São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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Ponto de fuga

O fogo e as cinzas

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Entrar pela primeira vez, depois de sua reconstrução, no teatro La Fenice, de Veneza. Reencontrar o palco histórico, que viu a estréia do "Tancredi" e da "Semiramide", escritos por Rossini; do "Ernani", de "La Traviata", de "Il Rigoletto", de "Simon Boccanegra", por Verdi; de "The Rake's Progress" e "The Turn of the Screw", por Stravinsky e Britten. Esperar pelo aspecto antigo do magnífico interior, sem igual no mundo por sua beleza. Aquele do qual Visconti fizera o mais esplêndido início de filme: "Senso" (1954 - "Sedução da Carne" na distribuição brasileira), que se abre com uma representação de "Il Trovatore". A ária heróica do tenor serve de sinal para manifestações patrióticas dos italianos. Na sala, em ouro velho, verdes e azuis pálidos, com os uniformes brancos dos militares austríacos e as casacas negras dos civis na platéia, chovem panfletos e buquês verdes, brancos e vermelhos, as cores itálicas.
Esse lugar mágico, mítico, fora devastado por um incêndio criminoso em 1996. O teatro estava sendo reformado. Um eletricista, que atrasara muito seu trabalho, via-se acuado por multas pesadas. Sua solução foi simples: pôs fogo para evitar o pagamento. Não deu muito certo, porque ele terminou preso. O mais terrível, porém, foi que restaram quase que só as paredes exteriores. Logo iniciou-se o debate: que deveria se fazer? Criar um edifício moderno? A construção original, de Giannantonio Selva, inaugurada em 1792, já queimara no século 19. O aspecto que chegara até nós era o de um imaginário e maravilhoso neo-rococó, criado por uma reforma de 1854. O arquiteto Aldo Rossi, de grande nome e prestígio, encarregado da atual reedificação, decide: "com'era, dov'era". Ou seja: como era, onde estava.

Renovo
"La Fenice", que, em italiano, quer dizer "a fênix", renasceu das próprias cinzas, quando foi reaberto em novembro de 2004, oito anos depois do incêndio. Muitos desejavam um teatro de aspecto contemporâneo; um Scarpa, se estivesse vivo, certamente faria variações formais e cromáticas com os velhos temas. Os princípios de Aldo Rossi, porém, podem se justificar. Afora uma modernização técnica, o "com'era, dov'era" deveria imperar, sobretudo na sala inimitável. Ela devia voltar ser, para os venezianos, para o mundo inteiro, aquilo que fora. A solução filológica foi, portanto, a mais humana. Rossi, que faleceu em 1997, sem ver os trabalhos terminados, falou em "ato de amor aos fragmentos que sobreviveram". Uma equipe cuidadosa retomou cada detalhe, cada decoração esculpida ou pintada.
Com isso, teria o "La Fenice" voltado a ser o antigo "La Fenice"? Não. Está novo; os ouros brilham além da conta, os tons exibem vivacidade recente. Os diversos motivos em pintura, flores, personagens, tão bem imitados dos anteriores, têm uma certa dureza: fazer um idêntico absoluto ao que desapareceu é impossível. O que foi, foi. Sobretudo, o teatro ficou igual ao antigo no aspecto, mas sua alma ainda é jovem demais. É preciso que o tempo se encarregue de marcá-lo, criando para ele uma história própria. Ornamentos, lustres, espelhos, madeiras e veludos precisam ainda ouvir muita música e ver muita coisa.

Coalizão
Num dos últimos concertos da temporada 2004-2005, que abre o novo teatro "La Fenice", estreou ali o maestro russo Andrey Boreyko. Ele tem pouco mais de 40 anos e se parece com Anatoli Solonitsyn, o "Andrei Rublev", de Tarkovsky. O programa foi denso, um pouco estranho. Primeiro a sinfonia em sol menor, de Mozart, na qual o regente evitou o lirismo. Depois, uma explosão: a suíte de "Hamlet", composta por Shostakovich. Numa tensão nítida, despojada, os quadros se sucediam, com violência exasperada. Enfim, um "O Pássaro de Fogo", de Stravinsky, lento e contido.

Paraíso
O momento mais alto do concerto dirigido por Boreyko no "La Fenice" foram as "Quatro Últimas Canções" de Richard Strauss. June Anderson, solista, deu a interpretação menos etérea e mais humana possível: Strauss parecia encontrar-se com Puccini para tornar-se ainda mais comovente, ainda mais sublime.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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