|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA
Filósofo francês diz que ex-colônias sofrem devido a suas elites corruptas e que o islã fundamentalista é a atual face do mal
Ocidente virou bode expiatório, diz Lévy
Karim Sahib - 2.jan.2004/France Presse
|
Fundamentalista muçulmano sunita pede guerra santa contra os EUA durante oração em Bagdá |
OCTAVI MARTÍ
DO "EL PAÍS"
Chegar a ser conhecido pelas
iniciais do nome é um privilégio
que os franceses reservam a muito poucas pessoas. Bernard-Henri
Lévy (BHL) é uma delas. Ele tem,
no mínimo, tantos detratores
quanto defensores, aos quais tanto irrita quanto seduz. Alguns o
acusam de ser uma paródia de si
mesmo; outros consideram inestimável sua disposição de tomar
parte em todas as discussões intelectuais.
Homem de muitos talentos,
BHL explica: ""Sou um filósofo
que escreve romances, um filósofo que faz cinema, um filósofo que
se interessa pelo teatro e um filósofo que publica reportagens jornalísticas".
Fica claro através de que prisma
ele prefere analisar o mundo, esse
mundo que ele já percorreu de alto a baixo, desde a Argélia até a
Colômbia, da Bósnia até Bangladesh. Ao mesmo tempo, nunca
deixou de ser o protótipo do intelectual francês, um destilado saído dos alambiques prestigiosos
de Saint-Germain-des-Près.
Bernard-Henri Lévy nasceu na
Argélia, na vila de Beni-Saf, em
1946, filho de André e Ginette
Lévy. Seu pai era empresário e fez
grande fortuna no setor da madeira. De volta à França, os Lévys
se instalaram no elegante bairro
de Neuilly, um subúrbio de Paris,
e Bernard-Henri não demorou a
se tornar um aluno muito brilhante de um dos liceus públicos e
laicos dos quais saíram as elites
francesas, o liceu Louis-le-Grand,
formando-se mais tarde na École
Normale Supérieure.
Pergunta - "A Barbárie com Rosto
Humano" e seu último livro,
""Quem Matou Daniel Pearl?" [edit.
A Girafa, 472 págs, R$ 52,00] têm
uma preocupação em comum que
vemos também em outros textos
seus: identificar o rosto do mal.
Bernard-Henri Lévy - Baudelaire
dizia que a maior astúcia do diabo
era nos fazer acreditar que ele não
existia. O mal muda de rosto, mas
continua presente. Ao longo do
século 20 ele pode ter aparecido
sob a forma nazista, a comunista
ou, nos últimos anos, a do islamismo radical. Nos três casos, o
mal se reveste de uma vontade ou
desejo de pureza, de um projeto
de eliminação daquilo que é visto
como sendo a parte negra da humanidade.
Para os nazistas, a impureza era
encarnada nos judeus; para os comunistas, no burguês; para o islamismo, no democrata, ou seja, o
infiel. A proposta é limpar o mundo das impurezas, e, para isso, era
preciso preservar a juventude
-ou seja, aqueles que ainda não
conheceram a complexidade.
Pol Pot, no Camboja, ordenou o
assassinato de todos aqueles que
poderiam dar testemunhos de
outro tipo de vida, de organização
social. Era preciso criar uma sociedade partindo de um projeto
novo, e isso só podia ser feito como homens ""novos". Vem daí a
preferência de todos os totalitarismos pela juventude.
Pergunta - As três formas do mal
a que o sr. alude puderam ter êxito
mais ou menos em grande escala
porque exploraram um ressentimento popular. Os nazistas exploraram o ressentimento provocado
pelas exigências econômicas do
Tratado de Versalhes; os comunistas, a miséria coletiva à qual era
condenada a grande maioria da população, numa sociedade quase
feudal; e os islâmicos exploram as
conseqüências da colonização.
