São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2009

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Religião sequestrou movimento civil, diz estudiosa do Irã

Para a antropóloga Fariba Adelkhah, foi a guerra com o Iraque que projetou Khomeini e disseminou a islamização

"Revolta profunda contra a injustiça e pela liberdade" foi apropriada por clérigos e acabou por arrefecer caráter pluralista da insurreição

DA REPORTAGEM LOCAL

A revolução iraniana começou como um movimento civil pluralista e acabou apropriado por forças religiosas, segundo a antropóloga e analista iraniana Fariba Adelkhah, do Centro de Estudos e Pesquisas Internacionais de Paris. Em entrevista à Folha, por telefone, Adelkhah também relativizou o papel do aiatolá Ruhollah Khomeini no processo revolucionário. (SAMY ADGHIRNI)

 

FOLHA - Como surgiu a Revolução Islâmica?
FARIBA ADELKHAH
- No início não se tratava de uma revolução islâmica, mas de um movimento que abraçava todo tipo de correntes -nacionalistas, esquerdistas, sindicalistas, religiosas etc-, unidas contra o regime repressor e cruel do xá. Era uma revolta profunda contra a injustiça e pela liberdade, típica dos movimentos anti-imperialistas e terceiro-mundistas dos anos 70. Mas a desordem e o caos se instalaram após a revolução, e esse cenário acabou beneficiando os clérigos, que eram vistos com uma espécie de referência segura num contexto de incertezas e disputas pós-revolucionárias.
Mas mesmo com os aiatolás no poder, a "islamização" da sociedade só ocorreu anos depois, por impulso da guerra com o Iraque [de 1980 a 1988], que uniu as pessoas em torno da liderança religiosa.
O conflito acabou deslocando temporariamente as reivindicações sociais e igualitárias, mas elas voltaram com tudo.
Não acho que o Irã esteja à beira de uma revolução, até porque as pessoas não querem mais o cenário de caos e acertos de contas inerente a esses processos. Mas a sociedade continua dinâmica e heterogênea, e mesmo entre os clérigos iranianos há uma pluralidade de visões do islã. A cúpula religiosa do Estado sabe lidar de forma pragmática com esse cenário.

FOLHA - A sra. está dizendo que Khomeini não foi o mentor da mudança?
ADELKHAH
- Khomeini era parte de uma corrente muito ampla, mas acabou beneficiando-se da imagem de velhinho religioso alheio às disputas partidárias.
Ele era o único vestígio da unanimidade revolucionária que se rompeu após a queda do regime do xá. E ele acreditava em sua própria soberba, o que lhe dava mais força. Mas, sem a guerra deflagrada pelo Iraque, que uniu o país em torno dele, Khomeini provavelmente jamais teria obtido tanto poder. Foi o conflito que fez a revolução sair dos meios intelectuais urbanos para chegar no campo e nas montanhas.

FOLHA - Qual foi o impacto externo da revolução?
ADELKHAH
- A revolução alavancou o fundamentalismo islâmico na região -no Egito, no Líbano, no golfo Pérsico. O Irã gosta de se ver como o responsável pela proliferação e fortalecimento dos movimentos religiosos, a exemplo do efeito da revolução comunista russa no resto do mundo. Até hoje Teerã mobiliza e apoia forças como o Hizbollah, que lhes são úteis na confrontação com os EUA -embora essas manobras não passem de cócegas para os americanos.
É preciso no entanto relativizar esse quadro. O Irã, que sofreu uma dura guerra e está sob sanções econômicas, não tem poder significativo fora de suas fronteiras. O Hizbollah está mesmo interessado é no Líbano. As forças xiitas no Iraque também são autônomas de Teerã. E o xiismo afegão é muito distante do Irã, que, tirando uma aliança circunstancial com a Síria, hoje está isolado.


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