São Paulo, domingo, 2 de março de 1997.

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CIÊNCIA REPLICANTE
Chefe da equipe que criou Dolly fala da `velhice' da ovelha e diz que tentará duplicar porco e boi
`Não sabemos se é possível replicar homens'

LUCIA MARTINS
de Londres

VANESSA DE SÁ
VINICIUS TORRES FREIRE
da Reportagem Local

Depois de clonar a ovelha Dolly, o próximo passo do Instituto Roslin, de Edimburgo, na Escócia, será repetir o experimento com bois e porcos, diz Grahame Bulfield, 55, diretor do instituto escocês e chefe da equipe que fez a pesquisa.
``Não sabemos se a técnica vai funcionar em todos os mamíferos ou com outras células, que não as das glândulas mamárias. Por isso, vamos começar a testar.''
Ele nega que o instituto planeje clonar seres humanos e diz que, como detentor da patente da técnica, não vai ceder os direitos para ninguém com esse objetivo.
``Até onde sabemos não há razões médicas que justifiquem o uso da técnica em humanos. Além disso, esse tipo de experiência é ilegal no Reino Unido.''
A seguir, leia trechos da entrevista de Bulfield à Folha.

Folha - Dolly é um bebê ``velho''? Vai morrer mais cedo do que outras ovelhas? Sua células se originaram de uma célula de uma adulta, com material genético mais velho. Então, as células de Dolly são mais velhas também?
Grahame Bulfield -
O núcleo da célula que gerou Dolly tinha seis anos, e ela tem sete meses de vida. Logo, ela tem seis anos e sete meses, mas é difícil precisar. Hoje, ela parece normal. Mas ainda não sabemos o que vai acontecer.
Na medida em que ela ficar mais velha vamos ser capazes de estudá-la melhor. Como usamos uma célula somática (todas os tipos de células que não são sexuais), ela pode ter mais tendência a se deteriorar mais rápido. Mas ainda não sabemos. Não podemos dizer se Dolly é um bebê velho ou não.
Folha - As células mamárias são somáticas, e uma mutação dessas células não é herdada geneticamente. Então, uma mutação no organismo da mãe de Dolly pode ter sido transferida para Dolly?
Bulfield -
Se a célula tiver tido alguma mutação, vai ser transferida. Mas no momento não observamos nada. Não pretendemos estudar isso porque, além de ser muito difícil, pretendemos passar a maior parte do tempo estudando as mudanças causadas pelo envelhecimento em Dolly.
O que é surpreendente na nossa pesquisa é que ela mudou a crença geral. Todos sempre acreditaram que uma vez que as células fossem ``desligadas'' não podiam mais ser ``religadas''. O que foi descoberto na pesquisa é que, se você retirar o núcleo de uma célula mamária ``dormindo'' no tempo certo você pode mudar essa célula e ela pode ser religada a outra. Isso se chama ``reprogramar''.
As células precisam ser ``desligadas'' para poderem ser encaixadas posteriormente, como foi feito no caso de Dolly. Se elas não são colocadas para ``dormir'', as células continuam o seu ciclo de vida. Elas tendem a se dividir para criar novas células -nessa situação elas não podem ser remontadas.
E quando você coloca esse núcleo de volta em um embrião, ele começa a funcionar de novo. E isso é contra todas as leis da biologia. As leis sempre disseram que, uma vez que o núcleo se especializa, ele não pode voltar a ser um embrião.
As células especializadas são as que compõem as diferentes partes do corpo humano e têm funções específicas. Todas elas são originadas de uma única célula embrionária, capaz de se dividir para formar o organismo. Nós mostramos que esse núcleo pode voltar a funcionar como um embrião, se você usar o núcleo no estágio correto.
Folha - Por que vocês não fizeram a experiência com o material de apenas uma ovelha -tanto o óvulo como a célula mamária? Por algum problema técnico?
Bulfield -
A doadora do núcleo genético era branca e grande e o óvulo veio de uma ovelha pequeno e de cara preta. Se o clonado tivesse cara preta, saberíamos rapidamente que tínhamos errado. Não há nenhum problema em fazer com apenas um animal, foi apenas mais conveniente.