Lévy - Sim, mas não devemos
nos deixar enganar. Não é o mundo ocidental que cria a miséria em
determinadas regiões do Oriente.
A colonização foi terrível, sinistra,
uma exploração real dos países
colonizados, isso é inegável. Mas,
se esses países continuam pobres
hoje, devem esse fato a suas próprias elites corruptas, a sua miséria cultural, ao veneno inoculado
por um islamismo radical que
não acredita no indivíduo, na liberdade ou na democracia. O
Ocidente é um bode expiatório
muito cômodo do qual se servem
os ditadores corruptos.
Pergunta - A Igreja Católica, enquanto pôde exercer influência política direta, foi tão intolerante
quanto certos islâmicos são hoje.
Lévy - É por isso que é preciso
defender o islã moderado, um islã
que existe e que não temos sabido
ou querido ajudar: o islã do presidente bósnio Itzebegovic ou do
comandante Massoud [líder afegão morto pelo Taleban em 2001];
o da cosmopolita Sarajevo, onde
diferentes religiões conviviam,
sem que nenhuma delas estruturasse ou saturasse o espaço político; o islã apreciador de imagens
que havia no Afeganistão do século 15, ou o de Massoud, que respeitava as mulheres.
Quando você vai de Peshawar
[cidade paquistanesa perto do
Afeganistão] até o Punjab [Província paquistanesa próxima à Índia], tem a sensação de estar entrando num mundo em que os
conceitos são mais leves, e as obrigações também. Existe um islã
ilustrado, o islã de pessoas como
Meddeb Abdelauab, autor de ""La
Maladie de l'Islam" (a doença do
islã), uma voz que parece ficar
submersa debaixo do vozerio que
acompanha os radicais. Hoje a
guerra no Iraque alimenta a tese
de uma guerra de civilizações, torna inevitável o choque frontal
com o mundo islâmico, mas isso
só acontece porque não temos feito nada em prol desse islã moderado que não é marcado pela obsessão da pureza. Em seu testamento, Mohammed Atta, o líder
do grupo que atirou os aviões
contra as torres gêmeas, fez constar que, se uma mulher tivesse de
tocar seu corpo, e sobretudo seus
genitais, deveria fazê-lo usando
luvas. Para o islâmico radical, a
mulher é impura; ele vê o sexo feminino como um abismo desconhecido que lhe provoca vertigens. A verdadeira guerra de civilizações é interna ao islã, entre
moderados e fundamentalistas.
Pergunta - Se o Paquistão é o ""Estado fora-da-lei" por excelência,
por que os Estados Unidos se voltaram contra o Iraque?
Lévy - Seis meses antes de os Estados Unidos declararem a guerra
a Saddam, eu já tinha dito que esta
seria uma guerra moralmente
correta, mas politicamente equivocada. Libertar o mundo de um
ditador insuportável é bom, mas
tudo se baseava numa mentira
-as armas de destruição em
massa-, sobre uma ingenuidade
democrática -pensar que os soldados americanos seriam recebidos como libertadores- e sobre
um erro estratégico -o Iraque
não era o ""lar" dos terroristas. O
Paquistão é um país gangrenado
por uma dupla ditadura: a dos militares, que ocupam o poder há
anos, e a dos mulás, o islamismo
fundamentalista.
Pergunta - O sr. esteve a ponto de
iniciar uma carreira política, tendo
se candidatado às eleições européias numa Chapa Sarajevo. Na
época, militava pelo chamado ""direito à ingerência".
Lévy - No século 20, o Ocidente
não soube defender fora de suas
fronteiras os valores que considera fundamentais. Cada vez que
precisou escolher entre a paz e a
democracia, sacrificou a segunda.
Em 1915, deixou que os turcos
massacrassem milhares de armênios; nos anos 1930, assistiu impassível à ascensão do nazismo;
em 1936 defendeu a não-intervenção na guerra da Espanha; em
1966 abandonou os sublevados
húngaros à sua própria sorte; em
1968 deixou que os tanques soviéticos se apoderassem de Praga; e,
para concluir, não fez nada para
evitar o massacre de Tiananmen.
