São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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Sedução da fatalidade

E.M. DE MELO E CASTRO
especial para a Folha

Começo por convocar as palavras. Palavras que estão submersas no coração das pessoas:
"Por baixo d'água
seguem as palavras

Por baixo d'água
Estão as palavras".
"... Se sou poeta pela graça de Deus -ou do demônio- também é verdade que o sou pela graça da técnica e do esforço, e da minha percepção absoluta do que é um poema." Isto disse Federico García Lorca, de viva voz, ao seu amigo, o poeta Gerardo Diego.
Interessa-nos a nós, seus leitores, tentar saber o que poderá ser essa percepção, classificada de absoluta, do que para Lorca é um poema.
Por isso prosseguirei inscrevendo os olhos e as cores:
"Todos os olhos
estavam abertos
ante a solidão
................"
"Eu vi as estrelas
...................
e vi milhares de olhos
dentro de minhas trevas."

"Desde as oliveiras
será um arco-íris negro
sobre a noite azul."

"(O negro
sobre o vermelho)
E a cova caiada
treme de ouro
(O branco
sobre o vermelho)."

"Ouves os maravilhosos
repuxos de teu pátio,
e o débil trino amarelo
do canário."

"Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco no mar
E o cavalo na montanha."
E porque as cores definem um espaço de emoção, encontro na obra de Lorca o traçado de uma geometria viva, nos vértices da qual se focalizam tanto o amor como as dores do nascimento, rasgando o ângulo ao meio:
"Ângulo eterno,
a terra e o céu
(Com bissetriz
de vento)".

"Ângulo imenso,
O caminho reto
(Com bissetriz de desejo)."
Como leitor, procurarei sentir a definição do tempo com toda a precisão necessária a uma encenação do mundo, mesmo que seja o mundo íntimo de um poeta que se projeta intensamente em tudo o que o rodeia e na contradição vida/morte encontra a beleza dramática das suas metáforas:
"O jovenzinho esquecia.
Eram dez horas da manhã".

"Amnón às três e meia
se estendeu sobre a cama.
Toda a alcova sofria
Com seus olhos cheios de asas."

