São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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Fotógrafo paulistano, que acompanhou operações militares dos EUA, relata o cotidiano dos iraquianos, as reações dos soldados americanos e os horrores do pós-guerra para os civis

O Iraque pelas lentes de um brasileiro

MAURÍCIO LIMA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A vida num país em conflito nunca mais será a mesma tanto para seus sobreviventes quanto para nós que o cobrimos. A essa conclusão chegamos eu e Gary Knight, renomado fotojornalista britânico da agência VII, durante uma das gélidas noites do inverno iraquiano que passamos em dezembro passado.
Dividíamos, com mais quatro colegas, um enorme cômodo com um pé-direito de quase dez metros, ao som de três imponentes lustres de cristal que balançavam sobre nossas cabeças, enquanto um grupo de soldados nos incomodava ao jogar basquete no saguão do palácio Saladine, um dos 38 do complexo às margens do rio Tigre que foi ocupado por 4.000 soldados da 4ª Divisão de Infantaria do Exército dos EUA, em Tikrit, 180 km ao norte de Bagdá.
Foram 34 dias surrealistas de internação militar na primeira vez, perto de Tikrit, entre novembro e dezembro, e 29 dias na explosiva Fallujah, o maior bastião da resistência sunita, na segunda vez, em junho passado, com os temidos marines do 2º Batalhão-Primeiros Marines. São lembranças absolutamente impossíveis de serem eliminadas da minha vida.

NA MIRA AMERICANA
O teste psico-emocional começou quando estava em Nassiriah, 280 km ao sul de Bagdá, voltando de uma base militar italiana. Uma cena que impressionava: o céu turquesa, o deserto em 360 graus, o vento rasante e Alá como proteção. À beira da estrada, uma menina estática, como o seu olhar me vendo chegar. De repente, passou um comboio militar americano, proporcionando uma foto da menina, imóvel, com os três irmãos e a mãe, que não parava de me pedir dinheiro. Ao me dirigir ao carro para ir embora, o comboio deu meia-volta e retornou acelerado. Dois tanques se posicionaram, enquanto três jipes se aproximaram com uns dez soldados correndo e gritando em minha direção com o fuzil apontado.
Levantei as câmeras e torci para que não atirassem, pois estava com aparência de árabe -cabelo curto e barbudo-, sem nenhuma identificação de imprensa a não ser o equipamento. A sorte foi que o primeiro soldado que se aproximou estava sereno.
Com meu passaporte em mãos, perguntou-me se eu tinha passagem pela prisão no Brasil, pois a tradicional fotografia do passaporte estava datada. Indignado, só olhei e balancei a cabeça. Mesmo assim, ele ordenou que eu seguisse o comboio de volta à base.
Enquanto um cão farejador vasculhava o carro, passávamos, eu e o pacato motorista iraquiano Rahin, por uma revista vexatória, antes de sermos colocados em uma trincheira por mais de uma hora, sob o sol do meio-dia, até o momento que disseram que estávamos liberados, mas todo o equipamento (câmeras, telefone, modem via satélite e computador) estava confiscado.
Usei todos os argumentos com o prepotente tenente, que nos tratava como suspeitos. Pedi a ele que ligasse para o escritório da France Presse, em Bagdá. Ele concordou, mas já não havia mais bateria no meu telefone porque o aparelho ficou fritando no capô do jipe durante o tempo em que ficamos no buraco, sentados, cabisbaixos e sem diálogo.
A solução foi pedir que ele olhasse todas as fotos para ver que eu estava dizendo a verdade. Ele não se convenceu e apagou algumas fotos -eu ainda era considerado espião. As últimas palavras que me restavam para sair daquela emboscada eram "embedded" (status de jornalistas "embutidos" nas unidades militares) e "Tikrit".
Quando disse a ele que precisava de tudo porque viajaria no dia seguinte para acompanhar as tropas dos EUA na região natal de Saddam Hussein, ele, surpreso, abriu um sorriso amarelo de orelha a orelha e disse que eu estava liberado. E com todo o equipamento. Santo invasor. No caminho de volta ao hotel, recuperei todas as fotos apagadas com um programa no computador.