Em Sarajevo, não soubemos defender a convivência cultural e étnica que, a nosso ver, define o mosaico europeu. Os sérvios foram
adotados como os melhores policiais, assim como, em sua época,
Franco e Salazar garantiam a
tranqüilidade.
Pergunta - Os EUA parecem
alheios a esse tipo de introspecção.
Lévy - Com os Estados Unidos,
temos valores em comum e uma
idéia semelhante de democracia.
Somos aliados naturais, de maneira muito mais lógica do que
com a Rússia, mas, politicamente,
somos rivais. O presidente Bush
merece ser qualificado como ""assassino em série", mas isso não
quer dizer que o antiamericanismo se justifique. Em sua origem,
trata-se de um comportamento
clássico de homem de direita.
Nietzsche nos ensina a nos interessarmos pela genealogia das
idéias, e uma idéia política nunca
pode ser separada definitivamente de sua origem. Os Estados Unidos são malditos pelos conservadores europeus porque são a encarnação da nação artificial, a materialização do projeto de Rousseau, um grupo de pessoas de origem muito diversa que se reúnem
e assinam um livre contrato. É
uma nação que não se baseia num
território, uma raça ou um sangue, mas em um acordo comum.
Hoje os neoconservadores americanos, pessoas como George
Hill, editorialista do ""Washington
Post", atacam a União Européia,
são profundamente antifranceses
e favoráveis à manutenção das velhas nações, argumentam contra
o ""caldeirão cultural" que deu origem à construção social dos EUA.
Pergunta - Em 1981, com "L'Idéologie Française", o sr. antecipou teses que acabaram sendo adotadas
oficialmente, como a de negar que
o governo de Vichy, do marechal
Pétain, com seu componente anti-semita, representasse a continuidade de um certo pensamento
francês.
Lévy - Esse livro fez com que
queimassem minha imagem em
público, que circulassem panfletos difamatórios contra minha
pessoa, pedindo meu linchamento. Mais tarde, dois fatos vieram
confirmar minhas hipóteses.
Quando eu escrevi o livro, sentia-me como um químico que vê como a soma de certos elementos só
pode resultar em determinado tipo de reação. Contei como a França evoluía, de onde vínhamos, o
que havíamos resolvido mal e o
que tínhamos ocultado, e de tudo
isso se deduzia que o terreno estava maduro para o surgimento da
Frente Nacional, para o ressurgimento dessa corrente populista,
fascistóide, de nacionalismo demagógico e anti-semita.
Pergunta - Com freqüência, qualquer crítica feita ao governo de Israel é imediatamente desqualificada, tachada de voz que se inscreve
num discurso anti-semita.
Lévy - Não, não é exato. O problema é que se compara Sharon a
Hitler ou se fala do Holocausto de
Jenin. Não são exageros, são falsidades. Sharon pode ser visto como inimigo da paz, pode se pedir
sua saída do governo, mas ele não
é um novo Hitler, do mesmo modo que o Exército de Israel não
tem nada a ver com o Exército nazista. É preciso evitar a histeria.
Pergunta - O Estado de Israel é
fundamentado no direito ao retorno, mas esse mesmo direito é negado aos palestinos.
Lévy - Esse direito não pode ser
defendido em abstrato, esquecendo-se de que o Estado de Israel foi
legalmente reconhecido pela
ONU em 1948 e que a resolução
reconhecia o direito a dois Estados, um para os palestinos e outro
para os israelenses. Pretender que
possam retornar agora os palestinos que vivem na Jordânia ou no
Líbano equivale a exigir dois Estados palestinos e o desaparecimento de Israel.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: EUA misturam valores civis e religiosos Próximo Texto: Frase Índice
|