São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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Nomes de vias permitem compreender a relação de cada sociedade com seu passado; nas placas de Londres, a exaltação da continuidade, enquanto em Paris ou São Paulo percebe-se o apego ao mito da revolução

A alma encantadora das ruas

João Wainer/Folha Imagem
Placa da rua Afeganistão, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo


PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Em diferentes países, as pessoas têm maneiras diferentes de relembrar o passado. Para alguns, como os britânicos, o mito da continuidade é especialmente importante, enquanto outros, como os franceses e (eu sugeriria) os brasileiros, preferem o mito da revolução. Uma maneira pela qual essas importantes diferenças em termos de memória social ou cultural se revelam é a escolha de nomes de ruas, um pequeno mas sem dúvida significativo detalhe da paisagem urbana.
Na França, as ruas e praças foram rebatizadas por motivos políticos durante a Revolução, e o exemplo francês vem sendo seguido desde então. Em Paris, depois de 1793, a praça Louis 15 se tornou a praça De La Révolution, a ponte Notre Dame se tornou a ponte De La Raison, e assim por diante. Porque existe, na mente humana, uma forte associação entre lembranças e lugares específicos, essa política de mudança de nomes era uma idéia inspirada, e não admira que tenha sido imitada em cidades de todo o mundo.


É uma prática mais visível no nível de rua, permitindo que os transeuntes leiam a cidade no sentido literal e no metafórico


Em um nível mais imponente, cidades ou países inteiros podem ser batizados ou rebatizados em honra de personagens famosos. A tradição remonta ao mundo antigo (por exemplo, à Alexandria de Alexandre Magno), mas se tornou muito mais comum do final do século 18 em diante, como provam os casos de Bolívia e Colômbia, batizadas em homenagem a Simon Bolívar e Cristóvão Colombo, de Washington DC e Jefferson City (no Missouri), Leningrado e Stalingrado, Florianópolis e João Pessoa.
No entanto é uma prática mais visível no nível de rua, permitindo que os transeuntes leiam a cidade no sentido literal e no metafórico a um só tempo, aprendendo alguma coisa sobre os intelectuais do país (como no caso da praça Voltaire, em Paris), ou sobre seus mais importantes políticos (via Cavour, em Florença, por exemplo, ou rua Deodoro da Fonseca, em São Paulo, antes conhecida como rua do Imperador).
Em Londres, como qualquer turista pode confirmar, as celebrações desse gênero se concentram na família real (rua Regent, estação Victoria) ou em famosas vitórias em terra e no mar (estação Waterloo, praça Trafalgar). Os italianos batizam um aeroporto em homenagem a Leonardo da Vinci, e os brasileiros em honra de Santos Dumont, mas até agora não conheço iniciativa para mudar os nomes dos aeroportos londrinos de Heathrow e Gatwick para Shakespeare ou Newton.
De maneira semelhante, a população escultórica de Londres é principalmente formada por generais e membros da família real, enquanto em Paris celebram também Voltaire, Rousseau, Diderot e Molière. Já que essas imagens públicas -como os nomes das ruas e dos edifícios- a um só tempo constroem e representam a memória cultural, as escolhas estão longe de triviais.
Além dos nomes de heróis nacionais e de vitórias militares, muitas ruas e praças são batizadas com datas significativas da história nacional ou local. Buenos Aires tem sua praça de Mayo, assim como São Paulo tem uma avenida 9 de Julho (e uma rua 25 de Março, batizada em 1865, anteriormente conhecida como rua de Baixo, e uma rua 15 de Novembro, batizada em 1889, anteriormente rua da Imperatriz). Salvador tem uma avenida 7 de Setembro. No centro da Cidade do México, encontramos a avenida 20 de Noviembre, celebrando a revolução de 1910, e a rua 5 de Febrero (data da constituição).
Na Europa, há muitas ruas batizadas por datas significativas. Roma, por exemplo, tem a via 20 Settembre (que celebra a entrada do exército de Garibaldi na cidade, em 1870) e uma via 4 Novembre, mais internacional, comemorando a assinatura do armistício que pôs fim à Primeira Guerra Mundial.

