São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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A crônica final de Mário de Andrade


Estudo de Jorge Coli reúne crítica musical do escritor, até agora inédita em livro


WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
especial para a Folha

Mário de Andrade, consubstanciado em seus arquivos sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, não cessa de surpreender enquanto manancial inesgotável. Sobretudo nas mãos da curadora, Telê Porto Ancona Lopez, a quem devemos três décadas de total dedicação, resultantes em cerca de 20 livros de e sobre o escritor, que incluem a publicação criteriosa de inéditos e três sucessivas edições críticas de "Macunaíma". Isso, sem contar as inúmeras teses que tem orientado sobre esse material.
A última contribuição se deu no campo da epistolografia. Como se sabe, a de Mário é estimada em cerca de 10 mil cartas, só perdendo para campeões como Madame de Sévigné, Lady Montagu, Proust, Freud e poucos mais. E, no Brasil, seu caso é único, ninguém lhe usurpando o galardão. Só a correspondência ativa já rendeu fartos volumes e estudos. A passiva vem de ser aberta, atendendo ao prazo, por ele mesmo estipulado, de 50 anos após sua morte, ocorrida em 1945. Ao término dos dois anos ocupados pela organização, indexação e catalogação feitas sob o comando da curadora, vieram à luz aproximadamente 8 mil cartas de que Mário é destinatário, tesouro que certamente levará decênios até ser exaurido enquanto objeto de edição e exegese.
Pois ainda há, pasmem, inéditos. Donde este "Música Final", que Jorge Coli garimpou naquele arquivo. De "gigantismo espistolar" penitenciava-se Mário de Andrade: hoje, ao ler este livro, é de cogitar que não se tratava bem de gigantismo, e nem só epistolar, mas de um gigante de verdade. Jorge Coli procede à edição e estudo da coluna semanal "Mundo Musical" -exceto partes anteriormente publicadas- escrita por Mário de Andrade para a "Folha da Manhã" (um dos jornais que viriam a formar a Folha) nos dois últimos anos de sua vida, de 1943 a 1945. A nos fiarmos na "Explicação Preliminar", fica pouco claro onde e como foi publicado o que já o foi. Deve ser modéstia do autor, que antes desentranhara a porção mais importante desta coluna e dela fizera um livro independente, em parceria com Luiz Dantas ("O Banquete", São Paulo, Duas Cidades, 1977).
Vejamos inicialmente o que, segundo a explicação, ficou de fora. Porque já publicados: a série "O Banquete" (cuja indicação bibliográfica só aparece no fim do volume), a série "Cantador" (sem indicação bibliográfica nem mesmo no fim do volume; mas se encontra em Raimunda Brito Batista, "Vida do Cantador", Belo Horizonte, Itatiaia, 1993) e mais dois artigos constantes de "Danças Dramáticas do Brasil", organizado por Oneyda Alvarenga para as "Obras Completas" editadas pela Martins. Porque não musicais: meia dúzia de artigos inéditos sobre variados assuntos, que vão desde as artes plásticas a motivos etnográficos, passando por livros e edições; e as notas curtas e avulsas, quando não musicais, da rubrica "Do Meu Diário".
Passemos ao que interessa, ou seja, àquilo que integra o livro, desde o primeiro artigo, datado de 20 de maio de 1943, até o último, de 8 de fevereiro de 1945. Não tendo a coluna compromisso com a atualidade dos eventos na área, sobre o que o próprio Mário se manifesta com agrado, dá azo à reflexão, mais livre porque desligada do imediatismo da crítica profissional. Tais artigos -logo no primeiro chamados de crônica musical- levam um título próprio variável, ficando todos porém sob o título geral da coluna, como de hábito.
Na maioria dos casos, como veremos, podem ter uma única ocorrência, como "Elsie Houston" -esta mulher tão interessante, cantora que morreu cedo, mas perpassa aqui e ali pelos fastos modernistas-, cujo marcante perfil Mário esboça à guisa de necrológio. Ou "Do Teatro Cantado", curiosíssimo depoimento em que o autor conta como um belo dia se rendeu ao gênero operístico, em plena performance, quando até então lhe era infenso. Mas há igualmente jóias de erudição e sensibilidade entre as notas "Do Meu Diário", em que Mário, passando por Rousseau, Léry e outros, deslinda a charada resultante de erro de grafia que deturpou o nome da maviosa arara-canindé (amarela) de canindé-jaune para canidé-june e para canidé-jouve.
