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Sedução da fatalidade
E.M. DE MELO E CASTRO
especial para a Folha
Começo por convocar as palavras. Palavras que estão submersas no coração das pessoas:
"Por baixo d'água
seguem as palavras
Por baixo d'água
Estão as palavras".
"... Se sou poeta pela graça de
Deus -ou do demônio- também é verdade que o sou pela
graça da técnica e do esforço, e
da minha percepção absoluta do
que é um poema." Isto disse Federico García Lorca, de viva voz,
ao seu amigo, o poeta Gerardo
Diego.
Interessa-nos a nós, seus leitores, tentar saber o que poderá
ser essa percepção, classificada
de absoluta, do que para Lorca é
um poema.
Por isso prosseguirei inscrevendo os olhos e as cores:
"Todos os olhos
estavam abertos
ante a solidão
................"
"Eu vi as estrelas
...................
e vi milhares de olhos
dentro de minhas trevas."
"Desde as oliveiras
será um arco-íris negro
sobre a noite azul."
"(O negro
sobre o vermelho)
E a cova caiada
treme de ouro
(O branco
sobre o vermelho)."
"Ouves os maravilhosos
repuxos de teu pátio,
e o débil trino amarelo
do canário."
"Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco no mar
E o cavalo na montanha."
E porque as cores definem um
espaço de emoção, encontro na
obra de Lorca o traçado de uma
geometria viva, nos vértices da
qual se focalizam tanto o amor
como as dores do nascimento,
rasgando o ângulo ao meio:
"Ângulo eterno,
a terra e o céu
(Com bissetriz
de vento)".
"Ângulo imenso,
O caminho reto
(Com bissetriz de desejo)."
Como leitor, procurarei sentir
a definição do tempo com toda a
precisão necessária a uma encenação do mundo, mesmo que
seja o mundo íntimo de um poeta que se projeta intensamente
em tudo o que o rodeia e na contradição vida/morte encontra a
beleza dramática das suas metáforas:
"O jovenzinho esquecia.
Eram dez horas da manhã".
"Amnón às três e meia
se estendeu sobre a cama.
Toda a alcova sofria
Com seus olhos cheios de
asas."
"Ai que terríveis cinco horas da
tarde! Eram cinco horas em todos os relógios!
Eram cinco horas da tarde em
sombra!." ("Suicídio")
O rigor na precisão do tempo
da morte marca assim a poesia
de Lorca com o estigma da fatalidade, mas também com o arrepio da beleza.
No entanto faltam dois elementos para que a encenação esteja completa: a música a as luzes.
Ouve-se então o som de Debussy, do "Cante Jondo" e da
música de Albeniz e de Manuel
de Falla, definindo o ambiente
cultural, sonoro e emocional da
Andaluzia dos anos 20 em que
Federico se formou e de que verdadeiramente nunca se afastou,
mesmo estando em Madri, noutras capitais européias, em Nova
York, em Cuba ou na América
do Sul.
Surge por fim a luz, sem a qual
nada existe, e que foi sempre a
sua procura:
"O canto quer ser luz.
No escuro o canto tem
Fios de fósforo e lua.
A luz não sabe o que quer.
Em seus limites de opala,
Encontra-se consigo mesma
E volta".
A voz do poeta quer ser luz para voltar. Voltar em imagens refletidas de si própria, para estar
em toda parte e preencher todo
o espaço. Espaço cênico em que
Federico García Lorca projetou
e escreveu a sua poesia, frequentes vezes tomando a forma de
diálogos explícitos ou implícitos, com participantes presentes, nomeados ou anônimos, ou
só com sombras e vultos pressentidos.
O poema "Assassinato", de
"Poeta em Nova York", será
disso um exemplo pungente, pelo sintetismo instantâneo e fulminante das suas palavras submersas, mas rigorosas:
"Como foi?
Uma greta na face.
Isso é tudo!
Uma unha que aperta o talo.
Um alfinete que busca
Até encontrar as raizinhas do
grito.
E o mar deixa de mover-se.
