São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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NOVOS AUTORES FICÇÃO
Sob o império da imaginação

BERNARDO AJZENBERG


Secretário de Redação

Difícil explicar as sensações que temos à leitura de "Os Saltitantes Seres da Lua" ou de "Naquela Época Tínhamos um Gato", duas coletâneas de contos do paulista Nelson de Oliveira. Para fazê-lo, talvez o mais fácil seja compará-las às de alguém que entra no mar pela primeira vez.
Com efeito, o que se tem diante dos olhos, a cada conto, é uma combinação de estranheza e reconhecimento, experiência meio cruel, meio salvadora, mas sempre surpreendente e, em última instância, nitidamente prazerosa.
Pois o que Nelson de Oliveira, 31, escreve nesses livros -o primeiro lançado no final de 97 e o segundo agora, mas ambos partes executadas de um único projeto autoral- são como histórias infantis criadas para leitores adultos. Ou seja: o princípio de sua fruição está no convite ao abandono lúdico, à alforria em relação a convenções da narrativa, ao ingresso num mar cheio de possibilidades, mas específico em sua composição de águas.
Em "O Som, o Silêncio", da primeira coletânea, o autor atinge a proeza de fazer o leitor vestir a casca de um besouro e, dessa perspectiva, acompanhar a história de um homem. E essa não é uma história banal, de começo, meio e fim; todo o enredo é apenas uma travessia que o personagem empreende de sua casa até a casa da mãe com um revólver preso à cintura depois de brigar com a mulher, a qual ateara fogo na biblioteca dele, de romances policiais.
Por essa espécie de "story line" típica do autor, já se pode ver o inusitado dos enredos de Oliveira.
Outro caso típico -e muito estranho-é o de "A Visão Vermelha", da segunda coletânea. Aqui, deparamo-nos com um personagem arrepiante, chamado pelo narrador de "a pequena Victor", mistura de mulher e boneca, de gênero sexual propositadamente ambíguo.
Veja um trecho deste conto:
"A pequena Victor estava imersa em labaredas -a luz do sol-debaixo da sombra de sua mãe. Duas mãos vieram do alto, desgovernadas e desconhecidas, e costuraram-lhe os lábios -agora, os grandes lábios- e o vento, vendaval, citou o 11º mandamento, não engolirás, pelos quatro cantos do quarto, eis que Ele vem com as nuvens, ele lhe disse, e todo olho O verá e toda boca se calará, e dizendo-lhe isso voltou à carga, cercando a torre de açúcar, trazendo a chuva, para que nenhum outro vento voltasse a soprar nem sobre o quarto, nem sobre o céu, nem contra árvore nenhuma".
Oliveira trabalha com fantasmas; explora os arrepios do espanto e da admiração. Transporta o leitor de um nível a outro habilmente. Como em "Nowhere man", que começa com uma bela descrição de uma ilustração da luta bíblica entre Jacó e o Anjo e termina com uma briga real entre um livreiro e um rapaz que tentara roubar exemplares de seu sebo.
Ou ainda no conto "Lá", em que, a certa altura, o narrador simplesmente proclama: "Somos camelôs e não nos envergonhamos disso. Você se envergonharia de sugar sangue inocente, se fosse um pernilongo num quarto de enfermaria?". Esquisito, não?
Há um clima surreal, sustentado por saborosas surpresas de enredo e forma. Leia, a propósito, o seguinte parágrafo ilustrativo que abre "Quiproquó na Sé": "Quando o saltimbanco, calçando polichinelos, meteu as mãos zás-trás no postigo de jóias de madame Zênite, clitóris, safáris, bijus, zebróides rolaram tintim por tintim no forró de cimento". E assim vai.
Não há gracejos aleatórios de linguagem. Pelo contrário. Por mais inesperada que seja a continuidade de uma história, é sempre de forma simples que o autor começa a redigi-la. E justamente daí decorra, talvez, o choque de que somos vítimas a cada página. Que pensar, por exemplo, da mãe do curtíssimo conto "A Velhota", que se disfarça de vendedora de doces para entrar no apartamento do filho e ter relações sexuais com ele?
O trabalho de Oliveira é esdrúxulo, original. Uma espécie de império da imaginação -por isso faz lembrar as narrativas infantis-, cheio, ao mesmo tempo, de tapetes macios e ratoeiras. Literatura pura, na qual, ao contrário do que ocorre diante do mar que conhecemos na realidade, vale a pena deixar-se levar pelas ondas e, até, permitir-se um afogamento.

AS OBRAS
Saltitantes Seres da Lua - Nelson de Oliveira. Ed. Relume-Dumará (r. Barata Ribeiro, 17, sala 202, CEP 22011-000, RJ, tel. 021/542-0248). 88 págs. R$ 13,00.

Naquela Época Tínhamos um Gato - Nelson de Oliveira. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 104 págs. R$ 16,00.




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