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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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TENTATIVA DE SANTIFICAÇÃO DA OBRA DO PENSADOR ALEMÃO ENCOBRE A INCAPACIDADE DA RAZÃO TÉCNICA EM EXPLICAR A VIOLÊNCIA PRODUZIDA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO PELA RELAÇÃO ENTRE PODER E CONHECIMENTO

ADORNO SEM ORNAMENTOS

Frequentemente tenho sido censurado por endereçar críticas abstratas, extrínsecas e superficiais a Adorno. "Ao salientar estabanadamente aspectos formais de seus pensamentos, você está menosprezando o importante: o conceito de indústria cultural, toda a estética do romance e da música, a dialética negativa e assim por diante" é o que me repetem amigos e inimigos. Mas a questão não é reduzir a estatura gigantesca desse pensador nem minimizar suas extraordinárias contribuições para o entendimento das sociedades e da produção cultural contemporâneas. Nesse plano, é de esperar de um filósofo municipal a modéstia do silêncio. A questão, porém, é examinar se a malha conceitual empregada por Adorno e seus sucessores ainda contém potencial crítico. No final das contas, o que a dialética negativa ainda pode ensinar sobre as recentes transformações do mundo contemporâneo?
A chamada Escola de Frankfurt se transformou em monumento; como tal, muitas vezes mais frequentado do que entendido. É natural que doutrinas propondo revoluções ou mesmo reformas radicais se vejam tentadas por alguma espécie de messianismo, santificando seus heróis: são Stirner, são Marx, são Gramsci e assim por diante. Não há dúvida de que os frankfurtianos não atingiram tais picos, mas me parece que já são tratados como beatos, sendo que seus textos muitas vezes são lidos, principalmente pelos historiadores hagiógrafos, como a boa palavra revelada. Noutras palavras, série de opiniões, fora das condições práticas que as tornariam verdadeiras. Não é natural que seus seguidores fiquem à espera de uma espécie de revelação?
Notável que Adorno e Horkheimer tenham preparado sua própria santificação. No livro "Minima Moralia", escrito sob o impacto do Holocausto, Adorno sintomaticamente termina com as seguintes palavras: "A filosofia, segundo a única maneira pela qual ainda pode ser assumida responsavelmente diante do desespero, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam, a partir de si mesmas, do ponto de vista da redenção". E prossegue: "Além desse conhecimento, tudo se exaure na reconstrução e permanece uma técnica; obter tais perspectivas sem atrito nem violência, a partir tão-somente do contato com os objetos, é a única coisa que importa ao pensamento" (pág. 216). Enfim, elogio da vida beata, no máximo da prática universitária, sem as misérias da técnica política, isto é, dos atos de transformar a realidade social na medida do possível e do quase impossível.
Bem sei que "redenção" aqui é uma metáfora, mas seja qual for seu sentido, está se referindo a uma espécie de deiscência da libertação, algo que ultrapassa o campo de possibilidades instituído pela clausura do capitalismo. Ora, pensar o conceito de capital para fazer do não-capital o lado meramente negativo desse conceito liga-se a uma forma de pensar o conceito e à identidade. É sabido que Adorno e Horkheimer os entendem como uma espécie de carimbo identitário, articulando-se socialmente, cujo movimento, porém, tende a revelar seu lado não-idêntico. Funciona como selo marcando a cera e, por isso mesmo, criando um entorno excedente, cuja expansão não-idêntica permanece, contudo, fora do alcance da razão. Daí aquela tensão entre o universal e o particular que dispensa seus procedimentos de expressão, a configuração de um espaço técnico onde se movem. A linguagem categoriza o real já trilhado pela prática social de identificar diferindo. O conceito é para Hegel e Marx um silogismo (universal, particular singular em miniatura), não é porque Adorno faz dele uma forma que se deforma (universal particular) que deixa de recair no essencialismo.
O que procurei mostrar em meu último artigo, "Fetiche na Razão" (Mais, 15/6/2003)? Ser impossível fazer da linguagem mera afiguração do movimento do real, porquanto requer técnicas específicas permitindo a aplicação das identidades afigurantes. Para isso tomei, como exemplo, a construção de uma linguagem formal, no caso, a aritmética. Até mesmo um conceito tão simples como o de número necessita, para se expandir, seja passar do número natural para o número real, seja ter sua exterioridade domada por um processo técnico, a invenção dos algarismos arábicos e a introdução do zero. Se os gregos já conheciam o número irracional, como a hipotenusa de um triângulo retângulo cujos lados medem 1m, visto que não conheciam os algarismos arábicos e o zero, só poderiam colocá-lo fora da razão. Uma notação como aquela dos romanos torna muito complicadas as operações aritméticas. Em resumo, o sentido do conceito de número está ligado a uma determinada prática, ao uso determinado de sinais, que por sua vez o encaminha nesta ou naquela direção. Um raciocínio, sendo uma cadeia de conceitos, traz, pois, em sua alma a tensão de ir além dele, mas isso só acontece quando tem à mão certos dispositivos práticos, técnicos, que permitem às suas regras serem seguidas efetivamente. O que resta assim da distinção proposta por Max Weber entre razão substantiva e razão técnica? Nada. Note-se que aqueles que continuam a mantê-la só podem transformar raciocínios em cadeias de opiniões, tendendo, por conseguinte, a retirar da armadura de seus pensamentos eficácia prática.

