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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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BAGDÁ NA MIRA

De acordo com Thomas Carothers, especialista em promoção da democracia, projeto dos EUA não é realista

"Será muito difícil democratizar o Iraque"


A tradição de violência política no Iraque, exacerbada durante o governo de Saddam, (...) dificultará a democratização


MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Os EUA não deverão ter sucesso em sua intenção de democratizar o Iraque -após a provável deposição do ditador Saddam Hussein- porque o país não tem tradição de pluralismo político, apresenta graves divisões étnicas e religiosas e possui uma economia dominada pela renda gerada pela exportação do petróleo, o que facilita a concentração de poder em torno de uma elite. A análise é de Thomas Carothers, uma das maiores autoridades do planeta em promoção da democracia, que dirige o Projeto Democracia e Estado de Direito, do Carnegie Endowment for International Peace (Washington). Ele é autor de, entre outras publicações, "Aiding Democracy Abroad: The Learning Curve" (ajudando a democracia no exterior: a curva do aprendizado).
Leia a seguir sua entrevista, por telefone -de Argel, capital da Argélia-, à Folha.


Folha - O sr. acredita que o Iraque possa ser democratizado, como preconiza o governo dos EUA?
Thomas Carothers -
Em todos os países, existe a possibilidade da democratização do sistema político. Não creio que, em tese, haja uma ideologia, uma cultura ou uma tradição que impeça a democratização de um Estado.
Por outro lado, o Iraque é um país que não está em boas condições para tornar-se democrático por algumas razões. Primeiro, mesmo que os EUA venham a ter sucesso em sua intenção de remover Saddam do poder, o país continuará a não ter nenhuma tradição de pluralismo político. Segundo, a sociedade iraquiana permanecerá bastante dividida étnica e religiosamente.
Terceiro, a economia do país é dominada pelo petróleo, o que, ao menos nos países em desenvolvimento, tem impedido a consolidação da democracia, pois o petróleo acaba criando uma elite que busca manter-se no poder com todas as suas forças para continuar tirando proveito da receita que ele gera. Assim, geralmente, a concentração do poder econômico numa só fonte acarreta a concentração do poder político em torno de um só grupo.
Ademais, a tradição de violência política existente no Iraque, que foi exacerbada durante o governo de Saddam, também constitui um aspecto que dificultará a democratização da cena política.

Folha - Não seria etnocêntrico pensar que a democracia pode ser exportada, pois se trata de um conceito eminentemente ocidental? Ou ela pode ser positiva para todos independentemente das tradições de cada sociedade?
Carothers -
É bom para todos ter a possibilidade de escolher seus líderes e viver num sistema em que o governo tem de respeitar certos limites de seu poder, não podendo, assim, abusar da população nem maltratar os opositores.
Se for vista como um sistema de escolha política, no qual a população tem o direito de ajudar a eleger as pessoas que a comandarão politicamente, a democracia será positiva para todos. Aspirações por liberdade existem em inúmeras culturas, sejam elas ocidentais ou não. Por outro lado, não falo aqui das formas específicas das democracias eletivas.
Estas, que podem ir de um sistema com duas Casas no Legislativo a um com apenas uma, por exemplo, não são necessariamente aplicáveis a todas as sociedades. Quem acredita que a exportação da democracia seja uma iniciativa etnocêntrica tende a misturar as formas institucionais da democracia com seus princípios centrais. Estes, sem dúvida, podem ser considerados universais. Já viajei bastante, mas nunca conheci uma sociedade em que as pessoas gostassem da tortura ou da falta de liberdade de escolha.

