São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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Os nervos urbanos


Durante viagem a Nova York, em 1929, Lorca descobriu a face moderna de sua poesia


HANS ULRICH GUMBRECHT
especial para a Folha

Mais de 30 anos após o assassinato de Federico García Lorca pelas tropas do general Franco, o grande cineasta Luis Buñuel falou sobre seu amigo: "Sua vida e sua personalidade foram muito maiores do que sua obra. De todos os seres humanos que já conheci, Federico foi o mais impressionante. Nunca mais encontrei alguém que sequer se aproximasse dele. Quer estivesse interpretando Chopin ao piano ou criando e representando uma pantomima ou cena teatral curta, ele sempre era irresistível. Fosse o que fosse que estivesse recitando, a beleza fluía de seus lábios. Ele era a paixão, a juventude, o amor. Era como uma chama". Buñuel não foi o único a senti-lo. Todos os testemunhos que temos da época em que Lorca viveu convergem na única e nunca disputada intuição de que sua arte se realizava plenamente na encenação encantadora do próprio autor.
Repisar até que ponto a obra de García Lorca diz respeito a sua representação deve ter consequências na maneira pela qual o lemos hoje. Em primeiro lugar, e sobretudo, precisamos compreender que os textos e desenhos de Lorca, aos quais nossa vivência dele necessariamente se limita, não podem ser mais do que um débil reflexo bidimensional da presença corpórea que tão profunda impressão causava a seus amigos.
Em segundo lugar, a divisão entre a poesia de Lorca, invariavelmente escrita para ser recitada (muitas vezes para ser recitada com música), e sua obra dramática, que sempre enfatizou a intensidade da cena individual às expensas da narrativa a se desenrolar na trama inteira, é uma distinção problemática, porque é externa à esfera da apresentação. Em outras palavras: a poesia e o teatro de García Lorca são inseparáveis. Em terceiro lugar, os esforços bem-intencionados que dominam a crítica acadêmica de Lorca há décadas, que procuram representá-lo como "o poeta da esquerda" ou, mais calorosamente, como "o poeta do povo", embora não totalmente isentos de base biográfica, não podem redimir o potencial estético de sua obra.
Federico García Lorca deixou sua Espanha natal pela primeira vez aos 31 anos de idade, em maio de 1929, para passar nove meses em Nova York, oficialmente matriculado como estudante na Universidade Columbia. Durante esse período ele começou a compreender que sua auto-imagem poética predominante até então, a de um poeta pertencente à tradição popular andaluza, com seus pretensos antecedentes na poesia barroca espanhola e até mesmo na cultura medieval local, havia sido demasiado local.
Em Nova York, Lorca descobriu a cultura afro-americana como seu novo meio de identificação artística, e não hesitou (contrariando todas as evidências fatuais -mas esse era um fator ao qual sempre foi totalmente alheio) em associar a tradição de apresentação negra aos grandes rituais católicos, sobretudo à eucaristia e sua vocação metafísica de gerar a presença real do corpo e sangue de Deus.
Como a eucaristia católica, que não é nem a comemoração nem a representação da última ceia de Cristo, mas uma reencenação que produz a presença mágica de Deus, os textos de Lorca -tanto os líricos quanto os dramáticos- procuram conquistar o que talvez acabe se revelando impossível por meio da textualidade: procuram conferir um caráter imediato à experiência vivida, que vai além (ou abaixo?) da experiência transmitida pelos conceitos e pela representação; um caráter imediato que também se afirma uma resposta a uma leitura na qual o corpo do leitor é constitutivo.
Como García Lorca estava ciente de que, portanto, a "compreensão" não poderia mais ser a maneira adequada de se abordar seus textos, ele recomendou a seus leitores -acho que em tom apenas meio irônico- que confiassem na ajuda do duende, um fantasma minúsculo, poderoso e de voz alta que assombra o folclore espanhol. Não está claro se ele também estava ciente de que com essa atitude estava abandonando a convenção do mimetismo. Seja como for, Lorca foi um dos muito poucos artistas modernos na tradição espanhola a ter atravessado o limiar definido pelo filósofo Ortega y Gasset em seu famoso ensaio "A Desumanização da Arte". Era o limiar além do qual a arte deixa de representar a realidade, e do qual Salvador Dali, amigo de Lorca, ou Pablo Picasso mantiveram distância.
