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BAGDÁ
Rotina começa a ser retomada, com a reabertura de lojas e a circulação de ônibus e táxis na cidade
Capital aprende a conviver com a guerra
Barracas reaparecem nas calçadas. As mercearias têm estoque, e não falta farinha às padarias. Os açougueiros continuam a cortar seus filés
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PATRICE CLAUDE
DO "LE MONDE", EM BAGDÁ
Entre dois perigos, Hossein
L. e sua família optaram pelo
menor. É verdade que o canto de
casa empoeirada no qual vivem
há uma semana, entre roupas e
comida, ameaça desmoronar a
qualquer momento.
Construído há mais de um século, o imóvel já tinha sido condenado pela prefeitura por estar em
más condições. Mas ele possui
uma grande vantagem: sua localização diante da Al Kadhimieh, a
grande mesquita xiita que há cinco séculos lança seus quatro magníficos minaretes ao céu. Salvo
acidentes, é muito pouco provável que os "libertadores" americanos a bombardeiem.
"Minha casa habitual se encontra em ótimo estado e fica a pouca
distância daqui", explica Hossein.
"Mas ela fica perto demais de alvos que os porcos anglo-saxões já
bombardearam duas vezes nos
últimos dias, sendo que posso jurar a você que não há mais ninguém lá há semanas."
Hossein, sua mulher e seus seis
filhos não são os únicos levados,
com seus pertences, para as ruelas
desse bazar ao mesmo tempo miserável e cheio de vida, onde
crianças jogam bola em meio ao
lixo que se acumula na rua.
"Os milicianos passaram no
nosso bairro e avisaram que seria
perigoso permanecermos em nossas casas", diz
Hossein. "Disseram que podíamos escolher. Se
quiséssemos partir, a prefeitura
nos encontraria
alojamentos de
emergência, como
este."
À medida que o
tempo passa e que
os habitantes de
Bagdá se acostumam às explosões
esporádicas, mas
diárias, de bombas e mísseis
-que continuam
a chover sobre a
cidade, de dia e à
noite-, a vida vai sendo retomada aos poucos.
Nas grandes avenidas do centro
de Bagdá, no último domingo, 11º
dia da guerra, cerca de um quarto
das lojas e dos restaurantes já tinham reaberto suas portas e posto suas mesas. Não havia mais
tempestade de areia, mas o tempo
estava cinzento e uma brisa fresca
esfriava o ar.
Na estação rodoviária, os ônibus para Basra, Najaf e Kerbala,
ao sul, e Mossul e Kirkuk, ao norte, continuam a partir a toda hora,
sempre repletos de passageiros.
Os ônibus municipais e os táxis
públicos e particulares se multiplicam nas ruas, e, com eles, os
engarrafamentos de trânsito.
Na avenida Bab Al Murad, cuja
larga faixa de asfalto se estende até
a mesquita Al Kadhimieh, os vendedores do delicioso doce "dehineh" reapareceram nas calçadas,
assim como as barracas de refrigerantes, chá preto e frutas. As
mercearias têm estoque, e não falta farinha às padarias. Os açougueiros continuam a cortar seus
filés de carneiro e carne de boi.
Os preços das mercadorias não
subvencionadas pelo Estado estão
subindo, contrariamente ao que
acontece com os da farinha, do
óleo, do açúcar e de derivados do
leite, que foram congelados ou
mesmo reduzidos. Há mais mendigos do que nunca nas ruas.
Qudayer, um dos raros vendedores de ouro que recentemente
reabriu sua loja no bazar local,
diz: "Tenho comprado bem mais
ouro do que as jóias que vendo".
Não deve ser o caso de todos os
seus colegas, já que o preço do ouro vem subindo: cinco gramas do
metal custavam 115 mil dinares
antes da guerra, hoje valem 135
mil (cerca de R$ 220). Em Bagdá,
como em todo lugar, o ouro é
uma moeda sempre forte.
Mas os habitantes de Bagdá não
estão morrendo de fome. O comerciante Mahmoud já havia dito
na feira de legumes: "Nossos pedidos de frutas e legumes continuam a chegar de Basra e de outros lugares".
Na sexta-feira passada, sete jornalistas italianos vindos do Kuait
-e que foram presos por soldados iraquianos na saída de Basra e
enviados até Bagdá sem escolta-
contaram ter percorrido os 500
km que separam as duas maiores
cidades do Iraque sem terem visto
"nenhum sinal de combate". O
mínimo que se pode dizer é que é
uma guerra curiosa.
No bazar Al Aramyeh, o famoso
"mercado de ladrões" da praça Al
Tahrir, no centro, dezenas de vendedores clandestinos que se livram aqui de velhos aparelhos de
rádio e TV, além de gravadores de
origem duvidosa, dizem estar fazendo ótimos negócios.
Othman, um sudanês idoso,
confirma: "Os negócios vão bem.
Os preços quase dobraram. As
pessoas querem ouvir as notícias
do mundo, você entende".
Ahmed, que vende videocassetes e toca-CDs, é sem dúvida o
mais próspero dos que estão ali.
Seus filmes e suas gravações de
música popular são vendidos e
alugados constantemente. Ele explica: "A maior parte das fábricas
e dos escritórios está fechada. Daqui a pouco as pessoas não terão
mais dinheiro. Por enquanto, porém, elas se entediam e procuram
alguma coisa para se distrair".
Um homem jovem e forte se
posta diante de sua barraca. Uma
correia de couro pendurada de
seus ombros deforma seu casaco.
Na ponta dela há um fuzil de assalto Kalashnikov, com o cano
voltado ao chão. Ele diz que se
chama Mohammed e que é ""fedayin de Saddam Hussein", ou seja,
pertence a uma milícia armada a
serviço do regime baathista.
Ninguém lhe pergunta sobre a
guerra, mas ele a proclama em
voz alta para que todos possam ouvir -e aprovar
seu chefe. "Vamos derrotar esses cães, os americanos, e seus criados, os britânicos.
Vamos defender
nosso presidente
bem-amado até o
fim."
Discurso feito,
ele começa a fazer
uma busca no
meio dos CDs, à
procura de algo
na categoria "filmes de ação americanos".
Tradução Clara Allain
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