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PONTO DE FUGA
A luz e a sombra
JORGE COLI
especial para a Folha
No século passado, os escritos
de Burckhardt consolidaram a
idéia de um Renascimento solar, enérgico e homogêneo. A
pintura de Rafael, cuja coerência harmônica nunca foi superada, confirmava essa concepção. Estudos sucessivos viriam
modificá-la, e o Renascimento
passou a ser visto como um
mundo de experiências contrastantes, com angústias, negrumes e sobressaltos. O gênio
de Lorenzo Lotto, pintor veneziano do séc. 16, a quem a cidade de Bergamo, na Itália, consagra uma soberba exposição,
traça um percurso labiríntico
de interrogações, recusa as sínteses harmônicas e exprime o
Renascimento inquieto. Sua
cultura de origem incorpora
fortes reminiscências das tradições medievais, da pintura germânica, das experiências de
Leonardo e das conclusões de
Rafael, sem tentar organizá-las
em coerência. Certas obras articulam-se com o maneirismo,
outras anunciam Caravaggio e
o barroco. Produz quadros religiosos, mitológicos, mas ainda
herméticas alegorias e ideogramas alquímicos; mesmo seus
retratos são misteriosos e possuem chaves enigmáticas. Lotto trabalhou muito na região
de Bergamo e a mostra, que foi
exibida em Washington e o será ainda em Paris, completa-se
aqui com várias obras situadas
em igrejas e capelas locais, das
marchetarias de Santa Maria
Maggiore aos afrescos de Trescore.
MARFIM - Como para Arturo-Benedetti Michelangeli, que
faleceu recentemente, o norte
da Itália é, para Lazar Berman,
terra de predileção. Não longe
de Milão, em meio à esplêndida paisagem dos lagos, Berman
ofereceu um recital na "Accademia" da minúscula cidadezinha de Lovere. Seu piano possui evidentes afinidades com o
do grande intérprete italiano e
atinge as mesmas vertiginosas
alturas musicais. Alejo Carpentier lembrou que, dentre
suas maiores emoções, muitas
ocorreram em salas de espetáculos. Assim, em meio aos obscuros quadros da velha academia, um pequeno público local
ouviu, comovido, Schubert e
Liszt.
BALA PERDIDA - Desde
1955 que o mítico teatro alla
Scala de Milão não apresentava a ópera "Der Freischütz", de
Weber. Ela foi um núcleo para
que os alemães formassem uma
certa idéia de germanidade; teve, porém, um destino internacional muito amplo: basta pensar no impacto que exerceu sobre Baudelaire e Berlioz. Há
mais de 40 anos, o Scala esco
lhia Giulini e Los Angeles como
intérpretes; hoje os nomes são
irrelevantes e o resultado é medíocre. No final, os espectadores, desencorajados, não tinham forças nem para aplaudir, nem para vaiar.
AUSÊNCIA - Em Paris, o
"Front National", partido neofascista de Le Pen, organiza um
congresso sobre "identidade
nacional". Identidade, noção
redutora, mas confortável, assimila-nos a um grupo, traça
fronteiras, inventa certezas,
elimina diferenças e nos distingue do "outro". Os franceses,
entretanto, possuem o antônimo "alterité", que poderia ser
traduzido pelo neologismo "alteridade". Termo que nos põe
continuamente em questão,
privilegia cruzamentos e trocas, criando instabilidades fecundas no interior das culturas. Alteridade é uma boa e generosa palavra, que deveria estar também nos nossos dicionários.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli@correionet.com.br
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