São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005

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O DILEMA DA IGUALDADE

Em "A Democracia na América", Tocqueville descreve as instituições e os costumes dos EUA no século 19 -modelos para pensar a democracia e a Europa- e aponta desafios e impasses na ampliação da cidadania

MARCELO JASMIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Admito que, na América, vi mais que a América; procurei ali uma imagem da própria democracia, dos seus pendores, do seu caráter, dos seus preconceitos, das suas paixões; desejei conhecê-la, ainda que fosse apenas para saber o que devemos esperar ou temer da parte dela."

 

Há duas Américas na "Democracia" de Tocqueville. De um lado, uma América definida no tempo e no espaço concretos, distante 38 dias de navegação a oeste do porto francês mais próximo, e que se apresentava aos curiosos olhos europeus da primeira metade do século 19 como um convite à aventura. De outro, uma América modelar, a representação mais acabada da nova sociedade igualitária emergente, cujo espaço era o "universo cristão" e cujo tempo era a "modernidade".
No confronto entre essas duas Américas, a obra de Tocqueville veio a ser a melhor descrição das instituições e dos costumes norte-americanos que o século 19 realizou e, ao mesmo tempo, um texto indispensável ao pensamento sobre a democracia de massas.
Escrita numa época em que o sufrágio universal não era mais que vislumbre, a obra afirmou a irresistibilidade histórica da democracia como a forma de sociedade em que as desigualdades existentes não poderiam obstar a mobilidade social. Pela primeira vez na história conhecida, um mundo público era construído e não só pensado sem critérios hierárquicos de pertencimento.
Diferentemente das democracias das "póleis" gregas assentadas na desigualdade hierárquica dos cidadãos em relação aos escravos e demais não-cidadãos e das repúblicas italianas do Renascimento que excluíam a maior parte da população pobre, assim como o gênero feminino, a democracia moderna reclamava a inclusão, sem distinções, de todos os adultos. Desse ponto de vista, a igualdade moderna rompia com todo o passado conhecido e transformava toda a história social pregressa em experiência aristocrática, pois fundada em alguma forma da desigualdade hierárquica.
Uma tal assertiva da ruptura histórica da modernidade não pretendia, certamente, legitimar expectativas revolucionárias. Queria, isto sim, reconhecer uma revolução na própria realidade que observava: a novidade radical, se antes havia sido pensada como desejo de rejeição ou de interrupção do acontecido em favor de sua substituição por algo mais justo, como nas filosofias do direito natural ou na práxis revolucionária francesa, habitava agora a vida cotidiana nas colônias da Nova Inglaterra.

Desafios
Essa universalização da cidadania trazia consigo um conjunto instigante de novos desafios que os cânones do pensamento pareciam não mais responder. Para o espírito que a via como tal, a ruptura com a experiência conhecida significava também a insegurança de pensar sem as garantias da tradição. A virtude dos antigos desaparecera do mundo dos indivíduos modernos, como já explicara Benjamin Constant; a honra aristocrática, que durante séculos limitara o autointeresse da nobreza européia, obrigando-a ao mando e à proteção das comunidades em seus territórios, perdera o seu ânimo com o fim da desigualdade hierárquica. Sem termos razoáveis de comparação entre o passado e o presente, o conhecimento até então adquirido parecia claudicar. Diante da novidade americana, Tocqueville chegou a imaginar que deveria incinerar a sua biblioteca e abandonar de vez a busca no passado de soluções para o presente democrático. Como formulou certa vez em modo desesperado e paradigmático: "Como o passado já não ilumina o futuro, o espírito vagueia nas trevas".
O diagnóstico de Tocqueville acerca da modernidade democrática não foi otimista. De um lado, percebera a experiência da Revolução Francesa como uma tragédia que demonstrara tanto a futilidade da resistência das elites tradicionais à emergência do social, como os excessos do exercício do poder político por aqueles que dele foram historicamente excluídos. De outro, embora houvesse um otimismo inicial na avaliação do sucesso das relações entre liberdade e igualdade na Nova Inglaterra, a experiência igualitária americana revelava disposições que ameaçavam a política em seu sentido mais digno de discussão comum e de realização acordada do bem de todos, de ação e livre associação entre os iguais no esforço coletivo de encontrar o que deve melhor servir a todos.
Para Tocqueville, o mundo igualitário moderno seria, por necessidade, fortemente individualista. Uma vez obsoletos os laços aristocráticos de família e de comunidade, a sobrevivência dos indivíduos passava a depender sobretudo do esforço de cada um no mundo do trabalho e da competição. O que favorecia o isolamento social dos indivíduos e o seu confinamento à esfera da privacidade, resultando no definhamento da experiência prática da política e na alienação em relação a concretude das mazelas vividas por outrem.
Carentes de vigor, os valores e as práticas voltados para a realização do bem comum, sem controle efetivo por parte da experiência prática da cidadania, o governo da democracia, mesmo se no invólucro da boa institucionalização liberal, se transformava em mecanismo autônomo de distribuição de benesses e de sofrimentos, à mercê do interesse de seus eventuais ocupantes, conduzidos, pela ignorância da prática política, aos castelos do mando.

Liberdade e cidadania
Neste quadro, a solução tradicional da liberdade negativa não seria suficiente para Tocqueville. O comparecimento sazonal às urnas, que constitui regra elementar da institucionalização democrática, seria enganador no contexto de menoridade política. Sem desprezar os mecanismos eleitorais, para Tocqueville, qualquer possibilidade de reversão da derrocada da liberdade exigiria a revitalização de instâncias outras de participação que fortalecessem o espírito de cidadania frente à tutela administrativa do Estado centralizado moderno. Em outras palavras, só pode haver liberdade democrática onde houver ação permanente do corpo de cidadãos na esfera pública. O cerne do dilema está no fato de que a participação cívica é espécie em extinção no contexto de privatização das relações sociais da sociedade igualitária de Tocqueville.
Neste sentido, o dilema tocquevilliano se constitui da contraposição entre um diagnóstico "científico" da sociedade moderna -diagnóstico que retrata as disposições que tendem a inviabilizar a liberdade política nas condições sociais igualitárias- e uma necessidade "ético-política" de afirmar a exeqüibilidade desta mesma liberdade no contexto de destruição das bases da cidadania que decorre do desenvolvimento daquelas mesmas disposições. Essa tensão irresolúvel entre ciência e política, entre determinação e vontade, entre natureza e arte, é o cerne da reflexão tocquevilliana que pretende constituir uma "nova ciência política para um mundo inteiramente novo". Operando simultaneamente como "ciência" e como "política", o novo saber proposto quer não apenas determinar o quadro no qual se encontram inexoravelmente os homens mas também convencê-los da necessidade, e da possibilidade, de reagir a ele.


Marcelo Jasmin é professor e pesquisador de teoria política e história das idéias no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. É autor de "Alexis de Tocqueville" (Access) e "Racionalidade e História na Teoria Política" (UFMG)


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