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São Paulo, sábado, 01 de fevereiro de 2003

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COMENTÁRIO

Bush e o messianismo americano

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

A iminente Segunda Guerra do Golfo diz respeito ao petróleo, mas não só. É também a consolidação, sem nuanças, do histórico messianismo americano, que encontrou em George W. Bush sua expressão menos dúbia. Ao bombardear o Iraque sem que antes tenham sofrido algum tipo de agressão concreta, os EUA obrigarão o mundo a rever os manuais do direito internacional, mas, do ponto de vista da direita cristã americana, hoje encastelada na Casa Branca, será de qualquer modo uma guerra justa. Afinal, trata-se de um empreendimento liderado por um "país abençoado", cuja "missão" é "tornar nosso mundo mais seguro" e "melhor", nas palavras do presidente-profeta, proferidas na última terça em sessão solene no Congresso.
Bush, assim, assume-se como guardião da essência mesma da "América", volta e meia ameaçada pelo secularismo liberal, geralmente identificado com os ideais da "velha Europa", para usar um termo da moda em Washington. Ele retoma, com força vista poucas vezes no Executivo americano, a crença na excepcionalidade de seu país e, em razão disso, de suas tarefas sagradas no mundo.
"Nós, os americanos, somos o povo peculiar, escolhido -o Israel de nosso tempo; carregamos a arca das liberdades do mundo", escreveu Herman Melville, o autor de "Moby Dick", 153 anos antes de Bush. E completou: "Por longo tempo fomos céticos a respeito de nós mesmos e duvidamos se, realmente, o Messias político havia chegado. Mas ele chegou em nós, como se não tivéssemos feito nada senão dar expressão oral a suas aspirações".
Melville fala de messianismo numa Nova Inglaterra que se ergueu como refúgio para as minorias protestantes perseguidas na Europa católica do século 17. Essas levas de foragidos encontraram ali um local seguro para estabelecer suas próprias instituições e doutrinas, deliberadamente desvinculadas de suas equivalentes européias, pois a Europa lhes era sinônimo de turbulência e injustiça. A América, tábula rasa, permitia a realização das utopias religiosas da Reforma protestante, isto é, a construção de uma sociedade baseada na fidelidade incondicional aos ensinamentos bíblicos, na hostilidade à autoridade que não representasse esse conjunto de valores e na liberdade do indivíduo -essencialmente a liberdade de culto e de expressão.
Não é por outro motivo, coincidem os historiadores, que, enquanto a Europa se dessacraliza pelas revoluções burguesas a partir do século 18, "nos EUA o zelo religioso se aquece sem cessar ao pé do fogo do patriotismo", como escreveu Alexis de Tocqueville em "A Democracia na América" (1835). Na política, esse civismo teológico missionário aparece pelo menos desde John Adams, segundo presidente americano (1797-1801), que considerava a fundação dos EUA "um projeto providencial, para que sejam iluminados os ignorantes e seja libertada a parte subjugada da terra". Mas foi Woodrow Wilson (1913-1921) o primeiro governante do país a converter o messianismo em razão de Estado, cujos princípios formam, ainda hoje, "o alicerce do pensamento americano de política externa", na interpretação de Henry Kissinger.
Wilson imprimiu as convicções morais de seu país na agenda da diplomacia internacional, que se limitava a priorizar somente interesses estratégicos, diante dos quais as crenças religiosas eram irrelevantes. Não bastava aos EUA assegurar a realização de seus ideais somente em seu território, para servir de "farol da liberdade" ao resto do mundo. Para Wilson, a segurança de seu país e do mundo estaria garantida se todos fossem levados a se converter ao americanismo: "Construímos esta nação para tornar os homens livres, não limitaremos nossos bons propósitos à América e agora libertaremos povos". Desse modo, o presidente arrastou os EUA à Primeira Guerra não por razões geopolíticas, mas porque era preciso lutar "pelo domínio universal da justiça", velha reivindicação cristã.
Mas a visão de Wilson ainda prezava as relações internacionais. Bush, no entanto, parece pronto a ir mais além: quer subjugar o "Mal" antes mesmo que ele se manifeste, ainda que isso signifique o atropelamento das instâncias diplomáticas. Sua motivação ("clareza moral", em suas próprias palavras) reflete os ideais do movimento fundamentalista cristão que se consolidou nos EUA a partir do final dos anos 70 e que está com Bush no poder. A bandeira dos fundamentalistas é a defesa da mobilização febril (política e militar), em nome de Deus, contra um extenso cardápio de ameaças, que inclui desde a liberação dos costumes até as armas de destruição em massa iraquianas. É dessa reação ao "humanismo secular" e dessa imposição do divino como medida de todas as coisas que o atual presidente americano é um orgulhoso herdeiro, razão pela qual ele se dispôs a "sair pelo mundo para socorrer os aflitos, defender a paz e frustrar os desígnios dos homens maus".


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