São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1998

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MADE IN USA
Carência de filosofia


Em congresso nos EUA, 4.000 pensadores discutem os novos rumos da disciplina


CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

De 10 a 16 de agosto, aconteceu em Boston o 20º Congresso Mundial de Filosofia. Desde 1900, a cada cinco anos mais ou menos, a Federação das Sociedades Filosóficas convoca esse evento, que é, provavelmente, a maior manifestação da comunidade filosófica internacional.
Os filósofos são em geral acadêmicos. O congresso de Boston se deu portanto sob os auspícios de várias universidades locais, como Boston College, Universidade de Boston, Brown e Universidade de Massachusetts. Mas, surpreendentemente, o congresso parecia animado sobretudo pela intenção de expandir o alcance da filosofia além dos claustros universitários.
Um dos comunicados de imprensa do congresso dava destaque a uma questão provocadora de D. Hoekema (filósofo americano): "Porque não estudar algo prático, como a filosofia?". Em seguida, sob esta citação, era enumerados vários fatos significativos para o destino atual e futuro da filosofia pelo menos nos EUA.
Entre eles: os alunos de graduação que escolhem filosofia como disciplina principal parecem ir melhor do que todos os outros nos exames de admissão às escolas de especialização pós-graduadas. Há mais graduados em filosofia trabalhando na indústria ou nos negócios do que graduados em qualquer outra matéria humanística. Os doutores em filosofia têm uma taxa de emprego de 98,9%, mais alta do que a média das humanas. Entre eles -que são 7.500 nos EUA-, 79,7% trabalham na educação, 6,9% trabalham na iniciativa privada, 4,4% são profissionais liberais, 4,6% trabalham para uma instituição sem fins lucrativos e 4,1 % trabalham para o governo.
Novidade recente: alguns filósofos se aventuram também no "counseling" filosófico -inventado na Europa nos anos 80. Eles oferecem uma espécie de terapia baseada na idéia de que o patrimônio da reflexão filosófica possa ajudar qualquer um a solucionar seus problemas pessoais, sobretudo éticos e decisionais.
O enérgico comunicado de imprensa parece emanar de uma disciplina decidida a lutar para uma nova legitimidade social. Trata-se de preocupação constante para a filosofia, ironizada popularmente como a disciplina "com a qual ou sem a qual tudo fica tal qual".
O congresso deste ano era ambiciosamente orientado nessa direção. Seu título era "Paidéia - A Filosofia Educando a Humanidade". O lema pomposo e quase cômico sem dúvida instigava a volta do ensino de filosofia aos programas do secundário americano. Mas, além disso, designava uma aspiração bem maior, que foi explicitada por John Silber -reitor da Universidade de Boston nos últimos 15 anos e atualmente chefe do conselho da educação (Board of Education) do Estado de Massachusetts.
Tanto em suas declarações à imprensa quanto em sua conferência na manhã do último dia, Silber, do alto de sua autoridade administrativa, imaginou e propôs um plano de ação para devolver à filosofia um lugar de influência (que ela, aliás, nunca teve). Primeiro passo: eliminar todo relativismo antropológico para restaurar o caráter absoluto de Verdade e Razão (a maiúscula aqui é obrigatória). Segundo, que os filósofos abdiquem de toda pretensão de originalidade para "recuperar os fundamentos da moral essenciais para a vida humana".
Nestes tempos de confusão das consciências, os filósofos poderão assim redescobrir para todos "as leis morais impostas pela própria natureza". Silber afirmou que "é possível demonstrar o valor universal de cada princípio moral que seja genuíno" e chegou a propor um exemplo que, no seu ver, deveria resolver enfim o problema da universalidade da moral. Ele notou que Cristo, Confúcio, Buda, Aristóteles e Kant concordam que o princípio de reciprocidade (tratar os outros como gostaria de ser tratado) é socialmente necessário. Logo, ele não hesitou: foi da necessidade para a universalidade, da universalidade para a natureza quase biológica e de lá subiu feliz para colocar a filosofia no céu empíreo de uma futura ciência moral exata.