"Ai que terríveis cinco horas da tarde! Eram cinco horas em todos os relógios!
Eram cinco horas da tarde em sombra!." ("Suicídio")
O rigor na precisão do tempo da morte marca assim a poesia de Lorca com o estigma da fatalidade, mas também com o arrepio da beleza.
No entanto faltam dois elementos para que a encenação esteja completa: a música a as luzes.
Ouve-se então o som de Debussy, do "Cante Jondo" e da música de Albeniz e de Manuel de Falla, definindo o ambiente cultural, sonoro e emocional da Andaluzia dos anos 20 em que Federico se formou e de que verdadeiramente nunca se afastou, mesmo estando em Madri, noutras capitais européias, em Nova York, em Cuba ou na América do Sul.
Surge por fim a luz, sem a qual nada existe, e que foi sempre a sua procura:
"O canto quer ser luz.
No escuro o canto tem
Fios de fósforo e lua.
A luz não sabe o que quer.
Em seus limites de opala,
Encontra-se consigo mesma
E volta".
A voz do poeta quer ser luz para voltar. Voltar em imagens refletidas de si própria, para estar em toda parte e preencher todo o espaço. Espaço cênico em que Federico García Lorca projetou e escreveu a sua poesia, frequentes vezes tomando a forma de diálogos explícitos ou implícitos, com participantes presentes, nomeados ou anônimos, ou só com sombras e vultos pressentidos.
O poema "Assassinato", de "Poeta em Nova York", será disso um exemplo pungente, pelo sintetismo instantâneo e fulminante das suas palavras submersas, mas rigorosas:
"Como foi?
Uma greta na face.
Isso é tudo!
Uma unha que aperta o talo.
Um alfinete que busca
Até encontrar as raizinhas do grito.
E o mar deixa de mover-se.
- Como, como foi?
- Assim.
- Deixa-me! Dessa maneira?
- Sim.
O coração saiu sozinho.
- Ai, ai de mim!".
Estamos agora em condições de evocar toda a poesia de Federico García Lorca como uma das mais sedutoramente belas do século 20.
Ancorada numa geografia natural e humana de recortes nítidos e agrestes, como a Andaluzia, todo esse sabor milenar que vem do convívio de árabes, judeus e cristãos, num sincretismo único e peculiar, subitamente, na poesia de Lorca, se torna universal, exatamente pela dramaticidade com que o poeta constrói os seus poemas e pela estrutura metafórica, surpreendente e sensual.
Quer se trate de poemas de temática popular, de introspecção, de análise e denúncia da desumanização social, de lamento, de homenagem, de evocação ou lúdicos, a linguagem erotizada de Lorca traz consigo os mais profundos reflexos da natureza intemporal dos homens.
Penso que era isso que ele queria dizer ao seu amigo Gerardo Diego quando disse possuir a percepção absoluta do que é um poema.
Palavras submersas na sua própria simbologia; olhos de solidão e estrelas; espaço e cores de arco-íris; tempo exato de morte em sombra; música impressionista (em que o silêncio é tão sensível como o som) e luz que em si própria se reflete. É com estes signos que a técnica verbal de Lorca transforma-se na maestria encantatória que a sua poética exala, como se de um perfume se tratasse, mas também em imagens insólitas e arrepiantes, de pesadelo, como, por exemplo, as de "Cemitério Judeu", no "Poeta em Nova York". Mas logo adverte em "Cidade sem Sonho":
"Não é sonho a vida. Alerta! Alerta! Alerta!
Caímos das escadas para
comer a terra úmida
Ou subimos pelo fio da neve com o coro das dálias mortas.
Mas não há esquecimento, nem sonho:
Carne viva".
É dessa carne viva que Lorca modela os personagens que habitam os cenários verbais que são os seus poemas: ciganos, toureiros, guardas civis, "niños", "doncelas", "señoritas", solteras, professores, cegos, cantantes, negros, judeus, assassinos, vozes na noite, altivos "acetuneros", cavaleiros, amigos chamados pelos seus nomes... e os animais: cavalos, touros, cães, insetos (cigarras, grilos, formigas, aranhas, mosquitos, abelhas, lagartas, mariposas...), peixes, lagartos, toupeiras, tartarugas e unicórnios..., mas também as árvores, oliveiras, pinheiros, álamos, azinheiras, acácias, limoeiros, laranjeiras, marmeleiros, choupos, jasmineiros, parreiras... e flores, rosas, açucenas, jasmins, lírios..., todos convocados pelo seu intenso "amor humano", definindo um clima de odores, cores e sinestesias caracteristicamente mediterrâneo e andaluz.
Mas é em "Poeta em Nova York", livro escrito em 1929 e 1930, durante a sua estada como estudante na Universidade Columbia, talvez porque escrito geograficamente longe dos seus horizontes andaluzes, que o poeta atinge a maior densidade simultaneamente humana e poética. Ele, o poeta dos paralelismos, das rimas de musicalidade recorrente e das imagens insólitas, certamente oriundas da lírica popular ibérica que tão magicamente recria, é no entanto no verso branco desses poemas de ausência e distância que talvez tenha estado mais perto de uma originalidade propriamente sua, porque mais profundamente comprometido com o seu tempo histórico, como se de um pré-existencialismo ibérico se tratasse, de voz lírica noturna e dolorosa, paralelo a "El Sentimiento Trágico de la Vida", de Miguel de Unamuno, mas em Lorca impregnado de sedução e beleza.


Ernesto M. de Melo e Castro é poeta e ensaísta, autor, entre outros, de "Poligonia do Soneto", "Re-Camões" e "Algorritmos" (Ed. Musa).



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