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Thomas Mann por Reginaldo Prandi
Abismo da moral
Dias antes de morrer, em junho de
1913, o escritor alemão Gustav von
Aschenbach, em férias longe de sua Munique, iniciou uma carta ao amigo Max
Brücke, agora publicada como
posfácio à nova edição de "Um
Miserável", editado originalmente em 1912, em que se lê:
"Hoje eu não publicaria "Um
Miserável", a menos que lhe
desse outro final".
Inconclusa, a carta estava
entre os pertences do escritor
na suíte do hotel italiano onde
morreu. Ela traz revelações
que o livro esconde e que mudam a imagem do protagonista.
"Um Miserável" conta a história do médico Rudolf Lenhard, filho de uma rica família
de Augsburgo, a vida toda devotado aos valores da moralidade, que, a seu ver, proviam o
único meio de vencer a decadência -tanto física, do homem, como espiritual, da nação. Já velho, casa-se com Charlotte, jovem de grande beleza e hábitos moldados na religião. O casamento fracassa.
Charlotte se entrega à depressão.
Temporada de caça
Rudolf leva Charlotte para
uma temporada em Karlovy
Vary, balneário da Boêmia onde reis, nobres e burgueses milionários vão curar seus males
nas fontes termais e se divertir
nos mais refinados salões. Stefan, camareiro do hotel, de 17
anos de idade, atende marido e
mulher nos banhos e logo passa
a guiá-los nos passeios.
Torna-se acompanhante
permanente. Charlotte renasce, é outra mulher. Rudolf exulta. Credita o milagre ao poder
curativo das águas.
O casal retorna a Augsburgo,
e Charlotte piora. Rudolf não
titubeia: manda vir de Karlovy
Vary o jovem tcheco.
Instala Stefan na cama do casal, "asquerosa revelação da natureza fraca de um homem ordinário e tolo que, para realizar uma paixão, atira a mulher, por
fraqueza, depravação ou veleidade, nos braços de um jovem
imberbe", diz o livro, preparando novas revelações e o desfecho de castigo e remissão.
Chave da obra
Explorando a tensão entre o
eu e o mundo, como é próprio
do romance de formação, Aschenbach fez de "Um Miserável" uma obra-prima. Chegou
ao topo. Intérprete dos valores
da Alemanha no limiar da Primeira Guerra, o escritor achava
que tudo o que é grandioso
existia como um "apesar de". É
a chave de sua obra.
Na última carta, duvida de
que a dignidade humana deva
ser provada a cada etapa da vida
"no esforço de manter, pelo rigor da disciplina, os valores e
ideais da beleza, perfeição e força moral". Lamenta ter lançado
o personagem Rudolf ao desprezo do leitor ao rebaixá-lo
por sua incapacidade de renunciar à lassidão moral, por sua
entrega ao abismo.
"A derrota física do homem
que envelhece humilhado pela
beleza juvenil prova ser leviana
sua reconciliação com o mundo. Apaixonado, o velho não
pode discernir se age por zelo
ou devassidão: seu único propósito é ficar junto do ser amado. Sem isso, ele morre. Para isso ele se submete aos ditames
do diabo."
Para precisar um trecho do
livro que agora lhe parece vago,
na carta descreve com ardor o
camareiro Stefan: "O rosto pálido, graciosamente reservado,
emoldurado por cabelos loiros
ondulados, o nariz reto, a boca
adorável, a expressão de seriedade afável, digna de um deus
grego. Combinação única da
pura perfeição da forma com
um encanto pessoal exclusivo.
Modelo perfeito para o mais
sublime são Sebastião, símbolo
não do tormento, mas do triunfo: uma virilidade que, em orgulhoso pudor, cerra os dentes e
se mantém de pé, serena, enquanto seu corpo é varado de
flechas".
Aqui a carta é interrompida.
Tomado pela febre, talvez estivesse descrevendo não Stefan,
o jovem tcheco, mas Tadzio, o
garoto polonês que corria descalço pela praia do hotel em que
estavam hospedados, aprisionando seu olhar dissimulado.
Jogo de espelhos
Aschenbach finalmente encontrou naquele hotel do Lido
de Veneza a beleza que procurou a vida toda. Uma vida de
disciplina e trabalho árduo com
as palavras, na busca obsessiva
do belo, a que se chega apenas
pela arte, como erroneamente
acreditava, não bastou para
desviá-lo do abismo. O belo se
mostrou no corpo do adolescente polonês por quem se
apaixonou e se perdeu.
Incapaz de se afastar do amado, cuja família retardava a partida, Aschenbach foi se deixando ficar na cidade tomada pelo
cólera. Quando eles enfim partiram, para ele já era tarde. No
mesmo dia o mundo recebia a
notícia de sua morte.
A paixão trágica por Tadzio
não interrompeu, contudo, seu
ofício. Num jogo de espelhos
com o personagem, o escritor
refaz seu juízo sobre a beleza e a
vida. A carta nos dá outra medida da paixão de "Um Miserável". Afinal, "a humanidade se
torna mais sábia ao respeitar o
mistério que o homem é, em espírito e natureza", concluiu Aschenbach dias antes de sua
morte em Veneza.
REGINALDO PRANDI é professor de sociologia
na USP e autor de "Mitologias dos Orixás" e "Segredos Guardados" (Cia. das Letras).
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