Folha - O artigo diz que ainda não estão claros os mecanismos de funcionamento da reprogramação da célula e que são necessárias mais pesquisas para definir o momento exato de transferência do núcleo de uma célula para a ``hospedeira''. Esses seriam os problemas para fazer clonagem humana?
Bulfield -
Deixa eu te dizer o que vamos fazer agora para depois comentar clonagem humana. Não sabemos se a técnica vai funcionar em todos os mamíferos ou com outras células que não mamárias. Por isso, vamos começar a testar.
Primeiro, veremos se isso funciona com outros tipos de células. Depois, vamos tentar aplicar em porcos e bois. Até onde sabemos não há razões médicas que justifiquem o uso da técnica em humanos. Além disso, esse tipo de experiência é ilegal no Reino Unido. Por isso, não vamos permitir que ninguém, em parte alguma do mundo, use a técnica para fazer teste em humanos.
Folha - Há outros institutos fazendo pesquisas semelhantes?
Bulfield -
Existem cerca de sete ou oito no mundo trabalhando nisso. A maioria está tentando fazer clones de embriões a partir de células totalmente indiferenciadas. Até onde nós sabemos, somos o único laboratório que usou células diferenciadas.
Usamos uma abordagem mais correta, mas acho que, dentro de um ou dois anos, esse resultado seria atingido por qualquer um desses institutos.
Folha - Qual são os benefícios da clonagem de animais?
Bulfield -
Há dois grupos de uso: pesquisa médica e criação de animais. Em pesquisa médica, podemos, por exemplo, estudar mais e criar, modificando os genes das células clonadas, tecidos e órgãos em animais mais apropriados para serem doados para o humanos.
Em criação de animais, podemos clonar um vaca considerada grande produtora de leite, por exemplo. Mas tudo isso tem de ser pesquisado e com cuidado, para evitar que um animal com uma doença não detectada seja clonado. Além disso, você não poderia fazer isso com todos os animais. Teria de deixar uma parte da população de animais se reproduzirem normalmente, que continuariam fazendo a seleção natural.
Folha - Quem financia o Instituto Roslin? E quanto vocês gastaram na pesquisa?
Bulfield -
É difícil calcular quanto foi gasto e prefiro não chutar número algum. A pesquisa com a Dolly faz parte de um longo trabalho. O instituto é financiado em parte pelos ministérios da Ciência e da Agricultura (54%), e o resto vem de contratos com empresas privadas, instituições, da União Européia etc.
Folha - O artigo da ``Nature'' diz que não há se pode excluir a possibilidade de haver células matrizes indiferenciadas misturadas às células mamárias. Isto é, pode ter sido usada uma célula adulta mais fácil de ser clonada, diferente da maioria das outras células adultas. Isso não significa que não se pode excluir a possibilidade de Dolly ter nascido de uma dessas células, neste caso indiferenciada?
Bulfield -
É verdade que, por causa da gravidez da ovelha da qual retiramos a ``célula-mãe'' de Dolly, junto com as células mamárias há células matrizes. Essas células matrizes dão origem, no organismo desenvolvido, a certos conjuntos de células do corpo. Mas uma célula matriz em uma célula mamária é diferenciada porque ela é uma matriz da célula mamária e não do embrião.
Ela são células que morrem rápido e, na verdade, muito diferenciadas. Não importa muito se elas são diferenciadas ou não, se conseguirmos pegá-las das células mamárias e reprogramá-las.
Folha - Mas como é feita essa ``reprogramação''? Como essa nova célula, que era adulta e especializada, é ativada para funcionar como um embrião?
Bulfield -
Há uma ano, nós publicamos um artigo na ``Nature'', resultado de um estudo em que nós transferimos núcleos de células embrionárias para embriões. E tentamos todas as maneiras possíveis para tornar esse processo mais eficiente. Temperaturas diferentes, tempos diferentes, tudo isso para ter certeza que tanto a célula doadora quanto a ``hospedeira'' estavam hibernando. Foi baseado nessa experiência que fizemos as experiências com as células mamárias.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
da Reportagem Local

