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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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IRAQUE NA MIRA

Para o reputado historiador britânico, elite republicana crê lutar pela sobrevivência das instituições americanas

"Conflito parece inevitável", diz Garton Ash

RODRIGO UCHÔA
DA REDAÇÃO

"Saddam Hussein apresentou à ONU a maior nota de suicídio da história", diz o historiador britânico Timothy Garton Ash, 57, diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford (Saint Anthony).
Considerado um dos maiores especialistas em história européia no mundo, Garton Ash crê que o sentimento de antiamericanismo no continente europeu não é o resultado de uma fratura permanente. "Vamos continuar rindo uns dos outros."
Entre seus livros estão "Nós, o Povo" (Companhia das Letras), sobre o fim do comunismo na Europa, e "History of the Present" (Penguin), sobre os países da Europa Central nos anos 80 e 90, combinando jornalismo e história. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que ele deu à Folha por telefone.


Folha - Há ainda uma chance de não haver uma intervenção militar liderada pelos EUA no Iraque?
Timothy Garton Ash -
São remotas. Eu já disse que o relatório de armas que Saddam Hussein apresentou às Nações Unidas, com suas mais de 12 mil páginas, foi a maior nota de suicídio da história. Apesar de todos os argumentos antiguerra de que esse conflito se daria por petróleo, para garantir a reeleição do presidente Bush, para desviar a atenção do fracasso de capturar Osama bin Laden, para ajudar Israel etc., eu não tenho dúvidas de que a elite republicana dos EUA vê esses desdobramentos como mais um passo da necessária guerra ao terrorismo, para garantir a própria sobrevivência da América.
Isso pode até não estar absolutamente claro para grande parte da população, mas está entranhado no pensamento dessa elite que agora está no poder. Por isso creio na inevitabilidade desse conflito: o governo crê estar lutando pela própria sobrevivência das instituições. Podemos dizer que já está sendo travada uma guerra.

Folha - A oposição de países importantes da Europa, como Alemanha e França, não ajudam a criar um sentimento de antieuropeísmo dentro dos EUA?
Garton Ash -
Alguns estereótipos acabam sendo reforçados, mas são resultado apenas de uma irritação dirigida a esta situação presente. Não creio que perdurem ou se espraiem para além do presente. Não há um desagrado tão grande com os europeus assim, há apenas o que as grandes potências gostam de repetir: falam demais sem ter poder para sustentar suas posições. A atitude do americano médio chega a ser mais de indiferença em relação aos europeus. O americano não pensa muito no europeu, pois ele não faz realmente parte de sua vida, de seus problemas.
Os americanos continuarão a rir do que chamam de "fraqueza européia", baseados mais no estranhamento de uma cultura diferente do que num debate político sério, de antagonismos sérios. Assim, do mesmo modo, os europeus vão continuar a fazer graça de Bush e do "estilo faroeste".
Como eu não me canso de repetir, a luta contra o comunismo serviu de solda entre os EUA e a Europa. O que tem de se cuidar é que a política para o Oriente Médio não sirva de desagregador tão forte para demolir essa aliança definitivamente.

Folha - Mas já não há um antiamericanismo crescente na Europa?
Garton Ash -
É difícil a distinção entre a crítica pontual e específica em relação às atitudes de Washington nessa crise e uma hostilidade mais profunda.
Na Europa, eu não creio que essa hostilidade profunda seja tão presente. Em outras partes do mundo, como na América Latina, ela é mais passional.

Folha - O Reino Unido, em seu apoio ferrenho às posições americanas, não está correndo o risco de se ver isolado na União Européia?
Garton Ash -
Uma coisa é certa nessa crise: a unidade da Europa, tão propalada, mostrou que tem muito caminho a percorrer. Esse deve ser o grande teste da união, tentar chegar a uma posição que coloque na mesma frente os três líderes que mostram três visões diferentes do mundo e de como seus países se inserem nele: Schröder, Chirac e Blair.

Folha - O sr. sente que está se criando uma divisão entre a "velha Europa" (os países ocidentais) e a "nova Europa" (os países do antigo bloco comunista), como afirmou o secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld?
Garton Ash -
Há uma enorme diversidade de Europas, não podemos falar numa divisão dual Leste-Oeste. Essa divisão foi mais fruto da Guerra Fria do que outra coisa. A sensação de uma unidade no mundo da Europa Oriental, por exemplo, quando sob o regime comunista não é verdadeira.
Certamente, a tentativa do secretário da Defesa foi criar a sensação de que os países do ocidente europeu poderiam ficar mais isolados que os ex-comunistas, que tiveram os EUA como exemplo para se contrapor ao fechado regime de Moscou. Mas, daí a dizer que há um bloco homogêneo identificado com os EUA, é apenas uma escalada retórica. Apela-se para um sentimento de Guerra Fria e para uma frustração que muitos desses países sentem.
Quando os países do Leste começaram a ver que realmente iriam se tornar membros da União Européia, uma grande ilusão apareceu: "Vamos alcançar a prosperidade, crescer rápido". Essas ilusões vão se dissipando, pois o caminho é duro. Talvez o discurso de Rumsfeld tenha algum reflexo nesses insatisfeitos, mas não mudará a balança de poder na região.

Folha - Essa desilusão então não significaria o fracasso dessa Europa unida?
Garton Ash -
Não. Esses países tem de criar uma identificação com as instituições européias, o que não quer dizer uma identificação nacional européia. Para que a junção desses países do Leste dê certo, as línguas e as culturas terão de ser preservadas.


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