Jogo de opiniões
A esclerose da razão proviria, segundo Adorno e Horkheimer, do tecnicismo provocado pelo fetichismo das mercadorias: as relações sociais que as produzem são projetadas na identidade delas, aquilo que é comum entre elas. Tudo depende então de como interpretam essa identidade. Mas gostaria de lembrar que o próprio Marx, considerando que as mercadorias não vão ao mercado de moto próprio, examina como os agentes se determinam para virem a ser mercadores. E a primeira condição é que sejam tomados como pessoas dotadas de direitos, já que ninguém vende e compra se um ladrão leva para casa a coisa posta à venda. Em resumo, se os valores nascem de um jogo de opiniões, de representações de um idêntico, só vêm a ser efetivos depois de trocados por agentes juridicamente determináveis, isto é, identificados como livres.
A identidade da mercadorias está ligada a uma identidade especial do agente e vice-versa. Tão especial quanto contraditória: produzir para o mercado é tanto alienante como prepara o produtor para ser livre como pessoa jurídica. Aqui a meu ver reside o nervo do problema: a alienação é processo contraditório, que tanto domina como libera; na miséria do capitalismo contemporâneo há processos automáticos assim como germes de liberação. Daí a importância da política, como arte de lidar com as relações humanas ossificadas e fazer emergir os pontos de liberdade inscritos em nossas práticas cotidianas.
Adorno e Horkheimer não possuem instrumentos para pensá-la como a arte, pois estão sendo imobilizados por uma concepção da técnica que somente nela vê o infernal processo de automatizar. Além do mais, ao conceberem a história como fortalecimento progressivo da razão técnica, que se perfaz com a perda do momento da revolução, só resta esperar por outro surto revolucionário. Enquanto ele não vem, a tarefa é refletir sobre a arte e a cultura e mostrar como lidam com formas de dominação.
Para Adorno, a única coisa que resiste à essa reflexão irracional é o corpo, a materialidade, violência do peso muito distante daquela violência do poder, isto é, de um irracional que, em vez de fugir de si mesmo, vem a ser domado. Compreende-se por que retira da crítica da propriedade qualquer dimensão crítica.
Desde o utópico Proudhon, que denuncia a propriedade como um roubo, o socialismo percebe no fundo do travejamento social dos indivíduos uma violência originária, apropriação de algo que, se é pressuposto no início do processo produtivo, há de ser reposto por esse mesmo processo como momento técnico de identidade. Uma teoria da deiscência da identidade é incapaz de compreender o núcleo identitário, posto e reposto, desse poder.
No entanto numa sociedade do conhecimento não é precisamente isso o que acontece? O conhecimento não está dentro e fora do modo de produção mercantil? Antes de tudo é preciso pensar a propriedade, particularmente dos meios de produção, além dos termos simplórios do socialismo tradicional. Cabe notar que, numa sociedade do conhecimento e da informação, esses meios são travejados por teorias e práticas, de sorte que são apropriados mediante processos sociais muito diferentes daquele ato de posse de quem desenha um limite num terreno e declara: "Isto é meu".
Mas o que dizer de um sistema produtivo cujo desenvolvimento depende intrinsecamente de um progresso tecnológico constante e de uma ciência sempre in fieri, progresso basicamente controlado, apropriado, por grandes corporações? Esse lado das relações sociais de produção, cuja ossificação se completa pelo monopólio da invenção tecnocientífica, não está, em contrapartida, vinculado a um Estado, que cuida tanto de superar os obstáculos ao livre mercado quanto da regulação do Bem e do Mal? É de notar que seus agentes tanto são dotados de direitos como se confrontam com poderes que coagem esses mesmos direitos.
Esse monopólio da invenção consiste num dispositivo global de poder-saber que, embora entranhado em processos racionais, se funda numa violência, a meu ver, impossível de ser explicada pelo predomínio exclusivo daquilo que se costuma chamar de razão técnica. Mesmo que se venha a discutir e avaliar racionalmente o absurdo da tecnociência vir a ser propriedade monopolizada por alguns, o novo poder só pode ser pensado e combatido enquanto na sua própria racionalidade técnica já estão inscritas novas formas instituintes de racionalidade.

Nota
Versões diferentes deste artigo foram lidas por Luciano Codatto, Alberto Alonzo Muñoz e Marcos Nobre, este funcionando como "sparring partner"; a todos agradeço.


José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


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