Folha - Alguns especialistas argumentam que, para manter-se estável, o Iraque precisa de um regime autoritário, já que há muita rivalidade entre seus grupos étnicos e religiosos. O que o sr. pensa disso?
Carothers -
É verdade que, depois que Saddam for deposto, haverá, no Iraque, a necessidade da instalação de um sistema em que haja um líder forte para manter o país inteiro e relativamente estável. Essa pessoa deverá ter muita força política e muito poder para conseguir realizar essa missão.
Isso não significa, contudo, que o Iraque precise de um sistema brutal. O país precisará de alguém com uma força política considerável e com legitimidade aos olhos da população para manter a ordem. Provavelmente, militares americanos, auxiliados por outras forças internacionais, venham a desempenhar esse papel no início da transição política.
Em seguida, haverá a fase mais complexa da transição, quando os militares internacionais não vão querer mais ficar no país e terão de ser substituídos por um líder local. Não será fácil encontrar pessoas capazes de cumprir essa missão na sociedade iraquiana, pois a legitimidade não é algo que aparece do nada. Essa tarefa será muito difícil para os americanos.
Como sabemos, no Afeganistão, a situação ainda não está sob controle, e, se as forças internacionais partirem, o governo central cairá. O governo de Hamid Karzai não é considerado legítimo por várias facções da sociedade afegã, o que o torna praticamente inviável.
Por outro lado, no Iraque, não existe a tradição da existência de chefes de guerra, que controlam partes da sociedade. O Afeganistão tem uma sociedade descentralizada, enquanto, no Iraque, há uma tradição bem mais centralizadora. A dúvida é saber quem será a pessoa que terá habilidade para concentrar o poder e, ao mesmo tempo, manter-se legítima aos olhos da população.

Folha - Após a queda de Saddam, poderá haver uma espécie de efeito dominó, gerando uma onda de democratização no Oriente Médio, como sustentam alguns analistas?
Carothers -
Não, de jeito nenhum. Trata-se de uma idéia sedutora, mas há alguns problemas em relação a ela. Na maioria dos países do Oriente Médio, há uma espécie de regime semi-autoritário. Existe um bloqueio político, e o partido dominante permite algumas liberdades, porém não quer abrir muito a sociedade, pois teme que os extremistas islâmicos ganhem força demais.
Se houver um conflito contra o Iraque, os extremistas ficarão mais fortes inicialmente, visto que deverá ocorrer um aumento do antiamericanismo. Isso criará muita tensão política em alguns países, como a Argélia e o Egito, e levará os partidos dominantes a reduzir o espaço político, restringindo as liberdades e impondo uma maior vigilância. Assim, inicialmente, haverá menos democracia no Oriente Médio.
Ademais, a idéia de que esses governos e essas sociedades finalmente verão um belo exemplo de democracia no Iraque e sentirão uma vontade terrível de copiar o exemplo iraquiano é absolutamente tola e ingênua. A metade dos líderes políticos dos Estados do Oriente Médio viveu em Paris ou em Londres e conhece bem a democracia. Contudo eles não conseguem ou não querem implementá-la em seus países.

Folha - O antiamericanismo tende a aumentar no mundo árabe e no muçulmano?
Carothers -
Atualmente, o antiamericanismo está num nível muito elevado em todo o Oriente Médio. A situação é bastante tensa, e as pessoas não entendem por que os EUA querem travar uma guerra que é contrária às leis internacionais e provocará ao menos dezenas de milhares de mortes.
Se a guerra for rápida e bem-sucedida, a opinião pública na região não deverá piorar muito. Todavia, se ela não for como os americanos estão esperando, haverá um recrudescimento do antiamericanismo. Se, diariamente, as TVs mostrarem imagens de iraquianos mortos e da destruição de Bagdá, a situação também se agravará bastante.
Por outro lado, se as autoridades americanas tiverem a sensibilidade de tratar seriamente do problema israelo-palestino após a deposição de Saddam, o antiamericanismo poderá ser contido. Isso sobretudo se a guerra não começar a demorar demais. Tudo depende do modo como os EUA agirão. Se Washington não souber forçar os israelenses a oferecer um acordo de paz razoável aos palestinos, haverá uma geração de árabes que odiarão os EUA.


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