Fleuma britânica
Em Londres, porém, como na Inglaterra de modo mais geral, os nomes das ruas, praças, estações e assim por diante revelam uma ausência que é certamente reveladora: a de datas históricas. Ao contrário de muitos países, da França aos Estados Unidos, os britânicos não têm um dia especial celebrando sua independência ou libertação, uma revolução ou a promulgação de uma constituição. A implicação é que no Reino Unido (a despeito da importância da Revolução de 1688 para a história do país), jamais houve necessidade desse tipo de evento. A ficção de continuidade sempre foi e ainda é extremamente importante para a cultura britânica.
Uma vantagem do costume britânico é que evita a necessidade de mudança. Revoluções requerem não só celebração mas também o que poderíamos denominar "descelebrações", em outras palavras a remoção dos memoriais ao antigo regime ou à revolução passada. Por isso as estátuas têm de ser derrubadas de seus pedestais (o destino de Stálin, Lênin e até mesmo Marx na Europa Central e Oriental, no momento de iconoclastia popular que se seguiu à queda do Muro de Berlim em 1989).
De maneira semelhante, é preciso mudar os nomes das ruas. Em São Petersburgo, antes que a cidade ganhasse o nome de Leningrado, a moderada revolução de fevereiro de 1917 foi comemorada por uma rua batizada como 27 de fevereiro. Em novembro do mesmo ano, a revolução bolchevique, mais radical, tornou o nome da rua obsoleto.
Uma vez mais, na Itália, depois de 1945, os nomes que celebravam o regime de Mussolini foram substituídos por nomes honrando oponentes do fascismo e heróis da resistência.
Para visitantes estrangeiros, a prática de mudar nomes tem desvantagens óbvias. Sempre me lembro de uma visita à Bulgária, em 1966. O único mapa de Sófia que consegui em Londres antes de partir era parte de um "Guide Bleu" publicado em 1938. Levei o guia comigo e me perdia o tempo todo, porque os nomes das ruas haviam sido mudados. De modo que eu parava transeuntes e perguntava (em francês, que era mais útil que o inglês na Bulgária naqueles dias) como chegar a uma rua que meu mapa nomeava, digamos, como 4 de Abril. Eles cortesmente me explicavam o caminho e, quando eu chegava à rua, descobria que seu nome tinha sido mudado para Primeiro de Maio.
Em outras palavras, eu vinha usando os nomes fascistas das ruas, em um país sob governo comunista. Recordando o momento, a coisa mais interessante, pelo menos em minha opinião, é que ninguém tivesse expressado a menor surpresa ao ouvir os velhos nomes das ruas.

Palimpsesto
A maneira húngara de administrar a política da celebração é reveladora, e possivelmente exemplar. Desde o final do regime comunista, os nomes de ruas em Budapeste seguiram o que se poderia chamar de "princípio do palimpsesto", voltando aos seus nomes tradicionais, mas ostentando, nas placas, abaixo deles, os nomes comunistas, cruzados por um traço vermelho que mostra que já não são válidos. É claro que isso não foi feito em benefício de turistas estrangeiros equipados com guias desatualizados.
Seria mais realista interpretar essa prática como uma mensagem sobre a reação ambivalente da Hungria pós-comunista ao seu passado, sem aceitar nem rejeitar plenamente o regime de Rákosi e Kádar. De maneira semelhante, quando as estátuas de Lênin e outros heróis comunistas foram removidas, não foram destruídas, mas deslocadas para um parque de esculturas especial.
Em resumo, a resposta do historiador da cultura à pergunta de Shakespeare, ou melhor, Julieta, sobre "o que existe em um nome" precisa ser: "Mais do que você imaginaria". A história se revela a céu aberto da mesma forma que nas bibliotecas, e ruas podem ser lidas como livros, ao menos pelos pedestres.

Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Migliacci.


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