VIDA NO PALÁCIO
Em Tikrit, fui obrigado a assinar um termo de responsabilidade de oito páginas dizendo que eu estava ciente do risco de acompanhar operações militares e que, caso acontecesse algum acidente comigo, fatal ou não, minha família não teria o direito de processar o governo americano. Era ainda proibido sair do complexo militar por conta própria, consumir bebida alcoólica e ter qualquer tipo de contato amoroso ou sexual com as militares.
No caso de fotografias de soldados feridos, era terminantemente proibido possibilitar qualquer forma de identificação, para que a família do militar fosse informada do que aconteceu por meio do Exército, não pela imprensa.
Nas duas primeiras noites, fui acompanhar o lançamento de bombas e morteiros até Tikrit ficar na penumbra, algo em torno de 15 minutos. Foi uma pequena "demonstração de força em áreas desabitadas para os que resistem em lutar contra o novo Iraque", dizia o ponderado tenente-coronel que comandava a operação, em resposta a morteiros lançados pela insurgência que caíram no complexo na noite anterior e continuariam a cair nos outros dias.
Além das várias patrulhas a pé, com jipes ou tanques, que, geralmente, acabavam com soldados distribuindo pirulitos às crianças após deixarem as casas invadidas, acompanhei várias atividades dentro e fora da base, sobretudo as temidas incursões noturnas em busca de iraquianos procurados e armamento proibido.
Capturados em grandes operações, enquanto eu fotografava livremente -o que não acontece agora, após o escândalo na prisão de Abu Ghraib-, eles eram identificados na nuca, imobilizados com um tipo de lacre de bagagem, ora vendados com pano, ora encapuzados com sacos de náilon.
Minha rotina pessoal, na maior parte daquele inverno iraquiano, incluía três refeições ao dia (não as recomendo a ninguém) e banho a cada quatro ou cinco dias (somente até as 11h30 em dias ensolarados, quando a coluna do palácio fazia sombra no chuveiro e o frio era cortante).

COM OS MARINES
Em Fallujah, barril de pólvora sunita 50 km a oeste da capital, onde os iraquianos insurgentes queimaram quatro civis americanos e penduraram os corpos em uma ponte, em abril passado, acompanhei os marines por mais de um mês no inicio do verão iraquiano, o que significa trabalhar sob um escaldante sol de 45C e beber no mínimo de seis a oito litros de água por dia sem perceber.
Nessa base, parecida com um condomínio de Alphaville, dividia uma das mais de cem casas-padrão, com ruas ao redor de um lago com duas pontes, um píer para pesca e uma pequena mesquita, antigas propriedades de Uday, filho de Saddam morto pelos americanos. O local era premiado, noite sim, noite não, com morteiros vindos da cidade.
No final de junho, a resistência derrubou um helicóptero americano perto de Fallujah, enquanto o posto de controle da entrada da cidade era alvo de metralhadoras e granadas-foguetes. Era o que os americanos queriam para atacar a cidade, que abrigaria o jordaniano Abu Musab Zarqawi, suposto líder da Al Qaeda no Iraque. Em poucos minutos, praticamente todas as companhias deixaram a base para o combate.
A operação começou com bombas de 500 kg despejadas por caças, quatro tanques Abrams e centenas de fuzileiros em posição de tiro espalhados pela entrada de Fallujah por mais de quatro horas, na beira da estrada que liga a Jordânia ao Iraque. A ofensiva, segundo fontes militares, matou 15 insurgentes e feriu 13 marines.

SADDAM CAPTURADO
Em 13 de dezembro de 2003, quando eu soube, por meio de dois militares, que Saddam estava sendo capturado, não conseguia relaxar naquele saco de dormir que fora tão confortável nas 29 noites anteriores, enquanto o ronco de alguns colegas que não sabiam o que estava acontecendo ecoava pelo palácio.
Até aquele momento, sempre éramos autorizados a acompanhar tudo. Mas, para aquela fatídica operação, veio uma exigência militar que nos surpreendeu: só havia três vagas para a imprensa no helicóptero, e os profissionais tinham de ser do mesmo veículo. Após reportarmos a situação às nossas redações em Bagdá, concluímos que haveria privilégio de informação. O Pentágono recebeu alguns faxes de questionamento sobre o procedimento, já que nossos veículos faziam parte do "pool" da Casa Branca e do próprio Pentágono.
Todas as fotografias divulgadas de Saddam com aquele aspecto de náufrago, assim como as imagens de TV, foram feitas e distribuídas pelo Exército americano, o que levanta dúvidas. Além de não haver nenhum jornalista no local para registrar de maneira independente a captura, oficialmente não foi divulgada nenhuma imagem de Saddam sendo retirado do agora famoso buraco.

VOLTA A SÃO PAULO
Após cinco meses de uma vida anormal no Oriente Médio, incluindo a barbárie que foi Gaza, fotografando no limite e consciente do risco, chegou o momento da pausa. Reencontrar a vida "normal" em São Paulo está sendo a mais dura batalha, mas é impossível não pensar na próxima partida. O que mais me motiva a voltar é poder encontrar o menino Ayad, que perdeu uma vista na explosão de uma bomba. Ver aquela lágrima escorrer pelo seu olho queimado ao partir foi algo de engolir em seco e suar frio. A vida foi dura, mas o sentimento brota contra a ignorância. Insh Allah!


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