São Paulo, domingo, 28 de novembro de 2010

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Natal paraguaio

Com real forte, agências e donos de ônibus clandestinos estimam em 30% aumento de viagens de sacoleiros; Receita amplia fiscalização

Fotos Marlene Bergamo/Folhapress
Sacoleiros carregam pacotes em rua de Ciudad del Este, zona franca paraguaia que faz fronteira com Foz do Iguaçu

LAURA CAPRIGLIONE
MARLENE BERGAMO
ENVIADAS ESPECIAIS A CIUDAD DEL ESTE

Duas quadras separam a rua 25 de Março, o mais tradicional ponto de venda de mercadorias piratas de São Paulo, da esquina das ruas Barão de Duprat e Miguel Carlos. É lá, rodoviária imaginária, que 150 homens e mulheres esperam, sentados no chão da calçada imunda, por três ônibus clandestinos que os levarão para Foz do Iguaçu (a 1.070 km de distância), fronteira com o Paraguai.
Ninguém carrega malas. Só bolsas com o essencial: pente, escova de dentes, celular, pacote de bolachas para aguentar as 14 horas de viagem e um calmantezinho, que ninguém é de ferro.
Se tudo der certo (isto é, a Polícia Federal deixar), a turma voltará cheia de pacotes.
São os sacoleiros do Paraguai, mas pode chamar de "muambeiros" -eles não se ofendem. A categoria murcha em época de dólar caro e viceja quando a moeda americana despenca de preço, como agora. Na sexta-feira, o dólar fechou a R$ 1,728.
Donos de ônibus clandestinos e agências de viagem que operam a rota do descaminho paraguaio estimam em 30% o crescimento das viagens de bate-e-volta de Foz do Iguaçu-Ciudad del Este (na fronteira), do ano passado para cá.
A loira tingida Marcia vai duas vezes por semana, às terças e sextas-feiras. Especializou-se em cremes Victoria's Secret, que compra por US$ 9 (R$ 15,55) e vende por R$ 50. O japonês Ronaldo vai três vezes por semana. Sua área são os artigos para cabeleireiros -chapinhas e secadores, entre os principais, margem de lucro de 40%. Com cara de baterista heavy metal, o quase obeso André, de bermudas, focalizou o mercado das bandas de garagem. Vai ao Paraguai em busca de microfones profissionais, lucro de 110%.
A reportagem da Folha se apresenta como iniciante na atividade. Há outros neófitos no ônibus -vão prospectar seus próprios mercados.
Matheus, cara de moleque, boné do São Paulo, especializado em acessórios para Playstation, sugere: "Para quem está começando, o melhor é ir de cobertor".
"Cobertor, no verão?", pergunta a reportagem. "Cobertor é um sucesso. Todo mundo quer um desses chineses. São superlevinhos e esquentam muito, além de serem decorativos", diz ele.
Compra-se o de casal por US$ 25 (R$ 43) e vende-se no Brasil por R$ 150 -lucro de R$ 107 por unidade, 248% sobre o capital investido.
Na noite da última terça-feira, uma blitz da Receita Federal na Galeria Pajé (templo da pirataria na rua 25 de Março) atrasa toda a programação dos viajantes.
Com medo de serem flagrados pelos agentes federais, motoristas e ônibus clandestinos desaparecem.
Materializam-se às 20h58, três horas depois do combinado. Em cinco minutos, todos os passageiros estão acomodados, sem overbooking -e olha que as passagens nem sequer são emitidas; é tudo combinado e organizado por uma mulher fortona, prancheta debaixo do braço.
Os clandestinos custam a partir de R$ 60 para ir ou voltar. Essa é a tarifa paga pelos passageiros experientes. Marinheiros de primeira viagem pagam tarifa maior: R$ 100. Os ônibus de linha são, é claro, mais caros -R$ 114,50 por trecho.

CORRERIA
Por causa do atraso, não haverá nenhuma parada no meio do caminho. O objetivo é chegar ao destino antes das 11h do dia seguinte, fazer as compras o mais rápido possível e pegar o ônibus de volta às 18h. Uma correria.
Assim que a viagem começa, a especialista em Victoria's Secret, aparentando 45 anos, logo se anima com o garotão Marçal, 20 e poucos, fixado em amplificadores automotivos. Os dois trocam sonoros beijos durante a viagem, interrompidos apenas pelos sobressaltos com a presença dos trailers da Receita Federal, pelo caminho.
"Oba, está fechado", comemora a família adventista ao ver o trailer desativado, parado em um posto da Polícia Rodoviária.
"Vai nessa. Amanhã, na volta, o "barracão" estará aberto", afirma o experiente "passador" de produtos para cabeleireiros.

FISCALIZAÇÃO
A Receita Federal apreendeu neste ano US$ 96 milhões (R$ 166 milhões) em mercadorias irregulares do Paraguai. O total é 29,4% superior ao do mesmo período do ano passado.
Também fez 38,58% mais operações de fiscalização, passando de 1.068 operações no primeiro semestre de 2009 para 1.480 em igual período de 2010.
Em números absolutos, a repressão pareceu avançar. Mas a sonegação fiscal avançou em igual proporção, conforme indica o aumento no número de viagens de muambeiros.
"O resultado é que a Receita está apenas correndo atrás do prejuízo", diz um funcionário do posto aduaneiro localizado bem em cima da ponte sobre o rio Paraná, fronteira Brasil-Paraguai.
Para despistar a fiscalização, os muambeiros ficam em um vai-e-vém insano sobre a ponte. Compram a mercadoria no Paraguai, desembalam-na (para reduzir o tamanho) e atravessam-na para o lado brasileiro.
Guardam em um dos mais de cem guarda-volumes de Foz, e voltam para mais compras -evitam, assim, chamar a atenção dos funcionários da aduana.
Já do lado brasileiro, a preocupação é evitar os homens da Receita. Se encontrarem bagagem não declarada, de valor superior a US$ 300 (o limite para compras que passam pela fronteira terrestre), é apreensão certa.
A fiscalização pode acontecer em qualquer ponto da viagem. Atravessadores experientes apelam para batedores: de moto ou em carros, eles vão na frente dos ônibus. Deparando-se com trailers da Receita Federal e com fiscais em ação, os batedores telefonam para os celulares de quem os contratou e avisam: "Desce que sujou!"
Às 23h50 de quinta-feira, ônibus lotado fazendo a viagem de volta, homens da Polícia Federal instalados no posto da Polícia Rodoviária de Peabiru (334 km de Foz) mandam parar. No porta-malas, descobrem um carregamento de perfumes sem nota fiscal e nem pagamento de imposto. É PT, "perda total". Gisele, dona da muamba, chora e reclama que não a avisaram da blitz. Ela termina a viagem a bordo de um Lexotan. Os outros passageiros fingem dormir.


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