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ARTIGO
Entre a revolução e os interesses
SAMUEL FARBER
Para uma grande parte da esquerda latino-americana, o governo cubano tem representado uma força anti-imperialista
e um baluarte dos movimentos
progressistas. Mas um exame
aprofundado da política externa cubana revela que, embora
Cuba tenha seguido uma trajetória de oposição ao imperialismo dos EUA, não aconteceu o
mesmo com relação à agressão
imperial de outros países.
De fato, em várias ocasiões
Cuba se posicionou do lado dos
Estados opressores.
Fidel Castro apoiou a invasão
soviética da Tchecoslováquia
em 1968. Seu apoio a essa invasão foi muito revelador: além
da dívida política com a URSS
em função da ajuda econômica
indispensável desta a Cuba, o
líder cubano expôs sua oposição às reformas do governo de
Alexander Dubcek, que caracterizou como "fúria liberal".
Castro também apoiou a supressão etíope do movimento
nacional eritreu e a invasão soviética do Afeganistão nos anos
1970 e 1980.
Como se explicam as políticas contraditórias de Cuba com
relação ao direito das nações à
autodeterminação? Em primeiro lugar, é preciso assinalar
a longa aliança que Cuba manteve com a URSS. No final dos
anos 1960, a URSS, sob pressão
dos EUA, teve que aceitar a
ideia de que o hemisfério ocidental era parte indiscutível da
esfera de influência americana.
Como resultado, Moscou
pressionou Havana para que
deixasse de dar apoio declarado
às guerrilhas latino-americanas. O governo cubano cedeu às
exigências soviéticas, embora
não completamente, já que
continuou apoiando os movimentos insurgentes da América Latina de maneira mais discreta e limitada.
Periferia africana
Isso contribuiu para que Cuba se voltasse cada vez mais à
África, uma região na periferia
da geopolítica americana, onde
as iniciativas cubanas eram
mais compatíveis com a política externa soviética. A presença política e militar cubana na
África (e em outras partes do
mundo) também afetou significativamente as relações de poder entre Cuba e URSS, proporcionando aos líderes cubanos
uma margem de negociação
maior com os soviéticos.
A estratégia cubana na África
era orientada à formação de
alianças com o nacionalismo
africano. No decorrer de sua
implementação, Cuba tomou
iniciativas independentes sem
consulta prévia com o Kremlin
-foi o caso em Angola, por
exemplo-, mas, de modo geral,
suas iniciativas foram compatíveis com a política soviética.
No caso de Angola, a estratégia cubana permitiu a Cuba
exercer um papel muito importante na defesa desse país contra o imperialismo ocidental e
seus agentes direitistas da Unita, desferindo um golpe militar
e político ao apartheid sul-africano, que apoiava a Unita.
Mas a política de Cuba no
conflito entre Eritreia e Etiópia
seguiu uma trajetória diferente. Inicialmente, Cuba apoiou a
luta dos eritreus para se tornarem independentes do regime
etíope, encabeçado pelo imperador Haile Selassie, mas ela
mudou sua atitude quando Selassie foi derrotado pelo Dergue, um grupo nacionalista de
esquerda favorável à URSS.
Fidel decidiu então unir-se
aos nacionalistas etíopes contra os nacionalistas eritreus, argumentando que a luta eritreia
poderia destruir a "integridade
territorial" da Etiópia, passando por cima do fato de que a
Eritreia havia sido um país à
parte, que tinha sido colonizado e depois anexado à força pela Grande Etiópia.
É importante acrescentar
que, além dos efeitos sobre o
conflito eritreu, a aliança indiscriminada que Cuba forjou
com o nacionalismo africano
derivou em apoios aos regimes
sangrentos de Idi Amin em
Uganda e Nguema Macías na
Guiné Equatorial.
Embora tivesse sido obrigada
pelos soviéticos a voltar atrás
em seu apoio às guerrilhas latino-americanas, Cuba continuou a ajudar os movimentos
anti-imperialistas no continente. Sem dúvida, desempenhou
papel importante, por exemplo, na derrocada de Anastasio
Somoza, na Nicarágua.
Mas é preciso compreender
que seu apoio aos movimentos
anti-imperialistas ficou subordinado aos interesses do Estado cubano, conforme as pautas
traçadas por seus líderes.
Pragmatismo
Baseado na descrição feita
por Jorge I. Domínguez das formas em que o Estado cubano
ajustou sua política externa para alcançar seus próprios objetivos, vale assinalar, em primeiro lugar, que em suas relações
de Estado a Estado o governo
cubano subordinou seu apoio
aos movimentos de oposição ao
cálculo dos benefícios que podia obter de sua relação com os
governos desses países.
Cuba nunca apoiou um movimento revolucionário contra
um governo que tivesse boas
relações com Havana e que rejeitasse a política dos EUA em
relação à ilha, independentemente de suas cores ideológicas. Os casos mais paradigmáticos foram as relações com o
México do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e com
a Espanha franquista.
Da mesma maneira, Cuba
suspendeu a ajuda a movimentos revolucionários ou progressistas nos países que se dispuseram a suspender hostilidades
com ela. Talvez o exemplo mais
extremo seja a manutenção de
relações diplomáticas e comerciais com a Argentina após o
golpe militar de 1976.
Nas décadas de 1970 e 1980,
Cuba adotou uma política pragmática de estabelecer laços estreitos com qualquer país latino-americano e caribenho disposto a manter relações com
Havana. Essa política se tornou
mais viável com a decisão tomada pela OEA, em 1975, de
suspender suas sanções unilaterais e permitir que cada um
de seus Estados integrantes decidisse por conta própria as relações que teria com a ilha.
Depois de 1989, da queda da
URSS e da grave crise econômica que esta provocou em Cuba,
Havana acentuou a tal ponto
essa política que chegou a fechar o Departamento das Américas, que tinha dirigido as atividades clandestinas no continente. Desde então, o governo
cubano vem enfatizando sua
oposição ao imperialismo americano e ao neoliberalismo
mais que ao próprio capitalismo, se bem que, no caso do neoliberalismo de Lula, e apesar
das críticas recentes de Fidel
Castro ao etanol, ele e Raúl tenham continuado a apoiar o
presidente brasileiro.
O apoio cubano aos movimentos de libertação tem sido
baseado nos interesses do Estado cubano definidos por seus líderes, e não um compromisso
firme com qualquer doutrina
revolucionária.
SAMUEL FARBER é professor emérito de Ciências Políticas da City University of New York. Este artigo foi escrito para a edição boliviana do
"Monde Diplomatique"
Tradução de CLARA ALLAIN
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