São Paulo, domingo, 2 de março de 1997.

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ARTIGO
Avanços devem ser analisados à luz da ética

MOACYR SCLIAR
especial para a Folha

Marx, diz-se, tentou dedicar a primeira edição de ``O Capital'' a Charles Darwin. O cientista teria recusado. Mesmo fictícia, a história é simbólica: antecipa a controvérsia que se desenrolaria ao longo do século e que tem um de seus pontos culminantes na recente clonagem de ovelhas por pesquisadores escoceses.
A admiração de Marx por Darwin tinha razões científicas -Marx considerava-se um cientista da história- e políticas: o darwinismo representava uma revolução cultural, colocando em xeque o criacionismo e a própria religião, o ópio dos povos, na expressão de Marx. Terminaram aí, contudo, as afinidades.
Porque a sobrevivência do mais apto, ponto crucial na teoria darwiniana, era, ao fim e ao cabo, um argumento a favor da competição capitalista. O processo de seleção natural poderia ser visto como a ``mão invisível'' capaz de condicionar a manutenção de uma estirpe de vencedores na árdua luta imposta pelas forças do mercado.
Isso não passou despercebido aos líderes que assumiram o poder na ex-União Soviética. Stálin, sobretudo, exigiu de seus cientistas que demonstrassem uma tese oposta: de que as características individuais eram condicionadas pela existência social, e que podiam ser transmitidas de uma geração a outra. Era o ``neolamarckismo'', uma idéia que ia buscar raízes em Lamarck, defensor da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos.
A melhora da espécie humana seria possível, sim, através de uma nova sociedade que, modificando os indivíduos, modificasse também a sua progênie.
Dois nomes destacaram-se nessa linha de raciocínio, Mitchurin e Lissenko. O último, principalmente, adquiriu tal poder que passou a controlar as ciências biológicas na ex-URSS, principalmente no que dizia respeito à agricultura. Os resultados foram catastróficos. Os vegetais não se submetiam à doutrinação, e as colheitas diminuíram tanto que os soviéticos foram obrigados, durante décadas, a importar cereais, inclusive do inimigo ideológico, os EUA.
A controvérsia, porém, ficou. Girava em torno do binômio "nature-nurture", ou seja, natureza de um lado, condições socioeconômicas e culturais de outro. Biologia não é destino, diziam os pensadores de esquerda, nem existe essa coisa chamada natureza humana, que o mais das vezes se manifesta sob a forma de egoísmo e agressividade.
A hereditariedade pode existir, mas desempenha um papel menor na estrutura da personalidade. Conceitos como o de raça, baseados em aspectos biológicos, são instrumentos de dominação, quando não de extermínio. O conceito de raça provou-se, de fato, catastrófico, como o demonstrou a Segunda Guerra Mundial. Mas novas formas de pensamento biológico surgiram; por exemplo, a etologia, ciência vinculando o comportamento a determinantes biológicos. A engenharia genética veio provar que é possível interferir na hereditariedade sem recorrer a modificações sociais. A clonagem, criando um ser inteiramente novo com características predeterminadas é o último, e mais assustador passo, nessa escalada.
Corresponderá essa descoberta a uma derrota do pensamento de esquerda? Estará Darwin chutando definitivamente Marx? As reações à clonagem provam que não. Afinal, o ser humano é um ser social, não apenas biológico.
Qualquer intervenção biológica tem de ser, em última análise, avaliada por critérios sociais. Mesmo que a biologia tenha o poder de determinar características humanas, compete à sociedade avaliar se tais características são compatíveis com a dignidade de cada pessoa, e procurar modificá-las se for o caso.
Negar os avanços biológicos não faz sentido. Analisá-los à luz da ética e da decência é o desafio de nosso tempo. Afinal, não somos um rebanho de ovelhas que se deixe conduzir passivamente. O mínimo que podemos fazer é balir o nosso protesto.

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