Qual a diferença entre um clone e um gêmeo idêntico?
Harry Giaffin, diretor-assistente do Instituto Roslin, que criou Dolly, diz que não há diferenças. Gêmeos univitelinos seriam, na verdade, clones, pois são formados exatamente a partir da mesma célula, a qual em certo momento dá origem a duas células embrionárias idênticas.
Gêmeos bivitelinos, diferentes, são resultado da fecundação de dois óvulos diferentes por dois espermatozóides diferentes.
O geneticista Fernando Reinach, professor-titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, diz que há uma pequena diferença entre Dolly e a ovelha que cedeu o núcleo da célula mamária para criá-la.
Segundo Reinach, nem todo o material genético de Dolly veio dessa célula. O núcleo contém o DNA, que define as características de um indivíduo. Mas há um tipo de DNA também fora do núcleo, o DNA mitocondrial, que fica no citoplasma da célula -entre a membrana (a ``casca da célula'') e o núcleo.
A membrana e o citoplasma, e portanto o DNA mitocondrial, vieram de outra ovelha, a que doou o óvulo. Esse DNA determina características celulares importantes, mas não perceptíveis exteriormente. Para Reinach, portanto, as características de Dolly seriam resultado de uma grande parte do material genético de uma ovelha, e de uma pequena parcela de outra. Dolly não é ``gêmea'' de sua mãe.
É possível fazer um clone de um animal morto?
Harry Giaffin, do Instituto Roslin, diz que não. Para clonar, seria necessário que o núcleo da célula estivesse intacto e, após a morte, ele se deteriora rapidamente. Existe uma possibilidade teórica de fazer cópias a partir das células retiradas de um organismo ainda vivo e estocadas.
Segundo Fernando Reinach, existem estocadas, por exemplo, linhagens de células cancerosas de uma mulher que morreu há 50 anos. As células são colocadas em cultura (``um molho bioquímico'') e depois congeladas. Essas células podem ``voltar à vida'', mas não se sabe se estariam em condições perfeitas.
Uma tentativa de fazer um clone a partir dessas células poderia não funcionar, o que só é possível de se verificar na prática.
Se fosse feito um clone perfeito de uma pessoa, as duas seriam absolutamente idênticas física e psicologicamente?
É quase impossível. Mesmo a aparência física poderia ser ligeiramente diferente, como no caso de gêmeos univitelinos (gerados a partir de uma única célula).
As características originais de um indivíduo são determinadas por seus genes, herdados dos pais, ou de uma célula clonada. Isto é, o seu genótipo. Mas as características observáveis de um indivíduo, o seu fenótipo, dependem da interação de seus genes com o ambiente em que vive.
Isso quer dizer que o ambiente pode ajudar a determinar algumas características físicas: um gêmeo, ou um clone, podem ter seus genes alterados por mutações, causadas pelo ambiente.
Clones têm as sensações e memórias do indivíduo copiado?
Absolutamente não. As memórias são arquivadas no cérebro de um indivíduo desenvolvido e elas não afetam os genes. Logo as características ligadas à memória, emoção e sensação não podem ser transmitidas para os filhos ou para os clones.
Os clones são férteis? Teoricamente não existem motivos para acreditar que não. Mas, como ainda não se conhecem adultos gerados por células adultas, pode ser que ocorra algum problema. Teoricamente, as células clonadas de um indivíduo adulto também são ``velhas'', o que talvez pudesse causar algum problema na capacidade reprodutiva do clone.
A ovelha Dolly tem pai?
No caso do clone Dolly não há um pai biológico. Não houve reprodução sexual, que funde as células sexuais masculinas e femininas para formar um novo ser vivo. Dolly foi criada com parte de uma célula mamária, que lhe forneceu quase todo os genes, e com parte de um óvulo de outra ovelha adulta. Na verdade, ela têm duas ``mães-irmãs''. Se o óvulo e o núcleo da célula mamária tivessem vindo de só uma ovelha, Dolly teria apenas uma ``mãe-irmã gêmea''.
É possível fazer clones de machos e de fêmeas?
Em termos. Poderia ser utilizado o núcleo de uma célula masculina, mas seria preciso encaixá-lo num óvulo, célula feminina, para que o novo conjunto se desenvolvesse em um embrião.

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