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Ponto de fuga
O fogo e as cinzas
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Entrar pela primeira vez, depois de
sua reconstrução, no teatro La Fenice, de Veneza. Reencontrar o palco
histórico, que viu a estréia do "Tancredi" e da "Semiramide", escritos por Rossini; do "Ernani", de "La Traviata", de "Il
Rigoletto", de "Simon Boccanegra", por
Verdi; de "The Rake's Progress" e "The
Turn of the Screw", por Stravinsky e Britten. Esperar pelo aspecto antigo do magnífico interior, sem igual no mundo por sua
beleza. Aquele do qual Visconti fizera o
mais esplêndido início de filme: "Senso"
(1954 - "Sedução da Carne" na distribuição
brasileira), que se abre com uma representação de "Il Trovatore". A ária heróica do
tenor serve de sinal para manifestações patrióticas dos italianos. Na sala, em ouro velho, verdes e azuis pálidos, com os uniformes brancos dos militares austríacos e as
casacas negras dos civis na platéia, chovem
panfletos e buquês verdes, brancos e vermelhos, as cores itálicas.
Esse lugar mágico, mítico, fora devastado
por um incêndio criminoso em 1996. O teatro estava sendo reformado. Um eletricista,
que atrasara muito seu trabalho, via-se
acuado por multas pesadas. Sua solução foi
simples: pôs fogo para evitar o pagamento.
Não deu muito certo, porque ele terminou
preso. O mais terrível, porém, foi que restaram quase que só as paredes exteriores. Logo iniciou-se o debate: que deveria se fazer?
Criar um edifício moderno? A construção
original, de Giannantonio Selva, inaugurada em 1792, já queimara no século 19. O aspecto que chegara até nós era o de um imaginário e maravilhoso neo-rococó, criado
por uma reforma de 1854. O arquiteto Aldo
Rossi, de grande nome e prestígio, encarregado da atual reedificação, decide: "com'era, dov'era". Ou seja: como era, onde estava.
Renovo
"La Fenice", que, em italiano, quer dizer
"a fênix", renasceu das próprias cinzas,
quando foi reaberto em novembro de 2004,
oito anos depois do incêndio. Muitos desejavam um teatro de aspecto contemporâneo; um Scarpa, se estivesse vivo, certamente faria variações formais e cromáticas
com os velhos temas. Os princípios de Aldo
Rossi, porém, podem se justificar. Afora
uma modernização técnica, o "com'era,
dov'era" deveria imperar, sobretudo na sala inimitável. Ela devia voltar ser, para os
venezianos, para o mundo inteiro, aquilo
que fora. A solução filológica foi, portanto,
a mais humana. Rossi, que faleceu em 1997,
sem ver os trabalhos terminados, falou em
"ato de amor aos fragmentos que sobreviveram". Uma equipe cuidadosa retomou
cada detalhe, cada decoração esculpida ou
pintada.
Com isso, teria o "La Fenice" voltado a ser
o antigo "La Fenice"? Não. Está novo; os
ouros brilham além da conta, os tons exibem vivacidade recente. Os diversos motivos em pintura, flores, personagens, tão
bem imitados dos anteriores, têm uma certa dureza: fazer um idêntico absoluto ao
que desapareceu é impossível. O que foi,
foi. Sobretudo, o teatro ficou igual ao antigo
no aspecto, mas sua alma ainda é jovem demais. É preciso que o tempo se encarregue
de marcá-lo, criando para ele uma história
própria. Ornamentos, lustres, espelhos,
madeiras e veludos precisam ainda ouvir
muita música e ver muita coisa.
Coalizão
Num dos últimos concertos da temporada 2004-2005, que abre o novo teatro "La
Fenice", estreou ali o maestro russo Andrey
Boreyko. Ele tem pouco mais de 40 anos e
se parece com Anatoli Solonitsyn, o "Andrei Rublev", de Tarkovsky. O programa
foi denso, um pouco estranho. Primeiro a
sinfonia em sol menor, de Mozart, na qual
o regente evitou o lirismo. Depois, uma explosão: a suíte de "Hamlet", composta por
Shostakovich. Numa tensão nítida, despojada, os quadros se sucediam, com violência exasperada. Enfim, um "O Pássaro de
Fogo", de Stravinsky, lento e contido.
Paraíso
O momento mais alto do concerto dirigido por Boreyko no "La Fenice" foram as
"Quatro Últimas Canções" de Richard
Strauss. June Anderson, solista, deu a interpretação menos etérea e mais humana possível: Strauss parecia encontrar-se com
Puccini para tornar-se ainda mais comovente, ainda mais sublime.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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