chegado à conclusão, durante meus anos no secundário, de que poderia continuar escrevendo ficção na língua inglesa mesmo que estivesse distante dos Estados Unidos. (...)
Quando eu tinha mais ou menos quinze anos, a minha escrita amadureceu abruptamente. De novo uma doença interveio, um tipo perigoso de hepatite. Consultei meu velho amigo Thomas Mann, que acreditava na simbiose da doença e criatividade, morte e exploração artística, decomposição interna e a ordem externa que impomos à página podia explicar a minha virada com esse encontro breve com a minha mortalidade. Independentemente da causa, durante a minha convalescença de dois meses, escrevi um épico delirante e utópico, de ficção científica, de 400 páginas, casando pela primeira vez política e fantasia; e também ambientando minhas personagens longe dos Estados Unidos, um afastamento decisivo do realismo. Quando voltei às aulas e retomei minhas atividades normais, descobri que escrever - criando uma visão alternativa - podia influenciar a maneira de se viver.
Trecho do livro "Uma Vida em Trânsito".



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.