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São Paulo, quarta-feira, 02 de abril de 2003

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BAGDÁ

Rotina começa a ser retomada, com a reabertura de lojas e a circulação de ônibus e táxis na cidade

Capital aprende a conviver com a guerra


Barracas reaparecem nas calçadas. As mercearias têm estoque, e não falta farinha às padarias. Os açougueiros continuam a cortar seus filés


PATRICE CLAUDE
DO "LE MONDE", EM BAGDÁ

Entre dois perigos, Hossein L. e sua família optaram pelo menor. É verdade que o canto de casa empoeirada no qual vivem há uma semana, entre roupas e comida, ameaça desmoronar a qualquer momento.
Construído há mais de um século, o imóvel já tinha sido condenado pela prefeitura por estar em más condições. Mas ele possui uma grande vantagem: sua localização diante da Al Kadhimieh, a grande mesquita xiita que há cinco séculos lança seus quatro magníficos minaretes ao céu. Salvo acidentes, é muito pouco provável que os "libertadores" americanos a bombardeiem.
"Minha casa habitual se encontra em ótimo estado e fica a pouca distância daqui", explica Hossein. "Mas ela fica perto demais de alvos que os porcos anglo-saxões já bombardearam duas vezes nos últimos dias, sendo que posso jurar a você que não há mais ninguém lá há semanas."
Hossein, sua mulher e seus seis filhos não são os únicos levados, com seus pertences, para as ruelas desse bazar ao mesmo tempo miserável e cheio de vida, onde crianças jogam bola em meio ao lixo que se acumula na rua.
"Os milicianos passaram no nosso bairro e avisaram que seria perigoso permanecermos em nossas casas", diz Hossein. "Disseram que podíamos escolher. Se quiséssemos partir, a prefeitura nos encontraria alojamentos de emergência, como este."
À medida que o tempo passa e que os habitantes de Bagdá se acostumam às explosões esporádicas, mas diárias, de bombas e mísseis -que continuam a chover sobre a cidade, de dia e à noite-, a vida vai sendo retomada aos poucos.
Nas grandes avenidas do centro de Bagdá, no último domingo, 11º dia da guerra, cerca de um quarto das lojas e dos restaurantes já tinham reaberto suas portas e posto suas mesas. Não havia mais tempestade de areia, mas o tempo estava cinzento e uma brisa fresca esfriava o ar.
Na estação rodoviária, os ônibus para Basra, Najaf e Kerbala, ao sul, e Mossul e Kirkuk, ao norte, continuam a partir a toda hora, sempre repletos de passageiros. Os ônibus municipais e os táxis públicos e particulares se multiplicam nas ruas, e, com eles, os engarrafamentos de trânsito.
Na avenida Bab Al Murad, cuja larga faixa de asfalto se estende até a mesquita Al Kadhimieh, os vendedores do delicioso doce "dehineh" reapareceram nas calçadas, assim como as barracas de refrigerantes, chá preto e frutas. As mercearias têm estoque, e não falta farinha às padarias. Os açougueiros continuam a cortar seus filés de carneiro e carne de boi.
Os preços das mercadorias não subvencionadas pelo Estado estão subindo, contrariamente ao que acontece com os da farinha, do óleo, do açúcar e de derivados do leite, que foram congelados ou mesmo reduzidos. Há mais mendigos do que nunca nas ruas.
Qudayer, um dos raros vendedores de ouro que recentemente reabriu sua loja no bazar local, diz: "Tenho comprado bem mais ouro do que as jóias que vendo". Não deve ser o caso de todos os seus colegas, já que o preço do ouro vem subindo: cinco gramas do metal custavam 115 mil dinares antes da guerra, hoje valem 135 mil (cerca de R$ 220). Em Bagdá, como em todo lugar, o ouro é uma moeda sempre forte.
Mas os habitantes de Bagdá não estão morrendo de fome. O comerciante Mahmoud já havia dito na feira de legumes: "Nossos pedidos de frutas e legumes continuam a chegar de Basra e de outros lugares".
Na sexta-feira passada, sete jornalistas italianos vindos do Kuait -e que foram presos por soldados iraquianos na saída de Basra e enviados até Bagdá sem escolta- contaram ter percorrido os 500 km que separam as duas maiores cidades do Iraque sem terem visto "nenhum sinal de combate". O mínimo que se pode dizer é que é uma guerra curiosa.
No bazar Al Aramyeh, o famoso "mercado de ladrões" da praça Al Tahrir, no centro, dezenas de vendedores clandestinos que se livram aqui de velhos aparelhos de rádio e TV, além de gravadores de origem duvidosa, dizem estar fazendo ótimos negócios.
Othman, um sudanês idoso, confirma: "Os negócios vão bem. Os preços quase dobraram. As pessoas querem ouvir as notícias do mundo, você entende".
Ahmed, que vende videocassetes e toca-CDs, é sem dúvida o mais próspero dos que estão ali. Seus filmes e suas gravações de música popular são vendidos e alugados constantemente. Ele explica: "A maior parte das fábricas e dos escritórios está fechada. Daqui a pouco as pessoas não terão mais dinheiro. Por enquanto, porém, elas se entediam e procuram alguma coisa para se distrair".
Um homem jovem e forte se posta diante de sua barraca. Uma correia de couro pendurada de seus ombros deforma seu casaco. Na ponta dela há um fuzil de assalto Kalashnikov, com o cano voltado ao chão. Ele diz que se chama Mohammed e que é ""fedayin de Saddam Hussein", ou seja, pertence a uma milícia armada a serviço do regime baathista.
Ninguém lhe pergunta sobre a guerra, mas ele a proclama em voz alta para que todos possam ouvir -e aprovar seu chefe. "Vamos derrotar esses cães, os americanos, e seus criados, os britânicos. Vamos defender nosso presidente bem-amado até o fim."
Discurso feito, ele começa a fazer uma busca no meio dos CDs, à procura de algo na categoria "filmes de ação americanos".


Tradução Clara Allain


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