A solfa da canindé, transcrita em notação musical por Léry, mais tarde incorporou-se a várias obras de compositores nacionais, por exemplo Villa-Lobos e Lourenço Fernandez, assim instigando a farpa de Mário: "...como justificação um pouco apressada da brasilidade de suas obras". Ou outra nota, na última coluna, reivindicando o emprego de "mas porém" como castiço, abonando-o nos clássicos e em mais duas lições folclóricas, uma portuguesa e outra brasileira. Em seu comentário: "Os gramáticos estudarão eruditamente os casos de Camões, Gonçalves Dias, frei Miguel dos Santos, e provarão que são ótimos e justos. Mas porém gritarão que os outros casos são solecismos infames, que conspurcam a lídima língua de Camões e Gonçalves Dias". Mais um exemplo de persistência do arcaísmo de fino lavor na língua popular, de que tanto se vai valer Guimarães Rosa, na esteira de Mário.
Em outros casos, certos aglomerados permitem ao leitor vislumbrar algumas das mais fortes preocupações de Mário nesta que viria a ser a última fase de sua vida. E principalmente, já que era época de guerra ao nazi-fascismo e de ditadura, aquelas ligadas à militância do artista. Espinhoso tema, sujeito a todos os mal-entendidos. Todavia, os dilemas são conhecidos, e Mário discute os engodos da torre de marfim versus engajamento, em conjuntura como a brasileira. Dentre as séries, ressalta "Músicas Políticas", quatro artigos abordando a questão com uma notável amplitude, circulando entre o popular e o erudito, o atual e o antigo, enveredando pela dinamogenia corporal implicada no entoar-se um hino. Certamente de leitura obrigatória. Ainda mais, a série expande a discussão sobre arte livre ou empenhada.
O trabalho de Jorge Coli, digno de todos os louvores, não se limitou à transcrição dos textos, mas os colocou como fulcro de um intrincado urdume de relações intertextuais. Cada texto ou conjunto de textos é submetido a um comentário cerrado, que discute os argumentos ali expendidos. Mas ainda não é tudo. Para gáudio do leitor, reproduzem-se integralmente os principais textos correlatos -artigos de jornal de outros autores, verbetes de enciclopédia, cartas, notícias, materiais constantes da mesma pasta no arquivo etc.-, bem como passagens das "Obras Completas", inclusive da epistolografia.
É outra experiência de leitura abordar esses textos com o aparato informativo de que os cerca Jorge Coli. Até se pode fechar os olhos a certos cochilos, certamente dos menores, como a oscilação entre "Mundo Musical" e "O Mundo Musical", ou entre coluna e rodapé, ou a mencionada ausência de indicação bibliográfica dos extratos anteriormente publicados, ou mesmo a falta de uniformização ortográfica, de praxe nesses trabalhos.
Além disso, muito se ganha ao compulsar o estudo preliminar, no qual Jorge Coli se debruça sobre o pensamento de Mário concernente à música, não só mobilizando toda a obra do escritor, mas também exibindo uma boa intimidade com ela. Traz assim achegas para a elucidação de certos passos da reflexão de Mário, entre eles alguns dos mais discutidos e menos compreendidos, como a questão do nacionalismo, que, como conclui, não se esgota aí, mas tem outras dimensões bem mais complexas. E ainda uma outra, menos estudada, pois menos óbvia, que aparece com insistência nesta coluna, sobretudo em "Músicas Políticas", e que se poderia chamar de o corpo musical, ou seja, o alcance, digamos assim, fisiológico da música. Ou, como diz Jorge Coli, tentativas de estabelecer uma estética da percepção.
Confessa Mário em "Terapêutica Musical" (1936), de namoros com a medicina -e quem faz a feliz aproximação é Jorge Coli, transcrevendo o trecho-, o esforço despendido para não perder a cabeça em meio a uma prodigiosa batucada do maracatu Leão Coroado, refreando-se em sua compostura de leitor-pesquisador para não ser tragado pelo vórtice da folia, arrancando seu corpo dali a tempo e abandonando os dançarinos a um transe que ainda duraria horas. É uma visão a que se tem acesso com um trabalho como este.


Walnice Nogueira Galvão é crítica literária e professora de teoria literária e literatura comparada na USP e autora, entre outros, de "Desconversa" (Ed. da UFRJ).

A OBRA
Música Final - Jorge Coli. Ed. da Unicamp (caixa postal 6.074, Cidade Universitária, CEP 13083-970, Campinas, SP, tel. 019/788-1015). 420 págs. R$ 45,00.



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