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O DILEMA DA IGUALDADE
Em "A Democracia na América", Tocqueville descreve as instituições e os costumes dos EUA no século 19
-modelos para pensar a democracia e a Europa- e aponta desafios e impasses na ampliação da cidadania
MARCELO JASMIN
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Admito que, na América, vi mais que a
América; procurei ali uma imagem da
própria democracia, dos seus pendores,
do seu caráter, dos seus preconceitos,
das suas paixões; desejei conhecê-la,
ainda que fosse apenas para saber o que
devemos esperar ou temer da parte dela."
Há duas Américas na "Democracia" de Tocqueville.
De um lado, uma América
definida no tempo e no espaço concretos, distante 38 dias de
navegação a oeste do porto francês
mais próximo, e que se apresentava
aos curiosos olhos europeus da primeira metade do século 19 como um
convite à aventura. De outro, uma
América modelar, a representação
mais acabada da nova sociedade
igualitária emergente, cujo espaço
era o "universo cristão" e cujo tempo era a "modernidade".
No confronto entre essas duas
Américas, a obra de Tocqueville veio
a ser a melhor descrição das instituições e dos costumes norte-americanos que o século 19 realizou e, ao
mesmo tempo, um texto indispensável ao pensamento sobre a democracia de massas.
Escrita numa época em que o sufrágio universal não era mais que
vislumbre, a obra afirmou a irresistibilidade histórica da democracia como a forma de sociedade em que as
desigualdades existentes não poderiam obstar a mobilidade social. Pela
primeira vez na história conhecida,
um mundo público era construído e
não só pensado sem critérios hierárquicos de pertencimento.
Diferentemente das democracias
das "póleis" gregas assentadas na
desigualdade hierárquica dos cidadãos em relação aos escravos e demais não-cidadãos e das repúblicas
italianas do Renascimento que excluíam a maior parte da população
pobre, assim como o gênero feminino, a democracia moderna reclamava a inclusão, sem distinções, de todos os adultos. Desse ponto de vista,
a igualdade moderna rompia com
todo o passado conhecido e transformava toda a história social pregressa em experiência aristocrática,
pois fundada em alguma forma da
desigualdade hierárquica.
Uma tal assertiva da ruptura histórica da modernidade não pretendia,
certamente, legitimar expectativas
revolucionárias. Queria, isto sim, reconhecer uma revolução na própria
realidade que observava: a novidade
radical, se antes havia sido pensada
como desejo de rejeição ou de interrupção do acontecido em favor de
sua substituição por algo mais justo,
como nas filosofias do direito natural ou na práxis revolucionária francesa, habitava agora a vida cotidiana
nas colônias da Nova Inglaterra.
Desafios
Essa universalização da cidadania
trazia consigo um conjunto instigante de novos desafios que os cânones do pensamento pareciam não
mais responder. Para o espírito que
a via como tal, a ruptura com a experiência conhecida significava também a insegurança de pensar sem as
garantias da tradição. A virtude dos
antigos desaparecera do mundo dos
indivíduos modernos, como já explicara Benjamin Constant; a honra
aristocrática, que durante séculos limitara o autointeresse da nobreza
européia, obrigando-a ao mando e à
proteção das comunidades em seus
territórios, perdera o seu ânimo com
o fim da desigualdade hierárquica.
Sem termos razoáveis de comparação entre o passado e o presente, o
conhecimento até então adquirido
parecia claudicar. Diante da novidade americana, Tocqueville chegou a
imaginar que deveria incinerar a sua
biblioteca e abandonar de vez a busca no passado de soluções para o
presente democrático. Como formulou certa vez em modo desesperado e paradigmático: "Como o passado já não ilumina o futuro, o espírito vagueia nas trevas".
O diagnóstico de Tocqueville acerca da modernidade democrática não
foi otimista. De um lado, percebera a
experiência da Revolução Francesa
como uma tragédia que demonstrara tanto a futilidade da resistência
das elites tradicionais à emergência
do social, como os excessos do exercício do poder político por aqueles
que dele foram historicamente excluídos. De outro, embora houvesse
um otimismo inicial na avaliação do
sucesso das relações entre liberdade
e igualdade na Nova Inglaterra, a experiência igualitária americana revelava disposições que ameaçavam a
política em seu sentido mais digno
de discussão comum e de realização
acordada do bem de todos, de ação e
livre associação entre os iguais no esforço coletivo de encontrar o que deve melhor servir a todos.
Para Tocqueville, o mundo igualitário moderno seria, por necessidade, fortemente individualista. Uma
vez obsoletos os laços aristocráticos
de família e de comunidade, a sobrevivência dos indivíduos passava a
depender sobretudo do esforço de
cada um no mundo do trabalho e da
competição. O que favorecia o isolamento social dos indivíduos e o seu
confinamento à esfera da privacidade, resultando no definhamento da
experiência prática da política e na
alienação em relação a concretude
das mazelas vividas por outrem.
Carentes de vigor, os valores e as
práticas voltados para a realização
do bem comum, sem controle efetivo por parte da experiência prática
da cidadania, o governo da democracia, mesmo se no invólucro da
boa institucionalização liberal, se
transformava em mecanismo autônomo de distribuição de benesses e
de sofrimentos, à mercê do interesse
de seus eventuais ocupantes, conduzidos, pela ignorância da prática política, aos castelos do mando.
Liberdade e cidadania
Neste quadro, a solução tradicional da liberdade negativa não seria
suficiente para Tocqueville. O comparecimento sazonal às urnas, que
constitui regra elementar da institucionalização democrática, seria enganador no contexto de menoridade
política. Sem desprezar os mecanismos eleitorais, para Tocqueville,
qualquer possibilidade de reversão
da derrocada da liberdade exigiria a
revitalização de instâncias outras de
participação que fortalecessem o espírito de cidadania frente à tutela administrativa do Estado centralizado
moderno. Em outras palavras, só
pode haver liberdade democrática
onde houver ação permanente do
corpo de cidadãos na esfera pública.
O cerne do dilema está no fato de
que a participação cívica é espécie
em extinção no contexto de privatização das relações sociais da sociedade igualitária de Tocqueville.
Neste sentido, o dilema tocquevilliano se constitui da contraposição
entre um diagnóstico "científico" da
sociedade moderna -diagnóstico
que retrata as disposições que tendem a inviabilizar a liberdade política nas condições sociais igualitárias- e uma necessidade "ético-política" de afirmar a exeqüibilidade
desta mesma liberdade no contexto
de destruição das bases da cidadania
que decorre do desenvolvimento
daquelas mesmas disposições. Essa
tensão irresolúvel entre ciência e política, entre determinação e vontade,
entre natureza e arte, é o cerne da reflexão tocquevilliana que pretende
constituir uma "nova ciência política para um mundo inteiramente novo". Operando simultaneamente como "ciência" e como "política", o
novo saber proposto quer não apenas determinar o quadro no qual se
encontram inexoravelmente os homens mas também convencê-los da
necessidade, e da possibilidade, de
reagir a ele.
Marcelo Jasmin é professor e pesquisador
de teoria política e história das idéias no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro. É autor de "Alexis de Tocqueville"
(Access) e "Racionalidade e História na Teoria Política" (UFMG)
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