São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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LIVROS
A ironia refletida


"As Asas da Pomba", de Henry James, ganha no Brasil edição pouco cuidada


FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
especial para a Folha

Na topografia da vasta obra de Henry James (1843-1916), "As Asas da Pomba" aparece entremeando os dois cumes do período final, "The Ambassadors" e "The Golden Bowl". O livro surgiu modesto, como um projeto de uma novela ou peça que desse conta de uma situação particularmente rica em possibilidades dramáticas: uma jovem milionária que, aos vinte e poucos anos, se descobrisse às portas da morte; um rapaz pobre que, apaixonado por uma mulher mais velha e ambiciosa, é estimulado por ela a cortejar a heroína doente; o progressivo desencanto do moço com a amada maquiavélica em favor da agonizante.
Já em 1899, Henry James buscava editores para essa história a ser extraída da sinopse anotada em seus cadernos. O plano era serializá-la em oito episódios de 10 mil palavras. Foi apenas em 1902, muitos prazos vencidos depois, que James conclui "As Asas da Pomba", um projeto que ganhou extensão e complexidade narrativas não previstas, como fica evidente no prefácio do autor, perpassado por um misto de orgulho e insatisfação com o resultado final. Do esquematismo promissor do primeiro esboço, surgiu um romance intrincado que ecoa as grandes questões do romance jamesiano.
Ao contrário de "Retrato de uma Senhora", obra-prima da fase intermediária, não há nas "Asas" uma concentração das questões morais num foco unitário privilegiado. Nos dois romances as heroínas enfrentam seus destinos a partir de uma combinação de qualidades pessoais indiscutíveis -beleza, inteligência, ausência de convencionalismo- e fortuna, ambas jovens americanas, presas cobiçadas, sopro de vida e capital na velha, venerável e viciada sociedade européia.
A natureza bíblica da imagem do título, alusão ao sacrifício pessoal de Milly em nome do aperfeiçoamento moral de Densher, tocado por suas asas protetoras, contribui para um certo caráter alegórico da personagem. Se a trajetória de Isabel Archer garantia unidade de assunto ao "Retrato", "As Asas" decompõem-se em blocos sucessivos que preparam a passagem decisiva que descreve a temporada em Veneza de Milly Theale, esboçando interioridades problemáticas que rivalizam em interesse com a da heroína. Ainda que não se possa dizer que Milly seja exclusivamente pretexto, agente da catálise que altera essencialmente a relação entre Kate Croy e Merton Densher, apenas um espelho revelador e transformador do caráter de ambos, tampouco se deve reduzir o romance ao acompanhamento de sua breve existência.
A estratégia narrativa mais geral de James é a de escolher uma consciência refletora, personagem a ser acompanhada subjetivamente pelo leitor, cuja posição social é favorável à apreensão irônica dos fatos sociais exteriores. A natureza triangular dos vínculos que se estabelecem em "As Asas" favorece este expediente e potencializa seu efeito, multiplicando os prismas ao alcance do leitor.
Assim, é por meio da figura de um duplo, um aristocrata em busca de casamento favorável, que Densher, por exemplo, percebe a natureza dúbia de sua submissão sem reservas aos planos de Kate; Milly sabe da gravidade da sua doença pelo reflexo de uma conversa entre seu médico e sua protetora, traída por sua expressão facial.
O caráter indireto das observações contribui para a riqueza de filigrana com que o romance compõe um panorama da sociedade européia. Arma-se uma visão, profundamente marcada por um certo darwinismo social, que não tem nada de maniqueísta
Pena que a iniciativa da tradução brasileira, apressada na carona da adaptação para o cinema ("Asas do Amor"), desfigure impiedosamente o estilo de James. A Ediouro, que apurou a qualidade física de seus livros (não mais desmancham, nem soltam as páginas) e começou bem, incluindo o prefácio do autor, não dedicou atenção suficiente à revisão, deixando passar inúmeras frases sem sentido como "tiver de dar, necessariamente, mais explicações e mencionar, acima de tudo, o fato de que o visitante era o maior dos médicos" (pág. 234), quebra-cabeças sintáticos como "A Ação, para ele, ao chegar ao ponto, parecia, trouxe consigo, uma certa complexidade" (pág. 514), erros de tradução ou simplesmente de português, como "distilar" no lugar de "destilar".


Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas e autor de "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).

A OBRA
As Asas da Pomba - Henry James.Tradução de Marcos Santarrita. Ediouro (caixa postal 1.880, CEP 20001-970, RJ, tel. 021/260-6122).460 págs. R$ 29,50.



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