São Paulo, sábado, 30 de outubro de 2010

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OPINIÃO

O que fazer com um tesouro -uma fábula

A descoberta de um tesouro é uma bênção; mas na manhã seguinte vêm os economistas e suas insuportáveis contas


USAR O DINHEIRO PARA PAGAR DÍVIDAS ERA COMO FAZER OBRA DEBAIXO DA TERRA, CUSTA CARO, PODE FAZER BEM, MAS NINGUÉM VÊ. E PIOR: A FÓRMULA TINHA SIDO EMPREGADA PELO REI QUE O ANTECEDERA


GUSTAVO H. B. FRANCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A descoberta de um tesouro é sempre uma bênção, em qualquer reino, e no nosso não foi diferente. Dormimos felizes e perplexos, mas na manhã seguinte vieram os economistas e suas insuportáveis contas e considerações.
O tesouro vale 100 pontos percentuais do PIB (abreviadamente ppps), segundo um cálculo aproximado. E vamos poder extraí-lo numa base de 2 ppps a cada ano, uma bela fortuna, vão ser pelo menos 50 anos de fartura.
Todo o problema é que é preciso gastar o equivalente a 20 ppps na partida para estabelecer a produção. E há certos riscos de engenharia, que vamos ignorar para não diminuir a festa.
O rei era muito querido, mas não tinha as 20 ppps para o investimento, e logo cogitou se endividar. O reino já devia 40 ppps e pagava caro por isso (umas 5 ppps por ano). Decisão nada fácil.
O rei chamou um experiente conselheiro, do qual ouviu a seguinte receita: - Majestade, venda o direito de exploração do tesouro para o setor privado, e num leilão será possível conseguir um excelente preço, quem sabe umas 10 ppps, que V.M. poderá usar para reduzir a dívida do reino, e ademais, com esse esquema, a responsabilidade de investir as 20 ppps passa para os concessionários. Lembre que eles pagarão imposto sobre o lucro, o tesouro vai estar logo disponível para o povo e sua conta de juros vai cair...
O rei não ficou seduzido com o conceito. Usar o dinheiro para pagar dívidas era como fazer obra debaixo da terra, custa caro, pode fazer bem, mas ninguém vê. E pior: a fórmula tinha sido empregada pelo rei que o antecedera. Melhor chamar um segundo conselheiro, do qual ouviu uma complexa alternativa: - Majestade, devemos usar uma empresa nossa, de economia mista, como a "Tesobrás", que vai lhe comprar os direitos de exploração do tesouro pelas mesmas 10 ppps, depois vemos se não é melhor, inclusive, aumentar esse preço. E V.M. usa esse dinheiro para fazer um palácio -nada de cancelar dívida!- enquanto a Tesobrás vai se virar para explorar o tesouro. Como ela não tem o dinheiro, V.M. empresta um pedaço, inclusive para o dinheiro do palácio, e o outro pedaço a gente consegue fazendo um aumento de capital na Tesobrás.
O rei ficou confuso e por um instante se arrependeu de mandar decapitar o primeiro conselheiro, aquele neoliberal miserável. Melhor chamar um terceiro conselheiro, mais pragmático, que foi direto ao ponto: - Como V.M. sabe, o primeiro modelo foi usado para explorar esse tesouro conhecido como "telefonia celular", com enorme sucesso, todo mundo hoje tem um pedacinho desse tesouro. Sei bem que V.M. não quer ouvir sobre isso, mas nesse modelo, majestade, a dívida pública caiu de 40 para 30 ppps e o reino se livrou de 20 ppps de despesa. Uma bela economia, e, além disso, os concessionários são estrangeiros, mas os aparelhos não têm sotaque e os gringos pagam impostos sem reclamar. No segundo modelo, existem diversas piruetas contábeis que vamos ter dificuldades de explicar.
- Não se preocupe com explicação, isso não tem a menor importância; mas o que seria?
- É que, ao criar a Tesobrás, que tanto lhe encantou, e também as bases governistas, a empresa já nasce com a obrigação de gastar 30 ppps que não possui: 10 ppps relativos à cessão onerosa, ou para a concessão, tanto faz, que vão para o seu bolso e para o seu palácio, e 20 ppps para desenterrar o tesouro. Para arrumar esse dinheiro, vamos combinar aumentos na dívida pública e venda de participações minoritárias na Tesobrás.
- Prossiga, você vai indo bem...
- Pois então, V.M. emite títulos da dívida real no valor de 10 ppps -aliás, por que não 12?- e os empresta à Tesobrás, que lhe paga pela concessão, ou seja, pelo palácio. Afinal, esse valor é decisão política, apesar de que tecnicamente devêssemos deixar aos minoritários decidirem sem a sábia mas conflitada interferência de V.M.
- Minoritários foram os que perderam as eleições, não é isso?
- E adicionalmente a empresa levanta 15 ppps no mercado, e, para não haver diluição, V.M. converte o crédito de 12 ppps em capital e subscreve mais uns 7 ppps de capital na empresa, tudo com dívida do reino, e assim a conta fecha, com 12 para o palácio e 22 para os investimentos. Assim temos uma pequena sobra, e V.M. fica com seu palácio, com o investimento no tesouro e com um aumento na sua participação na empresa. O problema é que a dívida do reino sobe de 40 para 64, ou seja, mais do dobro do que ocorreria caso V.M. usasse o modelo da privatização, e V.M. deixa engasgado o mercado de capitais e os minoritários vão ficar tiririca da vida.
- Não me fale em privatização, eleições e minoritários. Por isso o seu colega conselheiro número dois foi decapitado.
- Mas, Majestade, foi dele a ideia afinal adotada, não? Foi brilhante; pode dar problema com o Ministério Público, mas...
- E você, por favor, comece a fazer suas malas e despedidas, pois eu não quero ninguém aqui que saiba explicar essa coisa toda, que, aliás, eu não entendi mesmo. Tem coisa que é melhor não saber. Guardas...

MORAL DA HISTÓRIA: há histórias destituídas de moral.


GUSTAVO H. B. FRANCO, 54, é professor da PUC-RJ, ex-presidente do Banco Central do Brasil e sócio fundador da Rio Bravo Investimentos. É autor, entre outros livros, de "Cartas para um Jovem Economista" recém-lançado pela Editora Elsevier.


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