- Como, como foi?
- Assim.
- Deixa-me! Dessa maneira?
- Sim.
O coração saiu sozinho.
- Ai, ai de mim!".
Estamos agora em condições
de evocar toda a poesia de Federico García Lorca como uma das
mais sedutoramente belas do século 20.
Ancorada numa geografia natural e humana de recortes nítidos e agrestes, como a Andaluzia, todo esse sabor milenar que
vem do convívio de árabes, judeus e cristãos, num sincretismo
único e peculiar, subitamente,
na poesia de Lorca, se torna universal, exatamente pela dramaticidade com que o poeta constrói os seus poemas e pela estrutura metafórica, surpreendente
e sensual.
Quer se trate de poemas de temática popular, de introspecção, de análise e denúncia da desumanização social, de lamento,
de homenagem, de evocação ou
lúdicos, a linguagem erotizada
de Lorca traz consigo os mais
profundos reflexos da natureza
intemporal dos homens.
Penso que era isso que ele queria dizer ao seu amigo Gerardo
Diego quando disse possuir a
percepção absoluta do que é um
poema.
Palavras submersas na sua
própria simbologia; olhos de solidão e estrelas; espaço e cores de
arco-íris; tempo exato de morte
em sombra; música impressionista (em que o silêncio é tão
sensível como o som) e luz que
em si própria se reflete. É com
estes signos que a técnica verbal
de Lorca transforma-se na
maestria encantatória que a sua
poética exala, como se de um
perfume se tratasse, mas também em imagens insólitas e arrepiantes, de pesadelo, como, por
exemplo, as de "Cemitério Judeu", no "Poeta em Nova
York". Mas logo adverte em
"Cidade sem Sonho":
"Não é sonho a vida. Alerta!
Alerta! Alerta!
Caímos das escadas para
comer a terra úmida
Ou subimos pelo fio da neve
com o coro das dálias mortas.
Mas não há esquecimento,
nem sonho:
Carne viva".
É dessa carne viva que Lorca
modela os personagens que habitam os cenários verbais que
são os seus poemas: ciganos,
toureiros, guardas civis, "niños", "doncelas", "señoritas", solteras, professores, cegos, cantantes, negros, judeus,
assassinos, vozes na noite, altivos "acetuneros", cavaleiros,
amigos chamados pelos seus nomes... e os animais: cavalos, touros, cães, insetos (cigarras, grilos, formigas, aranhas, mosquitos, abelhas, lagartas, mariposas...), peixes, lagartos, toupeiras, tartarugas e unicórnios...,
mas também as árvores, oliveiras, pinheiros, álamos, azinheiras, acácias, limoeiros, laranjeiras, marmeleiros, choupos, jasmineiros, parreiras... e flores,
rosas, açucenas, jasmins, lírios..., todos convocados pelo
seu intenso "amor humano",
definindo um clima de odores,
cores e sinestesias caracteristicamente mediterrâneo e andaluz.
Mas é em "Poeta em Nova
York", livro escrito em 1929 e
1930, durante a sua estada como
estudante na Universidade Columbia, talvez porque escrito
geograficamente longe dos seus
horizontes andaluzes, que o
poeta atinge a maior densidade
simultaneamente humana e
poética. Ele, o poeta dos paralelismos, das rimas de musicalidade recorrente e das imagens insólitas, certamente oriundas da
lírica popular ibérica que tão
magicamente recria, é no entanto no verso branco desses poemas de ausência e distância que
talvez tenha estado mais perto
de uma originalidade propriamente sua, porque mais profundamente comprometido com o
seu tempo histórico, como se de
um pré-existencialismo ibérico
se tratasse, de voz lírica noturna
e dolorosa, paralelo a "El Sentimiento Trágico de la Vida", de
Miguel de Unamuno, mas em
Lorca impregnado de sedução e
beleza.
Ernesto M. de Melo e Castro é poeta e ensaísta, autor, entre outros, de "Poligonia do Soneto", "Re-Camões" e "Algorritmos" (Ed. Musa).
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