São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1998

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PONTO DE FUGA
Pintor da noite

JORGE COLI
especial para a Folha

Há muito não tínhamos uma exposição de tal importância. A vinda de duas obras de Caravaggio ao Brasil (Museu de Arte de São Paulo) é um acontecimento maior. Ele é acrescido de um conjunto de âmbito caravaggesco, quase totalmente derivado das fabulosas coleções do Palazzo Barberini, de Roma, mais suntuosos Valentin e Régnier do Museu do Louvre. Está ali o diálogo de Caravaggio com o mundo da arte romana do seu tempo, com Orazio e Artemisia, está ali sua descendência artística. Pai de uma arte nova, ele reinventou a pintura.
Abandonou a representação perspectiva para explorar a escuridão. Os objetos e os seres não se encontram mais num mundo que os antecede e que o Renascimento havia regulado pela geometria: eles emergem à existência por meio da luz, propulsados pelas forças do obscuro. Tudo se torna sintético, poderoso, por vezes violento, golpeando o espectador. Os temas aristocráticos são abolidos e é o populacho que irrompe aos nossos olhos num heroísmo misterioso e inédito. Alguns estudiosos, escravizados às classificações, excluem Caravaggio daquilo que se convencionou chamar barroco. Em verdade, ele criou novas e essenciais sensibilidades, determinantes para esse mesmo barroco. O alcance de suas novidades foi enorme -sem ele, não existiria a arte imensa de La Tour, Rembrandt ou Zurbarán.

BRUMAS - Caravaggio teve uma multidão de seguidores que os especialistas tentam distinguir uns dos outros -e às vezes do próprio Caravaggio. É frustrante desconhecer o autor de uma obra-prima da mostra do Masp, o "Pescador Que Limpa uma Arraia", mas, por outro lado, diante da dança das opiniões, pode-se desconfiar de atribuições nítidas. As flutuações no catálogo de Caravaggio não cessam, como testemunham suas duas obras hoje em São Paulo. "Il bari", do museu de Fort Worth, só muito recentemente foi reconhecida como o protótipo autêntico de muitas cópias e versões diversas. O "Narciso", uma das imagens mais célebres de toda a história da arte, nunca reuniu uma unanimidade sobre sua autoria. Apesar de assolada por restauradores através dos séculos, ela guarda uma beleza poética tão expressiva e tão alta, que repõe as minuciosas discussões eruditas dentro de seus limites reduzidos.

BELA DONNA - Difícil dizer o que seja pior: a direção, a adaptação do romance, a negligência na reconstituição de época, o massacre na música de Villa-Lobos ou os cabelos do ator (?) Eduardo Moscovis. Porém a beleza e a intensidade de Natasha Henstridge ("Experiência 1 e 2") sobressaem nesse deserto, demonstrando que ela merece mais do que ser vítima de alienígenas tarados ou de maus filmes brasileiros.

MINHOCAS - "Godzilla" vai terminando sua carreira em nossas telas. Não foi muito amado pelo público e bem pouco pela crítica. Mas criou uma Nova York noturna, deserta, onírica, invadida por um animal desmedido e faminto, que termina aprisionado nos cabos da ponte do Brooklin, esses mesmos cabos que John Cage considerava a maior das harpas eólias.


Jorge Coli é historiador da arte
E-mail: coli20@hotmail.com



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