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COMENTÁRIO
Bush e o messianismo americano
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
A iminente Segunda Guerra do
Golfo diz respeito ao petróleo,
mas não só. É também a consolidação, sem nuanças, do histórico
messianismo americano, que encontrou em George W. Bush sua
expressão menos dúbia. Ao bombardear o Iraque sem que antes
tenham sofrido algum tipo de
agressão concreta, os EUA obrigarão o mundo a rever os manuais do direito internacional,
mas, do ponto de vista da direita
cristã americana, hoje encastelada
na Casa Branca, será de qualquer
modo uma guerra justa. Afinal,
trata-se de um empreendimento
liderado por um "país abençoado", cuja "missão" é "tornar nosso mundo mais seguro" e "melhor", nas palavras do presidente-profeta, proferidas na última terça
em sessão solene no Congresso.
Bush, assim, assume-se como
guardião da essência mesma da
"América", volta e meia ameaçada pelo secularismo liberal, geralmente identificado com os ideais
da "velha Europa", para usar um
termo da moda em Washington.
Ele retoma, com força vista poucas vezes no Executivo americano, a crença na excepcionalidade
de seu país e, em razão disso, de
suas tarefas sagradas no mundo.
"Nós, os americanos, somos o
povo peculiar, escolhido -o Israel de nosso tempo; carregamos
a arca das liberdades do mundo",
escreveu Herman Melville, o autor de "Moby Dick", 153 anos antes de Bush. E completou: "Por
longo tempo fomos céticos a respeito de nós mesmos e duvidamos se, realmente, o Messias político havia chegado. Mas ele chegou em nós, como se não tivéssemos feito nada senão dar expressão oral a suas aspirações".
Melville fala de messianismo
numa Nova Inglaterra que se ergueu como refúgio para as minorias protestantes perseguidas na
Europa católica do século 17. Essas levas de foragidos encontraram ali um local seguro para estabelecer suas próprias instituições
e doutrinas, deliberadamente
desvinculadas de suas equivalentes européias, pois a Europa lhes
era sinônimo de turbulência e injustiça. A América, tábula rasa,
permitia a realização das utopias
religiosas da Reforma protestante, isto é, a construção de uma sociedade baseada na fidelidade incondicional aos ensinamentos bíblicos, na hostilidade à autoridade
que não representasse esse conjunto de valores e na liberdade do
indivíduo -essencialmente a liberdade de culto e de expressão.
Não é por outro motivo, coincidem os historiadores, que, enquanto a Europa se dessacraliza
pelas revoluções burguesas a partir do século 18, "nos EUA o zelo
religioso se aquece sem cessar ao
pé do fogo do patriotismo", como
escreveu Alexis de Tocqueville em
"A Democracia na América"
(1835). Na política, esse civismo
teológico missionário aparece pelo menos desde John Adams, segundo presidente americano
(1797-1801), que considerava a
fundação dos EUA "um projeto
providencial, para que sejam iluminados os ignorantes e seja libertada a parte subjugada da terra". Mas foi Woodrow Wilson
(1913-1921) o primeiro governante do país a converter o messianismo em razão de Estado, cujos
princípios formam, ainda hoje, "o
alicerce do pensamento americano de política externa", na interpretação de Henry Kissinger.
Wilson imprimiu as convicções
morais de seu país na agenda da
diplomacia internacional, que se
limitava a priorizar somente interesses estratégicos, diante dos
quais as crenças religiosas eram
irrelevantes. Não bastava aos
EUA assegurar a realização de
seus ideais somente em seu território, para servir de "farol da liberdade" ao resto do mundo. Para Wilson, a segurança de seu país
e do mundo estaria garantida se
todos fossem levados a se converter ao americanismo: "Construímos esta nação para tornar os homens livres, não limitaremos nossos bons propósitos à América e
agora libertaremos povos". Desse
modo, o presidente arrastou os
EUA à Primeira Guerra não por
razões geopolíticas, mas porque
era preciso lutar "pelo domínio
universal da justiça", velha reivindicação cristã.
Mas a visão de Wilson ainda
prezava as relações internacionais. Bush, no entanto, parece
pronto a ir mais além: quer subjugar o "Mal" antes mesmo que ele
se manifeste, ainda que isso signifique o atropelamento das instâncias diplomáticas. Sua motivação
("clareza moral", em suas próprias palavras) reflete os ideais do
movimento fundamentalista cristão que se consolidou nos EUA a
partir do final dos anos 70 e que
está com Bush no poder. A bandeira dos fundamentalistas é a defesa da mobilização febril (política e militar), em nome de Deus,
contra um extenso cardápio de
ameaças, que inclui desde a liberação dos costumes até as armas
de destruição em massa iraquianas. É dessa reação ao "humanismo secular" e dessa imposição do
divino como medida de todas as
coisas que o atual presidente americano é um orgulhoso herdeiro,
razão pela qual ele se dispôs a
"sair pelo mundo para socorrer os
aflitos, defender a paz e frustrar os
desígnios dos homens maus".
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