Na pressa de garantir à filosofia a função social de nova guardiã da moral em tempos de confusão ética, Silber conseguiu tomar uma regra cultural elementar do contrato social e transformá-la em bioverdade.
Houve filósofos para aplaudir este inquietante programa de ação filosófica -uma boa metade da sala plenária. Mas não se sabe se aplaudiram por cansaço, por covardia (afinal Silber é administrativamente um personagem poderoso) ou por reflexo pavloviano do tipo "alguém fala, logo aplaudo".
A moda proposta, em suma, nesse congresso em Boston era o absolutismo universalista da razão produzindo critérios morais e regras de vida também universais. O que faz eco ao comunicado de imprensa citado acima: se a filosofia souber produzir verdades éticas absolutas, eis que o ensino destas verdades deverá vir a fazer parte do básico. Créditos e empregos não faltarão para os discípulos de Platão enfim encarregados de dirigir a república.
Felizmente, o congresso não se resumiu a seu título e às esperanças hegemônicas de Silber. Houve também muitos filósofos de verdade -entre os 1.000 que falaram e os 4.000 mil que participaram.
A imensa variedade dos temas e das comunicações, aliás, lembrou justamente que a filosofia hoje não coincide mais com nenhum projeto universal da razão.
O momento mais alto da semana foi a noite organizada pela Library of Living Philosophers (Biblioteca de Filósofos Vivos) -a extraordinária série da Editora Open Court (1). Encontraram-se em uma mesma mesa Peter Strawson, Donald Davidson, Willard Quine, Karl-Otto Appel, Marjorie Grene e Seyed Hossein Nasr (faltavam, entre os filósofos celebrados pela série e ainda vivos, só Habermas, Gadamer e Ricoeur).
Foi um debate surpreendentemente animado -sobretudo levando-se em conta o caráter celebrador da reunião e a idade veneranda, quase mítica, da maioria dos convidados. Grene, por exemplo, não gosta de lógica e portanto ainda se pergunta para que serve a obra de Quine. Por outro lado, ela se juntou a Strawson e Davidson para declarar o cartesianismo zona desastrada. Appel ficou assim sozinho para defender -por conta própria e de seu ausente amigo Habermas- a pregnância de uma certa herança cartesiana, lamentando, por exemplo, que pragmatismo, filosofia da linguagem e mesmo hermenêutica deixem de lado a questão transcendental kantiana (ou seja, a questão sobre as condições de validade dos enunciados).
Além desses divertimentos filosóficos, a noite ofereceu uma espécie de resposta a Silber, pois todos os debatedores poderiam concordar que o sujeito humano é antes de mais nada um sujeito-no-mundo, um sujeito com os outros -e não uma construção dedutiva. Esta constatação anticartesiana se impunha a Appel a partir de Heidegger. Formulada de maneira diferente, ela era para os outros um dado empírico ou linguístico elementar. Mas o essencial é que todos desmentiam implicitamente qualquer projeto racionalista universal.
Uma resposta explícita veio, na mesma mesa, de Seyed Nasr, que é o primeiro filósofo de tradição não inteiramente ocidental a figurar na Library of Living Philosophers. Ele entendeu o título do congresso em toda sua ambição: como a filosofia ocidental querendo educar a humanidade toda. Portanto ele sugeriu que a frase fosse invertida e a humanidade (em sua diversidade) passasse a educar um pouco a filosofia ocidental.

Nota 1. A Library of Living Philosophers é uma série publicada desde 1938 pela Editora Open Court, de Chicago. Até 1981 os volumes foram editados por A. Schilpp, a quem sucedeu Lewis Hahn -o projeto continuando igual. Cada volume é dedicado a um filósofo vivo e começa com uma imperdível autobiografia intelectual (muito raramente uma biografia aprovada pelo filósofo). Seguem ensaios críticos de exponentes e oponentes do pensamento do filósofo em questão, cada um comentado por ele. A série inclui volumes sobre Dewey, Santayana, Moore, Russel, Cassirer, Jaspers, Popper, Sartre, Einstein, Buber, Gabriel Marcel e os outros mencionados acima.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail ccalligari@aol.com



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