São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2007

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Thomas Mann por Reginaldo Prandi

Abismo da moral

Dias antes de morrer, em junho de 1913, o escritor alemão Gustav von Aschenbach, em férias longe de sua Munique, iniciou uma carta ao amigo Max Brücke, agora publicada como posfácio à nova edição de "Um Miserável", editado originalmente em 1912, em que se lê: "Hoje eu não publicaria "Um Miserável", a menos que lhe desse outro final".
Inconclusa, a carta estava entre os pertences do escritor na suíte do hotel italiano onde morreu. Ela traz revelações que o livro esconde e que mudam a imagem do protagonista.
"Um Miserável" conta a história do médico Rudolf Lenhard, filho de uma rica família de Augsburgo, a vida toda devotado aos valores da moralidade, que, a seu ver, proviam o único meio de vencer a decadência -tanto física, do homem, como espiritual, da nação. Já velho, casa-se com Charlotte, jovem de grande beleza e hábitos moldados na religião. O casamento fracassa. Charlotte se entrega à depressão.

Temporada de caça
Rudolf leva Charlotte para uma temporada em Karlovy Vary, balneário da Boêmia onde reis, nobres e burgueses milionários vão curar seus males nas fontes termais e se divertir nos mais refinados salões. Stefan, camareiro do hotel, de 17 anos de idade, atende marido e mulher nos banhos e logo passa a guiá-los nos passeios.
Torna-se acompanhante permanente. Charlotte renasce, é outra mulher. Rudolf exulta. Credita o milagre ao poder curativo das águas.
O casal retorna a Augsburgo, e Charlotte piora. Rudolf não titubeia: manda vir de Karlovy Vary o jovem tcheco.
Instala Stefan na cama do casal, "asquerosa revelação da natureza fraca de um homem ordinário e tolo que, para realizar uma paixão, atira a mulher, por fraqueza, depravação ou veleidade, nos braços de um jovem imberbe", diz o livro, preparando novas revelações e o desfecho de castigo e remissão.

Chave da obra
Explorando a tensão entre o eu e o mundo, como é próprio do romance de formação, Aschenbach fez de "Um Miserável" uma obra-prima. Chegou ao topo. Intérprete dos valores da Alemanha no limiar da Primeira Guerra, o escritor achava que tudo o que é grandioso existia como um "apesar de". É a chave de sua obra.
Na última carta, duvida de que a dignidade humana deva ser provada a cada etapa da vida "no esforço de manter, pelo rigor da disciplina, os valores e ideais da beleza, perfeição e força moral". Lamenta ter lançado o personagem Rudolf ao desprezo do leitor ao rebaixá-lo por sua incapacidade de renunciar à lassidão moral, por sua entrega ao abismo.
"A derrota física do homem que envelhece humilhado pela beleza juvenil prova ser leviana sua reconciliação com o mundo. Apaixonado, o velho não pode discernir se age por zelo ou devassidão: seu único propósito é ficar junto do ser amado. Sem isso, ele morre. Para isso ele se submete aos ditames do diabo."
Para precisar um trecho do livro que agora lhe parece vago, na carta descreve com ardor o camareiro Stefan: "O rosto pálido, graciosamente reservado, emoldurado por cabelos loiros ondulados, o nariz reto, a boca adorável, a expressão de seriedade afável, digna de um deus grego. Combinação única da pura perfeição da forma com um encanto pessoal exclusivo.
Modelo perfeito para o mais sublime são Sebastião, símbolo não do tormento, mas do triunfo: uma virilidade que, em orgulhoso pudor, cerra os dentes e se mantém de pé, serena, enquanto seu corpo é varado de flechas".
Aqui a carta é interrompida. Tomado pela febre, talvez estivesse descrevendo não Stefan, o jovem tcheco, mas Tadzio, o garoto polonês que corria descalço pela praia do hotel em que estavam hospedados, aprisionando seu olhar dissimulado.

Jogo de espelhos
Aschenbach finalmente encontrou naquele hotel do Lido de Veneza a beleza que procurou a vida toda. Uma vida de disciplina e trabalho árduo com as palavras, na busca obsessiva do belo, a que se chega apenas pela arte, como erroneamente acreditava, não bastou para desviá-lo do abismo. O belo se mostrou no corpo do adolescente polonês por quem se apaixonou e se perdeu.
Incapaz de se afastar do amado, cuja família retardava a partida, Aschenbach foi se deixando ficar na cidade tomada pelo cólera. Quando eles enfim partiram, para ele já era tarde. No mesmo dia o mundo recebia a notícia de sua morte.
A paixão trágica por Tadzio não interrompeu, contudo, seu ofício. Num jogo de espelhos com o personagem, o escritor refaz seu juízo sobre a beleza e a vida. A carta nos dá outra medida da paixão de "Um Miserável". Afinal, "a humanidade se torna mais sábia ao respeitar o mistério que o homem é, em espírito e natureza", concluiu Aschenbach dias antes de sua morte em Veneza.


REGINALDO PRANDI é professor de sociologia na USP e autor de "Mitologias dos Orixás" e "Segredos Guardados" (Cia. das Letras).


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