São Paulo, sexta-feira, 02 de janeiro de 2009

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ARTIGO

Entre a revolução e os interesses

SAMUEL FARBER

Para uma grande parte da esquerda latino-americana, o governo cubano tem representado uma força anti-imperialista e um baluarte dos movimentos progressistas. Mas um exame aprofundado da política externa cubana revela que, embora Cuba tenha seguido uma trajetória de oposição ao imperialismo dos EUA, não aconteceu o mesmo com relação à agressão imperial de outros países.
De fato, em várias ocasiões Cuba se posicionou do lado dos Estados opressores.
Fidel Castro apoiou a invasão soviética da Tchecoslováquia em 1968. Seu apoio a essa invasão foi muito revelador: além da dívida política com a URSS em função da ajuda econômica indispensável desta a Cuba, o líder cubano expôs sua oposição às reformas do governo de Alexander Dubcek, que caracterizou como "fúria liberal".
Castro também apoiou a supressão etíope do movimento nacional eritreu e a invasão soviética do Afeganistão nos anos 1970 e 1980.
Como se explicam as políticas contraditórias de Cuba com relação ao direito das nações à autodeterminação? Em primeiro lugar, é preciso assinalar a longa aliança que Cuba manteve com a URSS. No final dos anos 1960, a URSS, sob pressão dos EUA, teve que aceitar a ideia de que o hemisfério ocidental era parte indiscutível da esfera de influência americana.
Como resultado, Moscou pressionou Havana para que deixasse de dar apoio declarado às guerrilhas latino-americanas. O governo cubano cedeu às exigências soviéticas, embora não completamente, já que continuou apoiando os movimentos insurgentes da América Latina de maneira mais discreta e limitada.

Periferia africana
Isso contribuiu para que Cuba se voltasse cada vez mais à África, uma região na periferia da geopolítica americana, onde as iniciativas cubanas eram mais compatíveis com a política externa soviética. A presença política e militar cubana na África (e em outras partes do mundo) também afetou significativamente as relações de poder entre Cuba e URSS, proporcionando aos líderes cubanos uma margem de negociação maior com os soviéticos.
A estratégia cubana na África era orientada à formação de alianças com o nacionalismo africano. No decorrer de sua implementação, Cuba tomou iniciativas independentes sem consulta prévia com o Kremlin -foi o caso em Angola, por exemplo-, mas, de modo geral, suas iniciativas foram compatíveis com a política soviética.
No caso de Angola, a estratégia cubana permitiu a Cuba exercer um papel muito importante na defesa desse país contra o imperialismo ocidental e seus agentes direitistas da Unita, desferindo um golpe militar e político ao apartheid sul-africano, que apoiava a Unita.
Mas a política de Cuba no conflito entre Eritreia e Etiópia seguiu uma trajetória diferente. Inicialmente, Cuba apoiou a luta dos eritreus para se tornarem independentes do regime etíope, encabeçado pelo imperador Haile Selassie, mas ela mudou sua atitude quando Selassie foi derrotado pelo Dergue, um grupo nacionalista de esquerda favorável à URSS.
Fidel decidiu então unir-se aos nacionalistas etíopes contra os nacionalistas eritreus, argumentando que a luta eritreia poderia destruir a "integridade territorial" da Etiópia, passando por cima do fato de que a Eritreia havia sido um país à parte, que tinha sido colonizado e depois anexado à força pela Grande Etiópia.
É importante acrescentar que, além dos efeitos sobre o conflito eritreu, a aliança indiscriminada que Cuba forjou com o nacionalismo africano derivou em apoios aos regimes sangrentos de Idi Amin em Uganda e Nguema Macías na Guiné Equatorial.
Embora tivesse sido obrigada pelos soviéticos a voltar atrás em seu apoio às guerrilhas latino-americanas, Cuba continuou a ajudar os movimentos anti-imperialistas no continente. Sem dúvida, desempenhou papel importante, por exemplo, na derrocada de Anastasio Somoza, na Nicarágua.
Mas é preciso compreender que seu apoio aos movimentos anti-imperialistas ficou subordinado aos interesses do Estado cubano, conforme as pautas traçadas por seus líderes.

Pragmatismo
Baseado na descrição feita por Jorge I. Domínguez das formas em que o Estado cubano ajustou sua política externa para alcançar seus próprios objetivos, vale assinalar, em primeiro lugar, que em suas relações de Estado a Estado o governo cubano subordinou seu apoio aos movimentos de oposição ao cálculo dos benefícios que podia obter de sua relação com os governos desses países.
Cuba nunca apoiou um movimento revolucionário contra um governo que tivesse boas relações com Havana e que rejeitasse a política dos EUA em relação à ilha, independentemente de suas cores ideológicas. Os casos mais paradigmáticos foram as relações com o México do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e com a Espanha franquista.
Da mesma maneira, Cuba suspendeu a ajuda a movimentos revolucionários ou progressistas nos países que se dispuseram a suspender hostilidades com ela. Talvez o exemplo mais extremo seja a manutenção de relações diplomáticas e comerciais com a Argentina após o golpe militar de 1976.
Nas décadas de 1970 e 1980, Cuba adotou uma política pragmática de estabelecer laços estreitos com qualquer país latino-americano e caribenho disposto a manter relações com Havana. Essa política se tornou mais viável com a decisão tomada pela OEA, em 1975, de suspender suas sanções unilaterais e permitir que cada um de seus Estados integrantes decidisse por conta própria as relações que teria com a ilha.
Depois de 1989, da queda da URSS e da grave crise econômica que esta provocou em Cuba, Havana acentuou a tal ponto essa política que chegou a fechar o Departamento das Américas, que tinha dirigido as atividades clandestinas no continente. Desde então, o governo cubano vem enfatizando sua oposição ao imperialismo americano e ao neoliberalismo mais que ao próprio capitalismo, se bem que, no caso do neoliberalismo de Lula, e apesar das críticas recentes de Fidel Castro ao etanol, ele e Raúl tenham continuado a apoiar o presidente brasileiro.
O apoio cubano aos movimentos de libertação tem sido baseado nos interesses do Estado cubano definidos por seus líderes, e não um compromisso firme com qualquer doutrina revolucionária.

SAMUEL FARBER é professor emérito de Ciências Políticas da City University of New York. Este artigo foi escrito para a edição boliviana do "Monde Diplomatique"

Tradução de CLARA ALLAIN



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