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ARTIGO
Avanços devem ser analisados à luz da ética
MOACYR SCLIAR
especial para a Folha
Marx, diz-se, tentou dedicar a
primeira edição de ``O Capital'' a
Charles Darwin. O cientista teria
recusado. Mesmo fictícia, a história é simbólica: antecipa a controvérsia que se desenrolaria ao
longo do século e que tem um de
seus pontos culminantes na recente clonagem de ovelhas por
pesquisadores escoceses.
A admiração de Marx por Darwin tinha razões científicas
-Marx considerava-se um cientista da história- e políticas: o
darwinismo representava uma
revolução cultural, colocando
em xeque o criacionismo e a própria religião, o ópio dos povos,
na expressão de Marx. Terminaram aí, contudo, as afinidades.
Porque a sobrevivência do
mais apto, ponto crucial na teoria darwiniana, era, ao fim e ao
cabo, um argumento a favor da
competição capitalista. O processo de seleção natural poderia
ser visto como a ``mão invisível''
capaz de condicionar a manutenção de uma estirpe de vencedores na árdua luta imposta pelas forças do mercado.
Isso não passou despercebido
aos líderes que assumiram o poder na ex-União Soviética. Stálin, sobretudo, exigiu de seus
cientistas que demonstrassem
uma tese oposta: de que as características individuais eram condicionadas pela existência social,
e que podiam ser transmitidas de
uma geração a outra. Era o
``neolamarckismo'', uma idéia
que ia buscar raízes em Lamarck,
defensor da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos.
A melhora da espécie humana
seria possível, sim, através de
uma nova sociedade que, modificando os indivíduos, modificasse também a sua progênie.
Dois nomes destacaram-se
nessa linha de raciocínio, Mitchurin e Lissenko. O último,
principalmente, adquiriu tal poder que passou a controlar as
ciências biológicas na ex-URSS,
principalmente no que dizia respeito à agricultura. Os resultados
foram catastróficos. Os vegetais
não se submetiam à doutrinação, e as colheitas diminuíram
tanto que os soviéticos foram
obrigados, durante décadas, a
importar cereais, inclusive do
inimigo ideológico, os EUA.
A controvérsia, porém, ficou.
Girava em torno do binômio
"nature-nurture", ou seja, natureza de um lado, condições socioeconômicas e culturais de outro. Biologia não é destino, diziam os pensadores de esquerda,
nem existe essa coisa chamada
natureza humana, que o mais
das vezes se manifesta sob a forma de egoísmo e agressividade.
A hereditariedade pode existir,
mas desempenha um papel menor na estrutura da personalidade. Conceitos como o de raça,
baseados em aspectos biológicos, são instrumentos de dominação, quando não de extermínio. O conceito de raça provou-se, de fato, catastrófico, como o demonstrou a Segunda
Guerra Mundial. Mas novas formas de pensamento biológico
surgiram; por exemplo, a etologia, ciência vinculando o comportamento a determinantes
biológicos. A engenharia genética veio provar que é possível interferir na hereditariedade sem
recorrer a modificações sociais.
A clonagem, criando um ser inteiramente novo com características predeterminadas é o último, e mais assustador passo,
nessa escalada.
Corresponderá essa descoberta
a uma derrota do pensamento de
esquerda? Estará Darwin chutando definitivamente Marx? As
reações à clonagem provam que
não. Afinal, o ser humano é um
ser social, não apenas biológico.
Qualquer intervenção biológica tem de ser, em última análise,
avaliada por critérios sociais.
Mesmo que a biologia tenha o
poder de determinar características humanas, compete à sociedade avaliar se tais características são compatíveis com a dignidade de cada pessoa, e procurar
modificá-las se for o caso.
Negar os avanços biológicos
não faz sentido. Analisá-los à luz
da ética e da decência é o desafio
de nosso tempo. Afinal, não somos um rebanho de ovelhas que
se deixe conduzir passivamente.
O mínimo que podemos fazer é
balir o nosso protesto.
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