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NOVOS AUTORES FICÇÃO
Sob o império da imaginação
BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação
Difícil explicar as sensações que
temos à leitura de "Os Saltitantes
Seres da Lua" ou de "Naquela
Época Tínhamos um Gato", duas
coletâneas de contos do paulista
Nelson de Oliveira. Para fazê-lo,
talvez o mais fácil seja compará-las às de alguém que entra no
mar pela primeira vez.
Com efeito, o que se tem diante
dos olhos, a cada conto, é uma
combinação de estranheza e reconhecimento, experiência meio
cruel, meio salvadora, mas sempre surpreendente e, em última
instância, nitidamente prazerosa.
Pois o que Nelson de Oliveira,
31, escreve nesses livros -o primeiro lançado no final de 97 e o
segundo agora, mas ambos partes
executadas de um único projeto
autoral- são como histórias infantis criadas para leitores adultos. Ou seja: o princípio de sua
fruição está no convite ao abandono lúdico, à alforria em relação a
convenções da narrativa, ao ingresso num mar cheio de possibilidades, mas específico em sua
composição de águas.
Em "O Som, o Silêncio", da
primeira coletânea, o autor atinge
a proeza de fazer o leitor vestir a
casca de um besouro e, dessa perspectiva, acompanhar a história de
um homem. E essa não é uma história banal, de começo, meio e
fim; todo o enredo é apenas uma
travessia que o personagem empreende de sua casa até a casa da
mãe com um revólver preso à cintura depois de brigar com a mulher, a qual ateara fogo na biblioteca dele, de romances policiais.
Por essa espécie de "story line"
típica do autor, já se pode ver o
inusitado dos enredos de Oliveira.
Outro caso típico -e muito estranho-é o de "A Visão Vermelha", da segunda coletânea. Aqui,
deparamo-nos com um personagem arrepiante, chamado pelo
narrador de "a pequena Victor",
mistura de mulher e boneca, de
gênero sexual propositadamente
ambíguo.
Veja um trecho deste conto:
"A pequena Victor estava imersa em labaredas -a luz do
sol-debaixo da sombra de sua
mãe. Duas mãos vieram do alto,
desgovernadas e desconhecidas, e
costuraram-lhe os lábios -agora,
os grandes lábios- e o vento,
vendaval, citou o 11º mandamento, não engolirás, pelos quatro
cantos do quarto, eis que Ele vem
com as nuvens, ele lhe disse, e todo olho O verá e toda boca se calará, e dizendo-lhe isso voltou à carga, cercando a torre de açúcar,
trazendo a chuva, para que nenhum outro vento voltasse a soprar nem sobre o quarto, nem sobre o céu, nem contra árvore nenhuma".
Oliveira trabalha com fantasmas; explora os arrepios do espanto e da admiração. Transporta o
leitor de um nível a outro habilmente. Como em "Nowhere
man", que começa com uma bela
descrição de uma ilustração da luta bíblica entre Jacó e o Anjo e termina com uma briga real entre um
livreiro e um rapaz que tentara
roubar exemplares de seu sebo.
Ou ainda no conto "Lá", em
que, a certa altura, o narrador
simplesmente proclama: "Somos
camelôs e não nos envergonhamos disso. Você se envergonharia
de sugar sangue inocente, se fosse
um pernilongo num quarto de enfermaria?". Esquisito, não?
Há um clima surreal, sustentado
por saborosas surpresas de enredo
e forma. Leia, a propósito, o seguinte parágrafo ilustrativo que
abre "Quiproquó na Sé":
"Quando o saltimbanco, calçando polichinelos, meteu as mãos
zás-trás no postigo de jóias de madame Zênite, clitóris, safáris, bijus, zebróides rolaram tintim por
tintim no forró de cimento". E assim vai.
Não há gracejos aleatórios de
linguagem. Pelo contrário. Por
mais inesperada que seja a continuidade de uma história, é sempre
de forma simples que o autor começa a redigi-la. E justamente daí
decorra, talvez, o choque de que
somos vítimas a cada página. Que
pensar, por exemplo, da mãe do
curtíssimo conto "A Velhota",
que se disfarça de vendedora de
doces para entrar no apartamento
do filho e ter relações sexuais com
ele?
O trabalho de Oliveira é esdrúxulo, original. Uma espécie de império da imaginação -por isso
faz lembrar as narrativas infantis-, cheio, ao mesmo tempo, de
tapetes macios e ratoeiras. Literatura pura, na qual, ao contrário do
que ocorre diante do mar que conhecemos na realidade, vale a pena deixar-se levar pelas ondas e,
até, permitir-se um afogamento.
AS OBRAS
Saltitantes Seres da Lua -
Nelson de Oliveira. Ed. Relume-Dumará (r. Barata Ribeiro,
17, sala 202, CEP 22011-000, RJ,
tel. 021/542-0248). 88 págs. R$
13,00.
Naquela Época Tínhamos
um Gato - Nelson de Oliveira.
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72,
CEP 04532-002, SP, tel.
011/866-0801). 104 págs. R$
16,00.
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