Existe um desenho intitulado "Auto-Retrato", dos meses que Lorca passou em Nova York, no qual um corpo sob uma cabeça humana (feminina?) é substituído por uma rede de nervos, e os nervos estão em contato direto com um dos arranha-céus "desumanos" que tanto fascinaram o poeta. Nenhum outro trabalho de Lorca chega tão perto de tornar o mundo sensualmente presente quanto o ciclo de poemas intitulado "Poeta em Nova York". Mas tornar o mundo sensualmente presente não significa necessariamente tematizar -e menos ainda representar- os objetos deste mundo.
Em lugar de se constituir em formas de significado e representação, os poemas nova-iorquinos de García Lorca procuram evocar no leitor impressões sensuais fortes, que cobrem a extensão inteira entre os pólos extremos do definido/gelado/claro, de um lado, e do macio/úmido/indefinido, do outro. Basta olhar, por exemplo, os primeiros versos de "El Rey de Harlem", provavelmente o mais notório dos textos de "Poeta em Nova York": "Con una cuchara de palo/ le arrancaba los ojos a los cocodrillos/ e golpeaba el trasero de los monos. Con una cuchara de palos". Ou, do mesmo poema: "A la izquierda, a la derecha, por el Sur, por el Norte,/ se levanta el muro impasible/ para el topo y la aguja del água./ No busquéis, negros, su grieta/ para hallar la mascara infinita".
Nos momentos em que Lorca realmente "se refere" ao mundo de Nova York, tenta apontar para seus objetos de referência da maneira mais direta, desviando-se, por assim dizer, do nível de significado e representação. Velhos jornais folheados nos dão razão para acreditar que tanto os crocodilos quanto as máscaras que aparecem nos trechos citados -e que abundam em todo o ciclo de poemas- vieram de obsessões nova-iorquinas em 1929 e 1930: da obsessão com uma população de jacarés albinos que havia sido descoberta nos esgotos de Nova York e da onda de exposições de "culturas nativas" nos museus de Nova York, que por muito tempo já haviam deixado sua marca na moda e na decoração contemporâneas.
Os objetos de referência assim evocados -como os crocodilos e as máscaras- podem ser associados, na imaginação do leitor, às reações quase físicas -repulsa, horror ou desejo- que os textos procuram estimular. Mas, excetuando alguns poucos poemas, as posições nas quais a cidade é vivida e na qual é evocada permanecem invisíveis. Onde se tornam visíveis pela metade, por exemplo no poema "Pequeño Vals Vienés", tornam-se visíveis enquanto formas de existência que não podem deixar de permanecer oblíquas, refletindo-se em espelhos múltiplos e aparecendo sob disfarces grotescos:
"En Viena bailaré contigo
con un disfraz que tenga
cabeza de río,
Mira qué orillas tengo de jacintos!
Dejaré mi boca entre tus piernas,
mi alma en fotografías y azucenas,
y en las ondas oscuras de tu andar
quiero, amor mío, dejar,
violín y sepulcro, las cintas del vals".
É um fato estranho -e um tanto quanto embaraçoso- que a crítica mediana de Lorca tenha conseguido, há décadas, enxergar demais nesses versos fortes de desejo homoerótico. Lorca havia ido a Nova York após o final infeliz de um caso com o escultor Emilio Aladrén, caso que se tornara escandalosamente público pelos padrões da época. Sabemos que, durante os meses que durou sua estada em Nova York, conheceu o poeta americano Hart Crane, que o levou aos bares do porto da cidade e que pode ter dado a Lorca a idéia de visitar Cuba, que era na época a ilha do prazer erótico, sobretudo do prazer gay quase irrestrito.
Mas o mundo material que Lorca se esforçou tanto para integrar em sua poesia não era apenas uma dimensão associada à percepção sensual. A matéria, para ele, era sinônimo de morte, e a morte, longe de ser ameaçadora, parece ter sido a dimensão existencial para Lorca, em que a matéria que compõe o corpo humano volta a unir-se a ela mesma, a ser idêntica a ela mesma. Para Lorca, só a morte permitiria que sua presença corporal fosse uma presença não alienada. Deve ser por isso que, no poema "Muerte", um objeto tão pouco espetacular quanto um arco de gesso emerge como metonímia da redenção de toda a ansiedade e inquietação existencial:


"Qué esfuerzo!
Qué esfuerzo del caballo
por ser perro!
Qué esfuerzo del perro por ser golondrina!
Qué esfuerzo de la golondrina por ser abeja!
(...)
Y yo, por los aleros,
Qué serafín de llamas busco y soy!
Pero el arco de yeso,
qué grande, qué invisible, qué diminuto,
sin esfuerzo!".


Hans Ulrich Gumbrecht é professor de literatura comparada na Universidade Stanford (EUA). Acaba de lançar no Brasil "Modernização dos Sentidos" (Ed. 34).
Tradução de Clara Allain.



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