São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997.



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Entre a lei e a felicidade



Um homem é capaz de agir de maneira altruísta ou é a eterna presa de seu egoísmo?


ALAIN DE BOTTON
Imagine-se miraculosamente transportado para o ano de 1890, para a pitoresca cidade austríaca de Braunau, à margem do rio Inn. É verão e o dia é quente, e você logo vê uma mulher passeando no parque municipal, empurrando um carrinho de bebê. Tem cabelos castanhos até os ombros, seus olhos são cor de avelã e seu sorriso é afável. Chama-se Frau Hitler, e a criança no carrinho tem apenas um ano. Você está armado de uma pistola, recebeu aulas de tiro e conhece bem a história da Segunda Guerra Mundial.

Alguma dose de conhecimento de ética não poderia vir mais a calhar -uma vez que a ética é o ramo da filosofia que tenta encontrar princípios que determinem se uma ação é certa ou errada, boa ou má. Atirar na criança e, assim, talvez evitar um cataclismo mundial? Ou recuar diante do crime e da incerteza (pois Goering poderia muito bem começar a guerra) e deixar que mãe e filho prossigam em seu passeio?
Ainda que menos extremosos, não faltam dilemas morais estruturalmente similares: é correto introduzir a esterilização obrigatória a fim de evitar a fome e a catástrofe econômica? É correto provocar o aborto de fetos humanos portadores de malformações? Pessoas em estado grave têm o direito de optar pela eutanásia assistida por médicos? A ética busca oferecer respostas reais, não apenas palpites e preconceitos.
O modo mais antigo e ainda predominante para lidar com dilemas morais é o apelo à religião e à vontade divina. Para filósofos judaico-cristãos, a Bíblia determina o que é certo e o que é errado. Os Dez Mandamentos poderão nos dizer o que fazer com Frau Hitler e seu bebê. Entretanto, se acreditarmos que a Bíblia traduz a vontade de Deus, logo veremos que essa vontade é passível de várias interpretações diferentes e por vezes contraditórias. Em algumas leituras, o assassinato é por vezes permissível (teólogos cristãos reconhecem a possibilidade de uma guerra "justa"), ao passo que tanto partidários quanto adversários do aborto dizem ter Deus a seu lado.
Como saída para tais querelas teológicas, surgiu no século passado uma filosofia moral nova e influente, formulada por Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1808-1873). O utilitarismo propõe uma regra rígida -o Princípio de Utilidade- a quem tiver que determinar se uma ação é certa ou errada. O Princípio de Utilidade afirma que "são corretas as ações que tendem a aumentar a felicidade, e erradas aquelas que tendem a produzir o inverso da felicidade". Enquanto promover a maior felicidade possível para o maior número possível, uma ação será sempre certa ou correta.
É certo mentir? As boas maneiras e as crenças religiosas dizem que não. Para um utilitarista, a resposta depende do grau de felicidade resultante da mentira. Se uma mentirinha sobre a comida servida num jantar puder impedir uma crise de choro na anfitriã, então não haverá problema em mentir. Mas se o elogio servir para incentivar a anfitriã a largar seu emprego atual e abrir um restaurante (com todas as consequências trágicas de tal ato), então será errado mentir.
Bentham dedicou bom tempo a refinar a noção de felicidade, tão decisiva para sua teoria. Ele concebeu um "cálculo hedonístico", composto de sete critérios, relativos à duração e à intensidade da felicidade. Levado ao extremo, o utilitarismo contraria várias opiniões tradicionais. O que vale mais: ler Dante ou participar de um brincadeira tola? "Sendo igual a quantidade de prazer, pega-pega vale tanto quanto poesia", disse o confiante Bentham.
Como era de se esperar, o utilitarismo foi atacado por todos os lados. Uma das objeções refere-se à dificuldade prática de determinar qual grau exato de felicidade derivará de uma dada ação. O utilitarismo repousa sobre a idéia de que as consequências devem ser bem conhecidas antes que se possa decidir quanto ao caráter moral de uma ação. Mas muitas vezes temos que esperar anos até que se conheçam as consequências.
Foi certo lançar a bomba atômica sobre o Japão? A curto prazo, um utilitarista diria que sim; mas se as armas nucleares viessem a ameaçar o futuro do planeta, então, não. O Princípio de Utilidade é problemático porque os efeitos de um ato habitualmente só serão conhecidos muito depois de o termos praticado; sendo assim, não pode nos ajudar na escolha do curso de ação correto.
Uma outra objeção vem dos filósofos morais de pendor aristocrático, para quem a ênfase sobre a felicidade do maior número possível obscurece o fato de que, por vezes, a felicidade de uns pode ser mais importante que a de outros. Nietzsche (1844-1900) tratou J.S. Mill como imbecil, ignorante e cretino.
"Abomino este homem quando diz que 'o que é bom para um é bom para outro'±". Sem ir tão longe quanto Nietzsche, pode-se ainda assim perceber que o utilitarismo corre o risco de justificar a tirania da multidão, promovendo a felicidade do maior número às expensas de uma minoria. E se os interesses da maioria exigirem o sacrifício de um grupo inocente? E se a felicidade de 1 milhão de pessoas consistir em ver os olhos de um indivíduo serem extirpados?
Uma última objeção é que o utilitarismo não presta atenção aos motivos pelos quais uma ação é praticada. Tome-se o caso do Bom Samaritano. Normalmente, pensamos que a ajuda prestada por ele ao viajante é uma boa ação porque imaginamos que ele a tenha praticado por "bons" motivos. Mas e se descobríssemos que ele só se dispusera a tanto porque sabia que, com isso, seu nome seria mencionado com aprovação em todos os púlpitos do globo por séculos e séculos?
Foi este o problema que Immanuel Kant (1724-1804) tentou resolver em sua filosofia moral. Kant diverge dos utilitaristas ao afirmar que a essência da moralidade está no motivo pelo qual um ato qualquer é praticado.
Para Kant, age moralmente quem suprime seus sentimentos e inclinações, para então fazer aquilo que é obrigado a fazer. Alguém que faz doações caridosas apenas por temer a fama de pão-duro não pode ser chamado de pessoa moral.
Kant também oferece uma regra prática: uma ação só é moral quando puder, sem maiores problemas, tornar-se princípio universal de ação. É certo ou é errado tentar livrar-se de engarrafamentos transitando pelas calçadas?
Pode ser conveniente para mim (chegarei em casa uma hora antes), mas é imoral para Kant porque não poderia tornar-se prática universal sem produzir o caos. Kant aconselhava: "Aja tão-somente de acordo com uma máxima que possa tornar-se lei universal". O que, em bom português, quer dizer o seguinte: antes de fazer alguma coisa, pense no que aconteceria se todos agissem como você.
Agir moralmente é uma árdua tarefa no mundo kantiano. Seríamos nós capazes de agir de modo tão pouco egoísta como queria Kant? Ou seremos nós criaturas muito mais autocentradas do que imaginava o filósofo alemão? O problema nos conduz à questão do mês que vem: seres humanos são capazes de agir altruisticamente? Ou o egoísmo nos é inerente?


Alain de Botton é escritor britânico de origem suíça. Escreveu, entre outros, "Ensaios de Amor" (Ed. Rocco) e "How Proust Can Change Your Life" (Como Proust Pode Mudar Sua Vida). Ele escreve mensalmente na seção "Autores".
Tradução de Samuel Titan Jr.

A OBRA
A Sombra das Vossas Asas - Fernanda Young. Ed. Objetiva (r. Cosme Velho, 103, CEP 22241-090, RJ, tel. 021/556-7824). 268 págs. R$ 22,00.



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