São Paulo, domingo, 31 de maio de 1998

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PONTO DE FUGA
A luz e a sombra

JORGE COLI
especial para a Folha

No século passado, os escritos de Burckhardt consolidaram a idéia de um Renascimento solar, enérgico e homogêneo. A pintura de Rafael, cuja coerência harmônica nunca foi superada, confirmava essa concepção. Estudos sucessivos viriam modificá-la, e o Renascimento passou a ser visto como um mundo de experiências contrastantes, com angústias, negrumes e sobressaltos. O gênio de Lorenzo Lotto, pintor veneziano do séc. 16, a quem a cidade de Bergamo, na Itália, consagra uma soberba exposição, traça um percurso labiríntico de interrogações, recusa as sínteses harmônicas e exprime o Renascimento inquieto. Sua cultura de origem incorpora fortes reminiscências das tradições medievais, da pintura germânica, das experiências de Leonardo e das conclusões de Rafael, sem tentar organizá-las em coerência. Certas obras articulam-se com o maneirismo, outras anunciam Caravaggio e o barroco. Produz quadros religiosos, mitológicos, mas ainda herméticas alegorias e ideogramas alquímicos; mesmo seus retratos são misteriosos e possuem chaves enigmáticas. Lotto trabalhou muito na região de Bergamo e a mostra, que foi exibida em Washington e o será ainda em Paris, completa-se aqui com várias obras situadas em igrejas e capelas locais, das marchetarias de Santa Maria Maggiore aos afrescos de Trescore.

MARFIM - Como para Arturo-Benedetti Michelangeli, que faleceu recentemente, o norte da Itália é, para Lazar Berman, terra de predileção. Não longe de Milão, em meio à esplêndida paisagem dos lagos, Berman ofereceu um recital na "Accademia" da minúscula cidadezinha de Lovere. Seu piano possui evidentes afinidades com o do grande intérprete italiano e atinge as mesmas vertiginosas alturas musicais. Alejo Carpentier lembrou que, dentre suas maiores emoções, muitas ocorreram em salas de espetáculos. Assim, em meio aos obscuros quadros da velha academia, um pequeno público local ouviu, comovido, Schubert e Liszt.

BALA PERDIDA - Desde 1955 que o mítico teatro alla Scala de Milão não apresentava a ópera "Der Freischütz", de Weber. Ela foi um núcleo para que os alemães formassem uma certa idéia de germanidade; teve, porém, um destino internacional muito amplo: basta pensar no impacto que exerceu sobre Baudelaire e Berlioz. Há mais de 40 anos, o Scala esco lhia Giulini e Los Angeles como intérpretes; hoje os nomes são irrelevantes e o resultado é medíocre. No final, os espectadores, desencorajados, não tinham forças nem para aplaudir, nem para vaiar.

AUSÊNCIA - Em Paris, o "Front National", partido neofascista de Le Pen, organiza um congresso sobre "identidade nacional". Identidade, noção redutora, mas confortável, assimila-nos a um grupo, traça fronteiras, inventa certezas, elimina diferenças e nos distingue do "outro". Os franceses, entretanto, possuem o antônimo "alterité", que poderia ser traduzido pelo neologismo "alteridade". Termo que nos põe continuamente em questão, privilegia cruzamentos e trocas, criando instabilidades fecundas no interior das culturas. Alteridade é uma boa e generosa palavra, que deveria estar também nos nossos dicionários.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli@correionet.com.br



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