São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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LIVROS
O esforço em ser moderno


É relançado "Etapas da Arte Contemporânea", de Ferreira Gullar


MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Este livro reúne uma série de artigos publicados pelo poeta Ferreira Gullar no suplemento dominical do "Jornal do Brasil", de março de 1959 a outubro de 1960. Reconhecido como um dos mais importantes poetas de sua geração, Gullar mostra aqui o admirável trabalho que exercia, com menos de 30 anos de idade, como crítico de arte e divulgador cultural.
De certo modo, o livro de Gullar equivale, no campo das artes plásticas, ao esforço desenvolvido por Mário Faustino, na mesma época e no mesmo jornal, no sentido de explicar ao leitor médio as inovações literárias de autores como Rimbaud, Verlaine e Mallarmé. "Poesia-Experiência", o livro de Mário Faustino (Ed. Perspectiva) é até hoje, ao lado de "O Castelo de Axel", de Edmund Wilson (Ed. Cultrix), um valioso guia para entender a poesia moderna.
Pode-se dizer o mesmo deste "Etapas da Arte Contemporânea"? Gullar não pretende traçar um panorama completo das artes plásticas no século 20. O expressionismo, o surrealismo, a obra de Chagall não são contemplados neste livro, que segue uma vertente apenas da arte moderna: a que nasce do cubismo, passa por Kandinski e Malevitch e se encaminha rumo à abstração geométrica de Mondrian, até desaguar, no Brasil, na corrente neoconcretista de Amílcar de Castro, Lygia Clark e Franz Weissman, que teve seu teórico no próprio Ferreira Gullar.
"Etapas da Arte Contemporânea" tem assim um duplo objetivo, a divulgação cultural e a militância de vanguarda. O livro apresenta, em apêndice, o "Manifesto Neoconcreto" e uma curiosa "Teoria do Não-Objeto", na qual dimensiona as obras de Lygia Clark em contraponto com as experiências européias mais avançadas na época, as telas de Lucio Fontana e Alberto Burri.
A seriedade, o didatismo e o equilíbrio das análises de Gullar impõem respeito -e um certo tédio também. Como diz Wilson Coutinho na orelha do livro, não se encontra aqui um poeta falando "poeticamente" de obras de arte; e sim um analista algo impessoal, inteligente, sobretudo honesto.
Há artigos não só sobre os principais pintores de cada tendência artística, mas também sobre figuras menores: Gleizes e Metzinger, na órbita do cubismo, Vordemberge-Gidelwart, Van der Leck e Vantongerloo, na esteira de Mondrian, e Gontcharova e Larionov, no campo do abstracionismo russo.
Como ler, hoje, estes artigos publicados em 1959 e 1960? Servem ainda como fonte de informação ao leitor interessado em arte abstrata, mas acima de tudo como documento de uma etapa importante na história da arte brasileira. Abandonava-se a temática social e nacionalista, iniciava-se a crítica a pintores como Portinari e Di Cavalcanti; surgia, nas artes plásticas e na literatura, um intuito de rigor, de modernização, de cosmopolitismo e de radicalidade.
Soam um tanto excessivos os elogios de Gullar ao "fim da moldura" proposto em alguns quadros de Lygia Clark, os quais aspirariam a fazer uma crítica da representação, do fictício em toda obra de arte. Ao mesmo tempo, Gullar avalia com argúcia os riscos vertiginosos das correntes artísticas que, como o suprematismo de Malevitch e o neoplasticismo de Mondrian, iam flertando com o fim da pintura e da própria obra de arte.
O neoconcretismo procurava conciliar o rigor construtivo com alguma forma de invenção e liberdade; havia um compromisso naquele seu radicalismo. Insuficiente, contudo, para enfrentar as tendências pop, neodadaístas, minimalistas e conceituais que se seguiriam no panorama internacional, cada uma das quais apostando, mais do que nunca, no fim da arte tal como a conhecemos. Em "Argumentação contra a Morte da Arte" (Ed. Revan, 1993), Gullar se alinharia entre os críticos da vanguarda mais extremada.
Nestes textos neoconcretos, é como se o autor ainda estivesse tomado pela confiança em um radicalismo que não se sabia facilmente suplantável pelo que viria a seguir. A tragicomédia das vanguardas se intui, mais uma vez, neste livro: reprime-se, contudo, pela própria seriedade e pelo rigor da análise.
Os textos de Gullar, como um quadro de Mondrian, não têm humor nenhum, não têm nada de provocação barata, não têm sequer o gesto de arrojo e maluquice que foi tão característico das primeiras vanguardas do século. Essa falta, essa carência, é na verdade o que os salva hoje em dia. Ao preço de uma certa cor acinzentada, de um tom fosco; o que não significa que seja descartável -esta é outra ameaça, e pior, sobre toda arte ou reflexão que se quer contemporânea.

A OBRA
Etapas da Arte Contemporânea - Ferreira Gullar. Ed. Revan (av. Paulo de Frontin, 163, CEP 20260-010, RJ, tel. 021/502-7495). 304 págs. R$ 29,00.



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